Hospitalidade da Ordem
Caminho de Hospitalidade Segundo O Estilo de S. João de Deus
Caminho de Hospitalidade
segundo o estiloa comienzos del tercer milenio
Espiritualidad de la Orden
de los Hermanos de
San Juan de Dios de S. João de Deus
Valentín Riesco, OH – José Cristo Rey
García Paredes, CMF
Introdução
1. “O que tão piedosamente aquele bendito varão João de Deus”,[1] “por volta do ano de 1538, começou em
Granada, numa pobre casa alugada”,[2]
continua por diante; decorridos 465 anos, o seu espírito e carisma continuam a
ter repercussão no mundo actual. É tão grande a sua fecundidade e capacidade
transformadora que homens e mulheres de diferentes povos, continentes, raças e
épocas o reconhecem como “pai espiritual”. Uns e outras, movidos pelo seu
espírito, desenvolvem projectos de acolhimento, ajuda, saúde e reabilitação em
favor dos mais necessitados[3].
2. Vivemos
numa época que não é só de mudanças, mas numa autêntica mudança de época. Estão
a tornar-se obsoletas e anacrónicas as formas de pensar e de viver do passado
próximo; perdem eficácia os velhos métodos e instituições. Por isso, vale a
pena não só acolher com veneração a herança recebida de João de Deus, mas
traduzi-la em novas expressões, vivê-la em formas culturais novas e senti-la
com um novo ardor.
1. Mudança de época
3. Esta
mudança de época afecta-nos sob diversos pontos de vista: por um lado, a
globalização; por outro, a afirmação das realidades locais (localização), a pós-modernidade e a sua influência na Igreja e na
Ordem.
Ø
Globalização e afirmação das realidades locais: vivemos em tempos de globalização (marcada
por grandes redes mundiais), mas também em tempos de afirmação do que é local
(autóctone, indígena, cultural, específico). Ambos os movimentos têm aspectos
positivos, mas também negativos. Uma globalização humanizante, solidária e não
excluidora, oferece possibilidades inéditas à comunhão entre as nações, aos
grupos humanos e às pessoas. Uma localização
não fechada em si mesma, nem fundamentalista, pode trazer ao nosso mundo
riquezas e perspectivas até agora inimagináveis. O nosso carisma mundializa-se
também, ao mesmo tempo que se localiza e assume forma em diversos lugares e
culturas. Sentimo-nos especialmente interpelados a pôr em acto o chamamento da
Igreja a globalizar a solidariedade, a ternura, a caridade num mundo em que a
globalização económica se torna fortemente discriminatória e provoca vítimas
incontáveis. Também nos sentimos impelidos a defender o valor do que é local e
a individualidade de cada pessoa, especialmente daquelas que a sociedade
globalizante marginaliza.
Ø
A pós-modernidade: a chamada pós-modernidade é uma outra
característica da mudança de época. É costume descrevê-la como um “estado de
espírito” comum, globalizado, presente de uma ou outra forma em todos os povos
da terra. É costume dizer-se que estão a passar os tempos do totalitarismo, do
absolutismo, das visões dogmáticas, do patriarcalismo; significa que está
ultrapassada a anterior visão eurocêntrica do mundo, que procurava explicá-lo e
controlar tudo. A mentalidade pós-moderna está particularmente enraizada nas jovens
gerações, embora afecte todas as pessoas. Sugere que optemos por explicações
humildes e fragmentárias da realidade, que é mais eficaz realizar pequenos
actos de transformação do que pretender mudanças radicais, que temos de aceitar
o pluralismo, a diversidade e sermos muito mais tolerantes e acolhedores em
relação ao diverso, aos outros. Neste contexto, a hospitalidade e a
misericórdia adquirem um significado novo e a sua concretização em acções e
instituições adequadas aos tempos em que vivemos constitui um novo desafio para
nós. A pós-modernidade desafia igualmente a nossa espiritualidade que, em
sintonia com ela, se define mais como caminho do que como lei moral ou
exigência abstracta. A pós-modernidade torna-nos sensíveis à pluralidade das
formas de vida humana e cristã e, por isso, abre-nos à correlação e à comunhão.
Por isso, falamos de missão partilhada, de carisma partilhado, de vida
partilhada.
Ø
Possibilidades e ameaças: aguardam-nos novas e preciosas
possibilidades, mas também novas e terríveis ameaças. Estamos perante um tempo
que não dominamos e em que temos de encontrar novos caminhos. Em todo o caso,
as repercussões desta mudança de época afectam todas as nossas dimensões:
espírito e corpo, indivíduo e sociedade, dimensão profana e transcendência. As
relações entre nós não são as mesmas de outrora. Descobrimos novas facetas nas
relações entre os géneros masculino e feminino, introduzindo um novo estilo nas
relações entre o homem e a mulher (quer na família quer na sociedade). Perante
a acumulação do poder económico e político, emergem formas alternativas de
poder que o ameaçam (terrorismo, máfias) e estão afectados por esta realidade
milhões de seres humanos que sofrem as consequências desta luta. A nossa
humanidade caracteriza-se por uma surpreendente mobilidade – real ou virtual –
que impede os ritmos serenos, as etapas previsíveis, e nos faz entrar em
âmbitos de forte incerteza. O crescimento económico é real, mas isso não impede
o aumento da pobreza entre milhões de seres humanos. São tantos os contrastes e
as pressões que se abatem sobre a psicologia humana que muitas pessoas não
aguentam o impacto, deprimem-se e chegam mesmo a enlouquecer. Todos estão
afectados, hoje mais do que noutros tempos, por uma notável perda do “sentido
da vida” e da história.
2. A Igreja e a Ordem neste
contexto
4. Também
a Igreja vive esta mudança de época. Não é a mesma que foi nos tempos passados.
De facto,
Ø Tem hoje um rosto mais global e mundial.
Tornou-se mais multicultural e multiracial do que nunca.
Ø Sente em si mesma todas as possibilidades
de um novo tempo, mas sofre igualmente todas as ameaças e desgraças que esta
mudança de época implica.
Ø Impulsionada pela misericórdia, que a
constitui, a mãe Igreja quer acolher a todos e – de modo muito especial – abrir-se
aos mais necessitados.
Ø Escuta com renovada atenção e com uma
atitude criadora as palavras do Ressuscitado que a envia como missionária a
todo o mundo, a todos os Povos, para anunciar o Evangelho e tornar presente a
Misericórdia.
5. Em
semelhante contexto, o carisma de João
de Deus readquire uma formidável actualidade que é necessário sublinhar e
configurar. A Ordem assumiu o processo de renovação iniciado pelo Concílio
Vaticano II, com audácia e seriedade. Reflectiu em profundidade sobre o carisma
no nosso tempo e colocou a si mesma novos desafios e novas metas. Assim se foi
imprimindo um novo rosto ao carisma de João de Deus neste tempo.[4] Mas não podemos parar; é necessária hoje
essa fantasia criadora que tem nas gerações jovens os seus melhores depositários.
Nestas circunstâncias históricas, no mundo de hoje, pluricêntrico e global,
nesta Igreja feita simultaneamente de Igrejas particulares e católica, a Ordem
será capaz de intuir novas respostas, de desvendar novos caminhos do Espírito.
Além dos Irmãos, outras pessoas batem às portas da Ordem, conscientes de serem
portadoras do carisma de João de Deus. Por isso, há uma abertura nova em
relação à “missão partilhada”, à “espiritualidade partilhada”, como nova
definição da identidade da Ordem. Hoje, a Ordem manifesta um rosto plural,
inter-cultural, inter-racial.[5] Ela sente-se chamada a propor o caminho
espiritual de João de Deus a homens e mulheres que já não pertencem às culturas
ocidentais, como sucedia até agora.
6. O
desafio de nos abrirmos à riqueza espiritual das nações e culturas sem, por
isso, perdermos a herança recebida, confere um novo fôlego ao nosso carisma
histórico, como Ordem. As gerações jovens sentem na própria alma uma frescura
cultural. Existe uma fractura cultural entre as gerações que não devemos
menosprezar. Só as pessoas que se foram mantendo abertas à realidade
compreendem adequadamente este facto e podem acompanhar as jovens gerações na
sua busca e nos seus anseios. Surgem actualmente novos e inéditos desafios. Não
basta aceitar o carisma como uma herança recebida. É preciso configurá-lo de
novo, dar-lhe um novo rosto, interpretá-lo de uma forma mais actual. É preciso
fazer “arder o coração”, não só aos membros da Ordem, mas também à sociedade,
às pessoas, à Igreja. A tarefa de refundar a espiritualidade tornar-se-ia
impossível se não tivéssemos a convicção de que o Espírito continua a actuar e
concede como graça aquilo que apaixonadamente procurarmos. O Espírito exige
apenas vigilância, capacidade de acolhimento e docilidade aos novos caminhos
que se abrem.
7. O
objectivo do presente Instrumento de documentotrabajo
é oferecer os elementos fundamentais da espiritualidade da Ordem no âmbito
do novo contexto histórico e do pluralismo étnico, cultural que a caracteriza.
Para isso, dividimo-lo em três partes, a saber:
I. A Memória: o origens
carismáticas.
II. As chaves evangélicas: Misericórdia e
Hospitalidade.
III. O itinerário espiritual: a
Espiritualidade hospitaleira para o nosso tempo.
I. A Memória: origens carismáticas
8. Contemplemos
o caminho espiritual de João de Deus. Nele, descobrimos o desígnio original e o
ícone do nosso “caminho de espiritualidade”.
1. O Caminho espiritual de S. João de Deus
9. João
de Deus foi um homem em caminho, um viandante: na sua vida tiveram lugar peregrinações
e longas caminhadas. Nelas, ficou esboçado o itinerário da sua peregrinação
interior, do seu caminho espiritual. João de Deus fez da sua vida um caminho –
andando descalço e subindo por ladeiras íngremes[6] – até chegar ao topo. Paradoxalmente,
atingiu esse cume descendo até ao mais ínfimo da miséria humana. Na sua vida,
podemos distinguir quatro etapas, que denominamos com as seguintes palavras: esvaziamento, chamamento, alteração e
identificação.
a) Esvaziamento:
deixar espaço à graça – primeira etapa
10. Após
uma série de fracassos, João de Deus experimentou o vazio e descobriu a
plenitude de Deus. “Deus antes e acima de
todas as coisas do mundo!”[7]. Não obtiveram êxito as suas primeiras
aventuras como soldado e caiu por terra – derrubado, como Paulo –, ameaçado e
sem outro socorro senão o que lhe podia vir do alto[8]. Falhou como militar quando um capitão o
condenou a ser enforcado numa árvore por ter perdido os despojos de guerra que
deixou roubar: apesar de não ter sido executado, foi expulso do acampamento,
ficando na mais negra miséria. No seu caminho – desde Fuenterrabía até Oropesa
– queixava-se “da paga que o mundo dá a
quem mais o segue”.[9] Depois de nove anos de silêncio, João
alistou-se novamente no exército do Imperador e foi combater contra os turcos.
Voltou de Viena e desembarcou em A Coruña. A proximidade da sua terra despertou
nele a saudade dos seus pais, de quem se separara aos oito anos, mas a sua
tristeza foi grande quando soube que eles tinham morrido.[10] Sentiu-se vazio. Descobriu a
inconsistência da vida:[11] “ainda que fosse nosso o
mundo inteiro, em nada seríamos melhores e nunca estaríamos contentes por mais
que tivéssemos”;[12] por isso, decidiu “não confiar em si mesmosi”.[13]
b) O
chamamento: ao serviço definitivo do Senhor Deus – segunda etapa
11. O
seu tio deu-lhe a possibilidade de ficar naquela que fora a casa dos seus pais,
mas ele recusou, dizendo: “Minha vontade
é de não permanecer nesta terra, mas de ir aonde sirva a Nosso Senhor… Confio
no meu Senhor Jesus Cristo que me há-de dar a graça de pôr deveras em prática
este meu desejo”.[14] E continuou a procurar, sem encontrar.
Regressou à vida de pastor, em Sevilha. “Como não via o caminho que Nosso Senhor lhe destinava para O servir,
andava triste”.[15] Por fim, abandonou
definitivamente a vida de pastor. Partiu para Ceuta. Ali, para socorrer uma
família enferma, pôs-se a trabalhar na “fortificação
de umas muralhas”, entregando à família, todas as noites, “o
salário que recebia pelo seu trabalho”.[16] Superou uma profunda crise espiritual
com a ajuda de um frade douto, que o mandou expressamente sair daquela terra e
regressar à península. Chegado a Gibraltar, fez uma confissão geral. João, por
vezes soluçando, pedia paz, tranquilidade e que chegasse à meta do serviço que
desejava: “concedei desde já a paz e tranquilidade a esta alma”. E a oração foi-se tornando
oferecimento cada vez mais generoso: “a
fim de Vos servir e ser para sempre vosso escravo”.
Pedia “sempre a Nosso Senhor,
de todo o coração e com lágrimas, que o encaminhasse para aquilo em que O havia
de servir”: “assim, Vos suplico, tanto quanto posso, Senhor meu, tenhais por
bem ensinar-me o caminho por onde tenho de seguir, a fim de Vos servir”.[17]
12. Procurava
o seu sustento realizando diversas tarefas, chegando a ocupar-se da venda de
livros, inicialmente como livreiro ambulante. Desejoso de fixar a sua vida no
novo ofício, com o qual realizava o seu apostolado, além de arranjar dinheiro
suficiente para viver e fazer obras de caridade, “determinou vir para a cidade de Granada e morar nela habitualmente”.[18] Em Granada, experimentou alguma
tranquilidade, dedicando-se às coisas do seu ofício, sem deixar de sentir a voz
que palpitava dentro de si e o mantinha em escuta atenta. No dia da Festa de S.
Sebastião, subiu à Ermida dos Mártires para ouvir, “entre os
demais”, o sermão do
Mestre João Ávila.[19] Era ali
que o Senhor estava à espera dele.
13. OUn día e
Mestre Ávila foi o seu guia espiritual. João de Deus ficou de modo muito
especial impressionado com o seu comentário à passagem do Evangelho sobre as
bem-aventuranças e a bem-aventurança dos pobres (Lc
6,17-32):
“Acabado o sermão, saiu dali
como que fora de si, suplicando, em alta voz, a misericórdia de Deus…, até
chegar à sua residência, onde tinha a loja e tudo quanto possuía. Lançou mão
dos livros que tinha… e dava-os de boa vontade e gratuitamente ao primeiro que
os pedisse por amor de Deus. O mesmo fez com o mais que tinha em casa… Em breve
tempo, ficou sem o seu fornecimento e despojado de todos os bens temporais. Mas
não se contentou com isso: deu ainda a própria roupa que trazia vestida, sem
nada reservar para si… E, assim, despido, descalço e descarapuçado, voltou, gritando,
às ruas principais da cidade de Granada, querendo, nu, seguir a Cristo nu, e
tornar-se totalmente pobre por amor d’Aquele que, sendo a riqueza de todas as
suas criaturas, Se fez pobre, para lhes mostrar o caminho da humildade”.[20]
c) Alteração:
transformado pela Palavra de Deus – terceira etapa
14. En su
búsqueda, Juan se encaminó
hacia Granada.
Quedó “herido del amor de Iesu ChristoHe aquí “la
merced que le avia de hacer”. Descubrió el Camino que tanto buscó y deseó. A partir deste momento, La a vocação de João
de Deus define-se como a vontade de, despojado, seguir a Cristo nu e tornar-se
completamente pobre por amor d’Aquele que, por ele, se fez pobre.
“Pessoas de respeito, que
isto presenciaram, movidas de compaixão, considerando que não era loucura, como
o vulgo julgava…, levaram-no à residência do Padre Ávila. O Padre Mestre Ávila
dava muitas graças a Nosso Senhor por ver os grandes sinais de contrição do
novo penitente, dizendo-lhe: «Irmão João, animai-vos muito em Nosso Senhor Jesus
Cristo e confiai na sua misericórdia, pois Ele levará a bom termo esta obra que
começou. Sede fiel e constante naquilo que começastes. Ide em paz com a bênção
de Deus e a minha. Eu confio no Senhor, que não vos será negada a sua misericórdia».
Saiu João de Deus tão confortado… que cobrou novas forças para se menosprezar,
desejando ser tido e julgado por todos como louco, mau e digno de todo o
desprezo e desonra, para melhor servir e agradar a Jesus Cristo, já que só a
Ele tinha em vista.[21]
Vendo-o assim, dois homens
probos da cidade compadeceram-se dele… e levaram-no para o Hospital Real, que
é onde recolhem e tratam os loucos da cidade… Mas, como o tratamento principal
que ali se aplica a todos são açoites e metê-los em ásperas prisões e outras
coisas semelhantes, para que, com a dor e castigo, percam a fúria e voltem a
si, ataram-no de pés e mãos e, despindo-o,
deram-lhe uma boa sova de açoites com uma corda dobrada”.[22]
15. No
Hospital Real, João encontrou a
resposta à sua impaciente busca de servir o Senhor, onde e como Ele desejasse.
A experiência de sentir-se incluído entre os que perderam o bem mais precioso
que uma pessoa tem, o juízo, e assim sentir-se lançado no abismo mais profundo
do desprezo e da comiseração, recordou-lhe o caminho seguido por Cristo para
resgatar a humanidade: era preciso encarnar-se no mundo da miséria humana,
sofrer o desprezo daqueles que se julgam sábios e normais, para alcançar a
reabilitação daqueles que percorrem o caminho da enfermidade, da pobreza e da
loucura; era necessário pertencer ao grupo dessas pessoas para lhes demonstrar
que também elas são pessoas, filhas de Deus, como ele… e como todos.
“E
vendo castigar os doentes que estavam loucos, a viver, com ele, dizia: «Jesus
Cristo me conceda tempo e me dê a graça de eu ter um hospital, onde possa
recolher os pobres desamparados e faltos de juízo, e servi-los como desejo”».[23]
16. João ficou “ferido do amor de Jesus Cristo”.[24] Recebeu a “mercê que lhe havia de fazeravia”.[25] Ao fazer-se solidário com os pobres e os doentes, vivendo e sofrendo a sua
mesma sorte, descobriu o Caminho que tanto
procurara e desejara.
d) Identificação:
como Jesus pobre e como os pobres – quarta etapa
17. Começou a
percorrer o novo e definitivo Caminho: recolhia e vendia lenha; com o que lhe
davam, alimentava-se mal e dava o resto aos pobres. A sua casa eram os portais
cobertos das praças e ruas de Granada, partilhando com os deserdados o calor e
o frio, as amarguras e as esperanças. Decidiu tornar-se mendigo por amor de
Deus, para aliviar o sofrimento e a miséria dos seus irmãos, gritando: “Quem faz bem a si mesmo? Fazei bem por amor
de Deus, irmãos em Jesus Cristo!”[26]
18. Vendo os pobres “deitados pelos portais, a tiritar de frio,
desprovidos de roupa, chagados e enfermos, e vendo o muito que disto havia,
movido de compaixão, determinou, mais decididamente, buscar-lhes remédio”.[27] Com a ajuda de algumas pessoas devotas,
alugou uma casa, arranjou-a com as coisas indispensáveis e “começou
a transportar pobres às costas, de todas as formas que encontrava pela cidade”.[28] Jesus
Cristo começava a conceder-lhe a graça de tornar realidade o seu propósito de
ter um hospital onde cuidar dos pobres e enfermos segundo os impulsos do seu
coração.
19. Para João de
Deus, o hospital é um lugar sagrado, uma casa de Deus. O seu é um hospital-lar, aberto a todos os
pobres desamparados, sem qualquer discriminação, porque Deus faz
brilhar o sol para todos; nele, o hóspede é o “senhor” e João o seu escravo:
“Como a cidade é
grande e muito fria, especialmente agora, de Inverno, são muitos os pobres que
procuram refúgio nesta casa de Deus. …nela se recebe toda a espécie de doentes
e toda a classe de pessoas, de modo que há aqui tolhidos, aleijados, leprosos,
mudos, loucos, paralíticos, tinhosos, e outros muito velhos e muitos meninos;
e, afora estes, muitos outros peregrinos e viajantes que aqui acodem…”.[29]
20. A
gente, estupefacta, não percebia como o Senhor o tinha “introduzido
na despensa do vinho e ordenado nele o amor”.[30]
João crescia na
contemplação da “grande misericórdia de Deus” e ele mesmo se fazia misericórdia
e gratuitidade: “escutava com grande
paciência as necessidades de cada um, sem nunca despedir ninguém desconsolado”.[31] “Tudo quanto fazia e dava
lhe parecia pouco, vivia na ansiedade de dar-se a si mesmo de mil maneiras”.[32] Diziam
dele as pessoas: “pela sua muita caridade divina”,[33] “praticava sempre a caridade e procurava dar
esmola”.[34] Passava noites inteiras a pedir ao Senhor “remédio para as necessidades que via, com profundos gemidos e suspiros”.[35] João de Deus reconhecia que “o bem que os homens fazem não é deles, mas
de Deus: a Deus a honra, a glória e
o louvor, pois tudo é seu, de Deus. Amém Jesus”.[36] Por isso, “tudo quanto fazia e dava lhe parecia poucoquanto”,[37] porque vivia absorvido na dimensão da
misericórdia de Deus, que “tão magnífico
e generoso tinha sido para com ele”.[38] Por isso, “a sua maior tristeza era não poder remediar as necessidades: isso
despedaçava-lhe o coração”,[39] porque “de tal maneira o havia embriagado (o Senhor) no seu amor, que nada
negava... sendo piadosíssimopiedosísimo
para com todos”.[40] João de Deus comia geralmente “cebola assada ou outras comidas de baixo
preço” e “dormia numa simples
esteira, no chão, com uma pedra por cabeceira, coberto com um pedaço de uma
manta velha, …num cubículo muito acanhado, por baixo de uma escada”.[41] “Num cantinho, debaixo das
escadas do hospital, experimenta a pobreza dos seus pobres”.[42]
21. Um
dia, descobre que podia endividar-se, oferecer-se a si mesmo como penhor de
dívidas para poder continuar a dar remédio a tanto sofrimento[43]. Não hesita nem por um momento, pede
dinheiro emprestado, empenha-se, as dívidas multiplicam-se, continua a ficar
empenhado, deve “mais de duzentos
ducados”,[44] mas, mesmo assim, os problemas estão
longe de estar resolvidos. “As recrezennecessidades
e angústias aumentam de dia para dia, tanto pelas dívidas como pelos pobres
que vão chegando”.[45] As dívidas aumentam de tal forma que os credores
lhe fecham a porta: “já não mos querem
fiar, por eu dever muito”.[46] A tenaz aperta-se e atormenta-o: as
dívidas e as necessidades dos muitos pobres que chegam, encurralam-no num beco
sem saída. “Estou tão empenhado e em
tanta necessidade que nem sei o que fazer… Vendo-me tão empenhado que muitas
vezes nem saio de casa pelas dívidas que tenho”.[47]
22. Na
oração, descobriu o sentido de tudo – “vejo-me
aqui empenhado e preso só por Jesus Cristo”[48] – ao encontrar-se num cativeiro e penhor
que se convertem numa prisão perpétua, da qual nunca mais se libertará. Pouco
antes de morrer, deixará nas mãos do Arcebispo de Granada, D. Pedro Guerrero, o
livro de “estas dívidas que contraí por
Jesus Cristo”.[49] “Depois, pressentindo que se
avizinhava a morte, levantou-se da cama e pôs-se de joelhos no pavimento,
abraçado a um crucifixo, estando assim um pouco em silêncio. A seguir, disse:
«Jesus, Jesus, nas tuas mãos me encomendo». E, dizendo isto com voz forte e
inteligível, entregou a alma ao seu Criador”.[50]
23. João
de Deus foi provado pela angústia e pelo sofrimento. Do mesmo modo que
Jesus, fez-se como um dos tantos
dementes e, graças à sua fidelidade, foi enriquecido com o dom da verdadeira
sabedoria: compreendeu que a dignidade da pessoa está enraizada na riqueza do
coração. Como Jesus, dedicou-se a fazer o bem a todos, a começar pelos grupos
de pessoas mais discriminadas: os doentes de todas as classes sociais, os
pecadores, as prostituas…, mesmo a custo de ser desprezado e caluniado. Tal
como Jesus, contemplou o mundo dos homens com um olhar de ternura e
misericórdia e, graças ao seu amor sem limites, tornou o amor contagioso,
converteu-se em irmão de todos e deu início a um caminho de solidariedade
hospitaleira. Como Jesus, desceu até ao abismo mais profundo da miséria humana,
deixando-se levar até ao Hospital Real, onde Deus lhe continuou a falar, desta
vez através dos gritos, das queixas e do desespero dos seus irmãos, os doentes;
respondeu assim à ansiosa busca de João e à sua decisão de, “nu, seguir a Cristo nu, e tornar-se
totalmente pobre por amor d’Aquele que, sendo a riqueza de todas as suas
criaturas, Se fez pobre, para lhes mostrar o caminho da humildade”.[51]
Síntese: João de Deus percorreu um caminho espiritual que começou com a dureza
descarnada do despojamento indo até à loucura que o contagiou com o infinito
amor a Jesus Cristo, passando pelo contacto com a pobreza e marginalização dos
bairros degradados de Granada, e chegando, imitando o Mestre, a uma identificação
mística com os mais pobres, assumindo o seu opróbrio e as suas dívidas até à
morte.
2. Tradição: transmissão do espírito do Fundador e Pai
a) Pai e irmão no Espírito: os primeiros Irmãos
25. O
dom de João de Deus irradiava por si mesmo. O seu espírito transmitia-se. O seu
amor pelos pobres e doentes encorajou muitas pessoas a unirem-se à sua obra de
caridade. A maioria, como benfeitores que o ajudavam com esmolas; bastantes,
desejosos de colaborar com ele no serviço prestado aos necessitados; alguns,
decididos a viver com ele um novo estilo de seguir e imitar Jesus. Com estes,
constituiu uma comunidade de Irmãos. Não precisou de lhes dar outra norma de
vida senão o exemplo do seu próprio modo de viver.
26. Por experiência
pessoal, sabia que servir a Jesus Cristo nos seus pobres pressupunha um caminho
que não era nada fácil. A quem desejava viver com ele e como ele, recordava,
com palavras simples e cortantes, que era necessário estar disposto a esvaziar-se de si mesmo, “deixar a pele e as correias”,[52] a vencer as dúvidas e inseguranças, a andar “como
barca sem
remo, como pedra movediça”;[53] convidava a ter consciência das próprias debilidades e fraquezas, para não se
deixar arrastar por
repentinos entusiasmos, tendo em conta que, no futuro, deveria estar sujeito
a “dias de grandes reveses e a outros mais bem
sucedidos”,[54] pelo que era conveniente que tomasse tempo
para discernir a clamada, encomendando o caso “muito a nosso Senhor Jesus Cristo”,[55] e estivesse disposto
a percorrer o caminho da ascese pessoal, “levando vida difícil, com fome e sede,
humilhações e cansaços, angústias, trabalhos e contrariedades…, tudo por Deus,
pois, se para cá vierdes, tereis de passar tudo isto por amor de Deus”[56]. Insistia na necessidade de viver em relação
com Deus e de frequentar os sacramentos: “todos os dias da vossa vida tende Deus
diante dos olhos; ouvi sempre Missa
inteira; confessai-vos com frequência, se for possível”.[57] Em definitivo, quem desejasse unir-se ao seu estilo de
vida, precisava de fazer um processo de conhecimento
e de intimidade com Jesus Cristo que o motivasse para a imitação da sua
entrega no amor a Deus e ao próximo. Não tolera meias medidas; propõe que se
alcance o grau mais alto do amor: “Lembrai-vos de
Nosso Senhor Jesus Cristo e da sua bendita Paixão, pois retribuía com o bem o
mal que Lhe faziam. Assim haveis de fazer vós: se vierdes para a casa de Deus,
saibais conhecer o mal e o bem”.[58] Também não oculta as dificuldades e as exigências: “Mas se vierdes para
aqui, haveis de obedecer muito e trabalhar muito mais do que tendes
trabalhado…, e não para folgar, pois
ao filho mais querido é que se confiam os trabalhos mais difíceis. Desvelar-vos
em cuidar dos pobres, pois, se para cá vierdes, tereis de passar tudo isto por
amor de Deus, e por tudo lhe haveis de dar muitas graças, tanto pelo bem como
pelo mal”.[59] Como critério último, que dá
sentido a tudo o resto, propõe que se aspire a fundamentar e centrar a vida na
vivência que animava todo o seu querer e agir: “Amai a Nosso Senhor Jesus Cristo sobre todas
as coisas do mundo, pois, por muito
que O ameis, muito mais vos ama Ele. Tende sempre caridade, porque onde não há caridade não há Deus, embora Ele esteja em
todo o lugar”.[60]
27. Queria Irmãos com
experiência da misericórdia de Deus;[61] assim, viveriam revestidos de sentimentos de
amor, extremamente prestáveis e diligentes em tudo, fiéis, compreensivos,
capazes de perdoar e de reconciliar-se, e unidos entre si. Na sua maneira de
ser e de estar, transmitia-lhes uma segurança inflexível na sua fé e no carisma
recebido. Bem cedo, os habitantes de Granada puderam constatar que os “... Irmãos andam pelas ruas a recolher os
pobres e levavam-nos para o hospital, ao colo ou às costas, e curam-nos com
grande caridade… É do domínio público que os Irmãos, encontrando pobres nas
ruas, pegam neles às costas e levam-nos para o hospital”.[62] Acabava de surgir na Igreja a Ordem dos Irmãos de S. João de Deus.
b) O
espírito hospitaleiro herdado
28. Os16. Los primeros hermanos. Juan
de Dios contó con dos categorías de colaboradores: benefactores y voluntarios.
Entre éstos hubo algunos - sus primeiros
companheiros[63]- de João de Deus
participavam do seu espírito hospitaleiro e difundiam-no. Antón Martín era como
que um prolongamento de João de Deus: fundou e dirigiu o Hospital de Nossa
Senhora do Amor de Deus, em Madrid, que, após a sua morte, recebeu o seu nome;[64]y que él dir Pedro Velasco,
transformado pela graça, como Antón Martín, reconciliando-se com aquele que
antes era seu inimigo e desejara punir severamente, uniu-se ao santo, imitando
o seu estilo de vida, e morreu no Hospital de S. João de Deus, em Granada.
Ambos foram tocados pela misericórdia de Deus através do testemunho
misericordioso de João e foram testemunhas admiráveis de reconciliação e
fraternidade hospitaleira. Os outros companheiros são recordados por
testemunhas como sendo hospitaleiros, muito próximos dos pobres e dos doentes a
quem assistiam; reconheciam que João de Deus era o seu iniciador[65] e imitavam-no na sua hospitalidade sem
limites.[66] Vinte anos depois da sua morte ainda se
mantinha bem vivo o espírito hospitaleiro.
29. Este espírito permaneceu vivo ao longo da
história da Ordem. Aí estão, em primeiro lugar, aqueles a quem a Igreja
declarou santos, beatos e veneráveis: S. João Grande, S. RiccardoRicardo Pampuri, S. Bento
Menni; numerosos Beatos Mártires; outros Irmãos, cuja causa de beatificação
está em curso (Francisco CamachoCamacho, Antón MartínJosé OlalloOlallo ValdèsValdés, Eustaquio Kugler, William Gagnon), e tantos
outros que, ao longo da história da Ordem, sofreram o martírio e foram
perseguidos por causa de Cristo e pela hospitalidade, no Brasil, na Colômbia,
no Chile, na Polónia, nas Filipinas, em França, na Espanha, e, recentemente,
noutros países.
30. A
espiritualidade transmitiu-se também através de outros fundadores e
refundadores de comunidades e obras da Ordem: os Irmãos Pedro Soriano (Itália); Giovanni Bonelli (França); Gabriele Ferrara ee
Giovanni Battista Cassinetti (Italia y AlemaniaImpério
Austro-Germânico), Francisco Hernández (AmericaAmérica). Em tempos mais
recentes, recordamos Paul de Magallon (França), Eberhard Hacke e Magnobon
Markmiller (Alemanha), GiovaniGiovanni MariaMaria Alfieri (Itália) e S. Bento Menni (Espanha,
Portugal e México). O espírito hospitaleiro surgiu, do mesmo modo, em
colaboradores que participaram na missão e no espírito carismático.
31. Os
valores espirituais que foram dando
vigor a esta longa historiaca,
a partir da experiência origianriaoriginária de João de Deus, são os seguintes:
Ø
Experiência profunda da “graça” e da
“misericórdia” de Deus,
que leva uma pessoa a reconhecer-se como pecador, necessitado de perdão, e a
acolher o dom da hospitalidade concedido por Deus com tanta liberalidade a João
de Deus e aos seus seguidores.[67] João de Deus experimentava o amor misericordioso
e infinito do Pai e sentia-se impulsionado a viver misericordiosamente,
sobretudo quando meditava sobre a paixão e morte de Jesus Cristo. Foi isso que
manifestou de forma simples e profunda, com estas palavras dirigidas à Duquesa
de Sesa: Se considerássemos como é grande
a misericórdia de Deus, nunca deixaríamos de fazer o bem enquanto pudéssemos,
pois, se nós dermos por amor aos pobres o que Ele mesmo nos dá… suplica-nos de
braços abertos que nos convertamos, choremos os nossos pecados e sejamos
caridosos, primeiro com as nossas almas e depois com o próximo (1DS 13). Quando
convidava a contemplar a Paixão do Senhor, fazia-o para motivar à acção de
graças e à contemplação, para avivar a esperança em Jesus Cristo, em quem
encontraremos conforto e alento nas dificuldades e sofrimentos, e a fazer o bem e a caridade aos pobres e
necessitados (Cf. 3DS 8, 9; 2DS 9, 19). De João de Deus deriva o lugar privilegiado que,
no nosso caminho espiritual, teve e continua a ter a Paixão de Cristo.[68]
Ø
Seguimento de Jesus compassivo e misericordioso:[69] descobrimos em Jesus
a encarnação e expressão humana do Deus-Misericórdia, origem da nossa hospitalidade (Const. 20); seguimo-lo e
imitamo-lo nos seus gestos e atitudes
(Const. 2c; 3a); reconhecemo-lo na pessoa e no rosto do doente e do necessitado,
prestando-lhe acolhimento e auxílio amorosos.
Ø
Devoção à Virgem Maria como exemplo vivo e proeminente de hospitalidade: na sua forma de acolher,
servir, interceder, estar misericordiosamente ao lado de quem sofre.[70]
Ø
Vivência harmoniosa e integral do amor a Deus e do amor ao próximo em
necessidade.[71]
Ø
Perseverança espiritual perante os obstáculos: é tal a experiência da graça que não há
dificuldade nem sofrimento capazes de interromper o que se realiza a favor dos
pobres, dos enfermos e necessitados.
Ø
Hospitalidade irradiante: como João de Deus, também os seus seguidores
foram recompensados com uma hospitalidade irradiante e vigorosa que convencia
outras pessoas a participar em novos projectos hospitaleiros e a entrar em
comunhão de carisma e espiritualidade com eles. A irradiação carismática via-se
acompanhada por uma sábia formação dos colaboradores no espírito de João de
Deus.
Ø
A
atenção à pessoa do doente e do necessitado como contributo da Ordem à missão da Igreja, que é
única.[72]
Ø
Profissionalismo: a tradição hospitaleira da Ordem dá testemunho
do interesse em conjugar a missão hospitaleira com os progressos da técnica e
da ciência, e com a actualização dos meios, segundo os problemas e as
possibilidades característicos de cada época.
Ø
Espírito de entrega até à morte: é uma constante em tantos seguidores de
João de Deus a disponibilidade a entregar-se sem reservas, até entregar
inclusivamente a própria vida pelos doentes e necessitados. Assim o demonstram
feitos heróicos que marcam a história da Ordem em diferentes lugares e tempos:
epidemias, guerras, perigos…
Ø
Inculturação entre os pobres, ou humildade
hospitaleira: é a
menoridade, a “kénosis” hospitaleira, que levava os Irmãos a renunciarem a uma
vida confortável e a todo o tipo de grandeza, adaptando-se ao estilo de vida
humilde dos pobres e doentes.
3. O “hoje” do carisma de João de Deus: Missão
partilhada e inculturação
32. João de Deus
partilhou com toda a espécie de pessoas o dom que tinha recebido, fazendo com
que elas se sentissem contagiadas pelo seu modo de viver o cristianismo e pelo
seu amor pelos necessitados: juntavam-se a ele, no serviço, pessoas simples,
benfeitores anónimos e personagens da nobreza, que o apoiavam com bens
materiais; presbíteros que colaboravam com ele na assistência espiritual de
quantos eram acolhidos no hospital, e muitos outros – voluntários, médicos e
pessoal de serviço – que, com ele e os Irmãos, assistiam os doentes.
33. O
dom da hospitalidade praticado segundo o estilo de João de Deus teve uma
irradiação constante,
mesmo junto de pessoas que nem sempre estavam animadas pelos valores da
fé cristã. O carisma transmitido desenvolveu-se com uma admirável criatividade,
dando origem a uma série de realizações adaptadas aos diferentes tempos e lugares.
Temos cada vez mais consciência de que o carisma da hospitalidade segundo o
estilo de João de Deus ultrapassa o âmbito dos Irmãos que professaram na Ordem.
Continua a ganhar corpo uma nova visão da Ordem como “família”, e acolhemos –
como dom do Espírito no nosso tempo – a possibilidade de partilharmos o nosso
carisma, a espiritualidade e a missão.[73] Esta realidade
que, entre nós, foi assumindo vigor muito lentamente, é um desafio a viver “de tal modo identificados com esta missão
que os nossos colaboradores se sintam encorajados a fazer o mesmo”,[74] não só porque as obras apostólicas da Ordem,
sobretudo nos países em vias de desenvolvimento, se tornaram enormemente
complexas, mas porque nos sentimos impelidos pelo imperativo evangélico de
partilhar com alegria e gratuitamente o que de graça recebemos do Senhor, para
o bem da comunidade eclesial e anúncio do evangelho da misericórdia.
34. 23. Os Irmãos missionários – em missão ad gentes – fizeram o possível para que
o carisma de João de Deus se tenha difundido e inculturado consideravelmente;
agora, está a verificar-se a passagem da inculturação para a encarnação do carisma e da missão da Ordem através
de Irmãos autóctones. Isto significa que é necessário ultrapassar as maneiras
de viver a consagração em hospitalidade segundo o estilo das nações de origem
dos missionários e promover um estilo e formas em que cada cultura o possa
viver, conservando os aspectos genuínos do carisma que são perenes. As
exigências são ainda mais significativas na missão, que deverá passar
progressivamente de estilos de organizar a assistência segundo modelos do
primeiro mundo para modos de realizar a hospitalidade adequados a cada
realidade, encarnada no âmbito sócio-eclesial, sem renunciar ao valor
tradicional da Ordem de promover uma assistência digna, baseada nos progressos
da ciência e da técnica e realizada por Irmãos e Colaboradores bem
qualificados.
35. Deste
modo, ao mesmo tempo que o carisma de João de Deus se enriquece com os valores
de cada cultura, a Ordem continuará a desempenhar o papel de ser consciência
crítica nos lugares em que a assistência médica e social for deficiente e de
promover o desenvolvimento saudável das estruturas sanitárias e assistenciais
às quais todos possam aceder, especialmente os mais desfavorecidos.
II. Os
Fundamentos: Misericórdia e Hospitalidade como categorias basilares
36. 20A
Ordem exprimiu o carisma de João de Deus através de dois termos, intimamente
relacionados entre si: “misericórdia” e “hospitalidade”;[75] encontramo-los também na Palavra de Deus;
mesmo no nosso tempo, estas duas palavras falam-nos de valores humanos que são
muito bem aceites em todas as culturas. Apresentamos seguidamente algumas
breves reflexões sobre cada um destes conceitos, como eixos em torno dos quais
gravita a espiritualidade peculiar da Ordem. Para isso, falaremos:
Ø
em primeiro
lugar, da misericórdia, como categoria bíblica e antropológica;
Ø
depois,
reflectiremos sobre a hospitalidade, nos seus sentidos bíblico e antropológico;
Ø
em ambos os
casos, evocaremos a peculiar ressonância destes temas no carisma da Ordem,
tendo especialmente em conta as Constituições renovadas.
1. Pressuposto: misericórdia e
hospitalidade, culpa e violência
37. Misericórdia
significa, antes de mais, capacidade de compreensão, de compaixão, de perdão,
de nos tornarmos instrumentos de reconciliação que se manifesta na reacção
perante a culpa e diante do pecado. Os seres humanos podem agir de acordo com
os planos de Deus ou, vice-versa, desobedecer à sua vontade, transgredir as
normas humanas, desrespeitar as alianças estabelecidas. Viver a partir do ser,
das atitudes positivas, é fonte de harmonia, de desenvolvimento pessoal e cria
âmbitos de serenidade e solidariedade. Pelo contrário, a transgressão tem
repercussões na psicologia humana, desajustando-a, desequilibrando-a;
adquirimos consciência de culpa, sentimentos de culpa, e isso afecta-nos em
todas as dimensões da nossa vida. Quando
Ø
alguém sabe
que é e se sente culpado diante de Deus, falamos de pecado;
Ø
alguém sabe
que é e se sente culpado diante dos homens, falamos de culpa “moral”, ou de “ética”;
Ø
ocorre uma
violação de algo fundamental no nosso sistema de valores, surgem a consciência, ou sentimentos, de culpa.
38. Por
isso, não é bom negar a culpa, como também não é bom favorecer sentimentos de
culpa que amplificam e desfiguram a realidade. Perdoar – saber perdoar e saber
que se está perdoado – constitui a superação mais radical da culpa, do pecado.
39. A
hospitalidade é, antes de mais, a capacidade de a pessoa se abrir e acolher o
outro; é também uma reacção contra a violência. Há violência quando existe
antagonismo entre nós e quando não somos capazes de viver em paz, de nos
encontrarmos reciprocamente, como pessoas. A violência interior faz com que
prefiramos o conflito, a luta, a degradação. A violência desencadeia em nós os
piores expedientes (os pecados basilares) e estimula a nossa agressividade. A
violência original não foi a guerra de todos contra todos, mas a hostilidade de
uma comunidade humana – família, aldeia, nação, religião, entidade cultural –
em relação aos de fora, aos estrangeiros. Quando a violência de espírito se
arvora em lei universal, reclama para si o monopólio da civilização e combate a
diversidade humana. Há violência quando se rejeita aquele que é diverso.
40. A
violência religiosa proclama que “Deus está connosco” e nega a presença de Deus
nos que são diferentes de nós. Quem julga que Deus só está do seu lado,
torna-se independente dos outros. Esta atitude dá origem ao egoismoegoísmo sagrado:
“para eu ser, é preciso que o outro não seja”. Por isso, a violência sagrada é
fundamentalista e homicida em relação aos outros e destrutiva em relação a quem
a pratica. Só o acolhimento do próximo, do diverso, só a hospitalidade – a
filoxenia em vez da xenofobia! – se opõem à violência.
2. A misericórdia
a) O
Deus da misericórdia
41. A
característica suprema de Deus, segundo o Antigo Testamento, é a misericórdia;
não a violência.[76] A misericórdia ultrapassa infinitamente a
ira: “num acesso de ira escondi de ti a
Minha face; mas no meu eterno amor me compadeci de ti” (Is 54, 8). O texto paradigmático que exprime a misericórdia,
como identidade de Deus, encontra-se numa passagem do Livro do Êxodo:
“O Senhor passou em frente dele, e exclamou: Javé! Javé!
Deus misericordioso e clemente, vagaroso em encolerizar-se, cheio de bondade e
de fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a
iniquidade, a rebeldia e o pecado, mas não confunde o culpado com o inocente, e
pune o crime dos pais nos filhos, e nos filhos dos seus filhos até à quarta
geração” (Ex 34, 6-7) .
42. Aqui, Deus é proclamado “rahum”, aquele que tem um amor cheio de
carinho, maternal, visceral, um amor que brota do coração. Este amor
misericordioso é totalmente gratuito, não é resposta aos méritos, mas, sim, uma
experiência do coração. Misericórdia é, então, bondade, ternura, paciência,
compreensão, prontidão para perdoar, apesar da infidelidade.
43. A
misericórdia de Deus manifesta-se sempre em contextos de violação da Aliança. O
povo, consciente da sua infidelidade, recorria à misericórdia de Deus. As
infracções da Aliança suscitavam a ira e os ciúmes de Deus; porém, com os
profetas (ExequielEzequiel e o Deutero-Isaías), as ameaças
transformam-se em anúncios de consolação e em manifestações de misericórdia, em
evangelho (boa nova) para os pobres (Is 40; 61).
b) A
encarnação da misericórdia
44. Na
sua Carta aos Filipenses, S. Paulo diz-nos que Deus “despojou-Se a si mesmo tomando a condição de servo… feito obediente
até à morte e morte de cruz” (Fil 2, 6-8). O Deus omnipotente renunciou à vontade de
poder: “eu estou no meio de vós como aquele que
serve"” (Lc 22, 27; cf. Mt 22, 25-28). O Deus omnipotente não destrói
mecanicamente o mal nem a morte, mas assume-os. Por isso, perante o sofrimento
dos inocentes, ou diante dos episódios absurdos da vida, o nosso Deus
apresenta-se como debilidade invencível. E porque Deus se manifesta como fraco,
sofre, por isso, com o ser humano. O sofrimento é o pão que Deus partilha
connosco. A misericórdia divina é o arrependimento de Deus, a fragilidade de
Deus. A debilidade de Deus corresponde à fraqueza do ser humano. O nosso Deus
apresenta-se sempre como protagonista do perdão. Perdoando, praticando a
misericórdia, é assim que Deus se revela ao ser humano enquanto Deus.
45. O
Novo Testamento apresenta-nos Jesus como o grande perdoador, o grande terapeuta
do perdão. Nele, faz-se presente toda a misericórdia de Deus. Em algo tão
pessoal de Deus como é o acto de perdoar (cf. Mc 2,
7; Lc 15), Jesus faz as vezes de Deus Pai. Jesus
preocupava-se com as pessoas na sua totalidade, descendo até à sua própria
interioridade, até ao seu coração, mas sem se limitar ao âmbito da alma, da
psique; preocupava-se também com a cura do corpo. “O próprio Jesus era a terapia que era proporcionada” (Hanna Wolft). Ao
perdoar, Jesus desencadeia na pessoa perdoada um processo de reequilíbrio
global. Em Jesus, revela-se a misericórdia, não a violência. A encarnação é o
rebaixamento de Deus (kénosis de Deus). É o sinal de que Deus não é violento:
ama a debilidade e faz-se débil. Jesus não surge com o carácter absoluto de uma
pessoa sagrada; pelo contrário, “tornou-se
semelhante aos homens” (Fil 2,
7), secularizado. Jesus
faz-se próximo de todos, sem excepção. A todos ama, porque é o ícone de Deus, e
Deus é amor (1 Jo 4, 7). Rejeita sem reservas todo o tipo de
violência. Jesus apresenta o seu Pai, Abbá, não como perdão, mas como amigo;
não como dominador, mas como servidor; afirma que as coisas essenciais não são
reveladas aos sábios, mas aos pequeninos (Mt 11, 25; Lc 10, 21).
O fio condutor da história, iniciada por Jesus, é a diminuição das estruturas
fortes, a renúncia à violência e ao eficientismo; por isso, recomenda de forma
particular o perdão e convida a recomeçar sempre de novo – até setenta vezes
sete! (Mt 15, 22). Jesus manifesta-se assim como o grande educador que
conduz a águas tranquilas e ensina como superar a violência, tanto a que se
baseia em razões “sagradas” como em motivos sociais.
46. O
hino com que inicia a Carta aos Efésios enfatiza a magnificência de Deus que,
em Jesus e por ele, nos concede o perdão dos pecados. Se a gratuitidade
constitui uma das características que nos revelam como Deus é surpreendente, a
misericórdia, de modo particular, faz com que ele esteja próximo de nós e
acessível. Ter misericórdia é próprio de Deus. Deus exerce a sua presença entre
os homens, perdoando: “Quem pode perdoar
pecados senão só Deus?” (Lc 5,21; Mc 2,7). Jesus assume o protagonismo reservado a
Deus. A encarnação do Filho de Deus foi a manifestação suprema da Misericórdia.
O Abbá é “o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação” (2 Cor 1,3); e ainda, “Deus Pai é rico em misericórdia” (Ef 2,4).
47. A identificação de Jesus, não só com o ser
humano mas também, de modo especial, com quantos têm fome e sede, com os
desamparados, os enfermos, os prisioneiros e todos os necessitados (cf. Mt 25, 34-45), manifesta até onde chega a misericórdia que
ele encarna. O próprio Jesus é – como aqueles com os quais ele se identifica –
vítima de violência. Ele não recebe misericórdia e chega mesmo a interrogar-se,
na cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” (Mt 27, 46). O filho foi, sem dúvida alguma, escutado e
a sua oração deu frutos na Ressurreição. Ressuscitou das entranhas do Abbá: “Tu és o meu filho; eu hoje te gerei” (cf. Sal 2, 7; Heb 1, 5). Nasceu para a vida eterna das entranhas
misericordiosas do Abbá.
c) A
misericórdia no carisma da Ordem
48. A
“misericórdia” é o fulcro do carisma e da espiritualidade de João de Deus[77] e da sua Ordem.[78] Procuramos ser, na Igreja, uma imagem
viva e colectiva da Misericórdia.
Ø
Ponto de partida: reconhecemos que somos misericordiosos na medida
em que tanto João de Deus como cada um de nós, fomos contemplados pela
Misericórdia de Deus e experimentámo-la na nossa vida: “Se considerássemos como é grande a misericórdia de Deus, nunca
deixaríamos de fazer o bem enquanto pudéssemos”.[79] Sentimo-nos habilitados e consagrados
para ser misericordiosos. “Desejamos amar
a Jesus acima de todas as coisas do mundo e, por seu amor e bondade, queremos
praticar o bem e a caridade para com os pobres e os necessitados”; queremos
“imitar Nossa Senhora, a Virgem Maria,
«sempre intacta», reflectindo o seu amor materno” (Const.
4bc).
Ø
O nosso objectivo espiritual consiste em “encarnar com profundidade cada vez maior os
sentimentos de Cristo para com o homem doente e necessitado e manifestá-lo com
gestos de misericórdia”; “tornar-nos fracos com o fraco”, sendo para ele sinal
e anúncio da vinda do Reino de Deus” (Const. 3). A nossa resposta vocacional leva-nos a
cultivar em nós o amor cada vez mais intenso para com os pobres, os
necessitados e os pecadores.
Ø
O estilo que, desde as origens, nos
caracteriza, manifesta-se nas seguintes virtudes: “serviço
humilde, paciente e responsável; respeito e fidelidade à pessoa; compreensão,
benevolência e abnegação; participação nas suas ansiedades e nas suas
esperanças” (Const. 3b).
3. A Hospitalidade
49. 2733A
Ordem exprimiu tradicionalmente o carisma recebido com a palavra
“hospitalidade”. Este termo não só não perdeu a sua capacidade expressiva nos
dias de hoje, mas é proposto por alguns como uma categoria fundamental da nova
moralidade para o nosso tempo.[80] Por isso, é importante reflectir sobre
ela, considerando-a o eixo em volta do qual gira a espiritualidade peculiar da
Ordem.
a) O
que é a hospitalidade?
50. 2834A
hospitalidade fala-nos das relações que se estabelecem entre um hóspede e a
pessoa que o acolhe (anfitrião ou anfitriã). Nessas relações, há obrigações e
responsabilidades recíprocas. O hóspede e o anfitrião estão numa relação mútua:
não existe um sem o outro. O hóspede é um ausente que, em qualquer momento,
pode tornar-se presente e reivindicar o seu direito de hospitalidade. Nos casos
em que vigoram as leis da hospitalidade, o ausente tem direitos perante o
anfitriãoAlli (ser acolhido) e o anfitrião,
ainda não constituído enquanto tal, tem deveres em relação ao hóspede que se
lhe apresenta (acolhê-lo).
51. Não
é fácil explicar o motivo que leva os seres humanos a serem hospitaleiros. Em
todo o caso, a relação de hospitalidade não é automática, pois o hóspede pode
ir-se embora, e o anfitrião pode recusar-lhe o acolhimento; mas também não é
arbitrária, dado que o anfitrião sente-se moralmente obrigado a receber um
hóspede, mesmo que ele se torne impertinente.
52. 2935A
característica fundamental da hospitalidade é o acolhimento e o reconhecimento
do hóspede por parte do anfitrião; no entanto, esse reconhecimento e
acolhimento têm características especiais:
Ø
A
hospitalidade é virtualmente universal.
Qualquer pessoa pode ser um hóspede; reconhecê-la como hóspede pressupõe que se
dê um passo muito importante no sentido do reconhecimento de todos os seres
humanos como hóspedes virtuais.
Qualquer pessoa no mundo tanto pode ser um hóspede como um anfitrião virtual.
Em muitas culturas é proibido perguntar ao hóspede qual é o seu nome ou a sua
proveniência, como se ele fosse uma representação simbólica do ausente. A
protecção do anonimato do hóspede é o sinal de que em cada hóspede vemos
qualquer pessoa do mundo. Os nossos deveres para com os visitantes que vêm ao
nosso encontro são muito concretos. Mostrar um certo desinteresse por conhecer
o seu nome, procedência ou estirpe não significa desprezo; pelo contrário,
pressupõe disposição para uma hospitalidade aberta a todo o mundo.
Ø
A
hospitalidade revela um alto sentido da moralidade e da política. O hóspede não
é recebido apenas como um determinado indivíduo, mas também como embaixador
substituível, como representante de outros; uma vez que os seres humanos
constituem grupos, comunidades, sociedades e nações, cada indivíduo está
inserido nesses agrupamentos. A hospitalidade confronta-nos, por isso, com algo
que tem um significado ético e político notável: o acolhimento do estranho, do
outro, daquele que não pertence “aos meus”. A hospitalidade é reconhecimento
“dos diferentes”: aceitamos que o hóspede seja diferente de nós. Damos-lhe
liberdade para discordar de nós.
Ø
A
hospitalidade é virtualmente sagrada.
Na cultura de muitos povos, sente-se que esse “outro”, que é o hóspede, está
revestido de mistério. Está envolvido por um certo carácter sagrado. O hóspede
pode ser um deus. A hospedagem dos deuses é um tema que surge muitas vezes na
mitologia grega, na Bíblia e na tradição de muitas culturas diferentes umas das
outras. Os deuses – é comum dizer-se – assumem frequentemente formas
irreconhecíveis e pedem ajuda aos seres humanos. A Carta de S. Paulo aos
Hebreus recorda-nos que alguns tinham dado hospitalidade a anjos, sem o saberem
(Heb 13, 2). Deste modo, sanciona-se religiosamente o direito de hospitalidade: é
preciso que nos comportemos com os estranhos como se tratasse da visita de um
deus. A figura do hóspede está coberta por uma ambiguidade que a apresenta como
um lugar incerto, no qual se põe em jogo para nós algo que é importante. É, ao
mesmo tempo, um lugar de temor e desejo. O hóspede torna-se símbolo de mediação
entre duas esferas diferentes. No acolhimento do hóspede, verifica-se um
encontro entre seres de ordens diversas: o divino, o distante, o ilimitado e
inconcebível, são acolhidos num âmbito humano. Por vezes, este encontro tem o
carácter de uma irrupção violenta que destrói a ordem acostumada e
desestabiliza o espaço familiar; em qualquer caso, acontece sempre algo
imponderável e desconcertante.
Ø
A
hospitalidade é um acontecimento. É
imprevisível e incontrolável. Não sabemos quando ela terá lugar, nem conhecemos
a pessoa que será nosso hóspede. O anfitrião está sempre preparado porque, no
momento mais imprevisto, o Hóspede pode bater à porta.
Ø
Cada
encontro de hospitalidade é único e
implica a atenção a dar a uma pessoa
concreta; tem de ser realizado e interpretado segundo as características
das pessoas que exercem as funções de hóspede ou de anfitrião. Os deveres do
hóspede e do anfitrião são gerais, mas são levadas a cabo no âmbito de um
horizonte limitado e finito. Uma pessoa pode estar disposta a cumprir as
obrigações que a atenção impõe em todos os momentos, independentemente das suas
peculiaridades, em virtude do facto de ele pertencer ao género humano; mas
estas exigências não se tornam presentes a não ser na forma de um ser
particular. Um anfitrião que estivesse à espera de um hóspede universal, que
fosse o único capaz de merecer verdadeiramente a sua atenção, e rejeitasse acolher
todos os visitantes que batessem à sua porta, por nenhum deles realizar
plenamente a condição humana, estaria a negar o acontecer da hospitalidade.
b) A
hospitalidade na Revelação
53. 3631A
revelação judaico-cristã é particularmente sensível ao acontecimento da
hospitalidade.[81] Começa por narrar como Deus acolheu o ser
humano no seu jardim: trabalhou para o seu hóspede (“fez desabrochar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista
e de saborosos frutos para comer”), ofereceu-lhe alimento e vestuário (“podes comer do fruto de todas as árvores do jardim…
Fez a Adão e à sua mulher umas túnicas de peles e vestiu-os”) (Gn 2,8-9, 15-17; 3, 21). A Revelação termina referindo como Deus
pede hospedagem ao ser humano: “Eis que
estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em
sua casa e cearei com ele, e ele comigo” (Ap 3, 20).
54. 3137A
hospitalidade tornou os seres humanos hóspedes de Deus, tornou Deus hóspede dos
seres humanos, e estes, hóspedes entre si. Adão e Eva foram hóspedes de Deus no
seu jardim do Éden. Abraão e, depois, o povo que viveu no Egipto, foram levados
para a terra onde corre leite e mel e ali foram hóspedes de Deus: “Nenhuma terra será vendida definitivamente,
porque a terra pertence-me, e vós sois apenas estrangeiros e hóspedes na minha
casa” (Lv 25, 23; cf.
Sl 23, 5; 27, 10). Deus foi hóspede de Abraão e hospedou-se
debaixo da sua tenda no azinhal de Mambré; depois, foi hóspede do povo que
atravessava o deserto, habitando na tenda do encontro. Finalmente, aceitou
habitar na casa do Templo: “…a glória do
Senhor enchia o templo do Senhor” (1 Rs 8,10-11). A hospitalidade abriu os olhos dos seres
humanos para que eles se vissem e reconhecessem como hóspedes entre si. Abraão
e Moisés sentiam-se forasteiros em terra estrangeira. E o mesmo sucedeu com o
povo no Egipto. Compreenderam assim que o ser humano se realiza num contexto de
hospitalidade.
55. Hospitalidade significa acolher cada um no
seio materno: é a hospitalidade recebida e oferecida em tendas, casas, cidades
ou países. A hospitalidade não se entendia em termos de simples acolhimento do
hóspede; implicava a “inclusão” do hóspede no âmbito do próprio círculo de
interesses, a sua tutela contra os inimigos, a sua protecção, o seu respeito
existencial profundo, o cuidado da sua pessoa perante todas as eventuais
necessidades.
56. Foram
ícones de3238
hospitalidade, no Antigo Testamento, Abraão, que acolheu os três homens, a
viúva de Sarepta e EliasSarepta, em hospitalidade recíproca, a
prostituta de JericóJericó, RahabRahab, que acolheu os
enviados de Josué, o ancião que acolheu o levita e a sua esposa (Jz 19), Tobias, o arcanjo Rafael e Rute.
57. 3339O
Novo Testamento é a grande explosão da hospitalidade, levada ao seu máximo
grau. Jesus é o sacramento de Deus que nos acolhe, que nos serve e cura, que
restaura a nossa dignidade e a nossa saúde, que se identifica connosco, que nos
lava os pés e morre por nós. Vale a pena, por exemplo, contemplar a figura de
Jesus no evangelho de Lucas, como um autêntico caminho de hospitalidade. Também
Jesus acolhe a hospitalidade dos seres humanos: a hospitalidade de Maria no seu
seio, de alguns fariseus, de Marta e Maria, de Zaqueu, etc. A espiritualidade cristã valoriza a
tal ponto a hospitalidade que reconhece a presença de Jesus nos pobres, nos
presos, nos enfermos, em todos aqueles seres humanos que precisam da nossa solidariedade,
do nosso amor e serviço.
58. A
grande metáfora cristã da hospitalidade é a parábola do Bom Samaritano. À
pergunta do jurista – quem é o meu
próximo? –, Jesus responde narrando a parábola. Alguém poderia supor que o
próximo era aquele que tinha caído nas mãos dos bandidos, a pessoa necessitada.
Mas Jesus desvia a questão do jurista e pergunta-lhe de novo: “Qual destes três te parece ter sido o
próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores”? (Lc 10, 36). Para Jesus, o importante não é a existência de
próximos, não é haver pessoas que conhecem as necessidades dos outros, mas o
facto de uma pessoa poder adquirir o estatuto de próximo, exercendo a
misericórdia para com os necessitados. Por isso, o jurista não deve
preocupar-se em procurar pessoas necessitadas, mas em tornar-se próximo e
exercer a misericórdia, como o Samaritano. Na parábola, hospitalidade e
misericórdia identificam-se
c) A
hospitalidade no nosso Pai, S. João de Deus
59. 51João
de Deus fez da sua vida um projecto, um caminho de hospitalidade
misericordiosa. Mas, dentro dessa grande proposta antropológica e bíblica, ele
sentiu-se chamado a enaltecer na sua vida a hospitalidade relativamente aos
mais pobres, aos mais arruinados de entre os seres humanos, os deficientes
físicos e psíquicos, sem qualquer tipo de exclusão ou discriminação. Para João
de Deus, a hospitalidade, assim entendida, constituiu a razão de ser da sua vida.
Foi esse o carisma que ele recebeu com uma intensidade impressionante e, por
vezes, incompreensível. Acolheu a todos, foi ao encontro do outro. Deu-lhes
tudo quanto tinha. Identificou-se com o outro. Dedicou-lhe o seu tempo.
Descobriu o carácter sagrado do estranho.
60. 52O
seu estilo de hospitalidade consistia em acolher e
servir o doente como a um irmão e próximo. O seu principal cuidado era consolar a sério e garantir
aos seus doentes o que lhes era necessário: “consolava-os
com palavras e provia-os do necessário, logo de manhã, antes de sair… e à noite
nunca se recolhia sem primeiro visitar todos os enfermos, um por um, e sem lhes
perguntar como tinham passado, como estavam, de que precisavam, e, com palavras
muito amoráveis, confortava-os, espiritual e corporalmente”.[82]
Amar o Senhor nos
pobres e nos enfermos dava-lhe uma alegria que não conseguia dissimular.[83]
61. A caridade de João foi
extremamente criativa. Demonstra-o bem claramente uma das descrições que ele
mesmo faz do seu hospital: “como esta casa é geral, nela se recebe toda
a espécie de doentes e toda a classe de pessoas, de modo que há aqui tolhidos,
aleijados, leprosos, mudos, loucos, paralíticos, tinhosos, e outros muito
velhos e muitos meninos; e, afora estes, muitos outros peregrinos e viajantes
que aqui acodem”.[84] Tinha-o demonstrado com a sua maneira de pedir, que transformou em
apostolado, recordando a quem dava que o primeiro benefício da esmola recai
sobre quem a dá. João de Deus não excluiu ninguém do seu amor sem limites. Um
amor que, tanto quando se centrava nos pobres como nos ricos, tinha a sua
origem no amor de Jesus Cristo e em Jesus Cristo, em quem a todos amou como a
irmãos e irmãs.
62. 53A identificação com Cristo fez de João de Deus um bom mestre de misericórdia: Deus concedeu-lhe um coração compassivo e profundamente humano. Como Jesus, ensinou mais com as obras do que com as palavras. Não se preocupou com a elaboração de estatutos
ou regulamentos; limitou-se
a viver o dom que o animava, a fazer o bem, a orar por longas horas durante a noite, a visitar um por um os doentes e a escutar
a todos com muito grande paciência, consolando e dando a cada
um segundo as suas necessidades e possibilidades. Como Jesus, viveu, amou e serviu consagrando
a vida por todos; como Jesus, ditou um só mandamento que tudo iluminaria quando, mais tarde, viesse
a ser necessário estabelecer normas que ajudassem a manter vivo o seu espírito
nas pessoas e nas obras da Ordem.[85] Os
Irmãos que seguiram
o seu estilo de vida aprenderam dele a acolher, a servir e a amar os pobres
doentes com os gestos que o viram praticar e que logo recolheram nas
Constituições da Ordem, para perpetuar o modelo de hospitalidade herdado do Fundador:
“Procurar-se-á em nossos
Hospitais que o serviço que se fizer ao Senhor nos seus pobres lhe seja
agradável, para o que (…) antes de os deitarem na cama, com a caridade que se
requer, lhes serão lavados o cabelo e as unhas, não sendo prejudicial à saúde,
e também lhes lavarão as mãos e os pés e, conforme a necessidade, todo o corpo,
com água quente temperada para o efeito; e feito isto, serão vestidos com uma
camisa limpa e ser-lhes-á posta uma touca ou um pano na cabeça e, limpo desta
forma o doente, será deitado na cama, a qual estará feita com lençóis e
almofadas limpos; e, se for Inverno, serão aquecidos e, desta maneira lhes
serão aplicados os remédios corporais”.[86]
d) A
Hospitalidade nas Constituições e nas obras escritas da Ordem
63. 5434A
razão de ser da vocação do Irmão de S. João de Deus é manter “viva no tempo a presença misericordiosa de
Jesus de Nazaré”, encarnando “com
profundidade cada vez maior os sentimentos de Cristo para com o homem doente e
necessitado”, para manifestar que ele “permanece
vivo entre os homens”.[87] Jesus de Nazaré é a “fonte e a coroa” da nossa espiritualidade.[88] O Irmão tem uma missão e um ministério
completamente peculiares: representar Jesus no serviço prestado aos enfermos,
no acolhimento aos pobres e abandonados. Jesus transmitia a paz do Reino
àqueles que estavam cansados e angustiados, a libertação a quantos se sentiam
oprimidos pelo mal e pelas enfermidades, a serenidade a quantos se encontravam
perturbados.
64. 5536O
objectivo do texto das Constituições é oferecer uma referência de
espiritualidade nova para a Ordem em novos tempos. A Ordem considera que, sem
conversão e um sério compromisso espiritual, não pode levar por diante a
renovação pedida pelo Concílio.[89] No seu processo de renovação, a Ordem
colocou a si própria diversas opções, nomeadamente:
Ø
A humanizacionhumanização da assistência: a primeira finalidade da oOrdem consiste em
defender a dignidade do ser humano doente (Const.
10d; 12c; 23a; 28b; 43d).[90] O apostolado hospitaleiro identifica-se
deste modo com a humanização. Ao mesmo tempo, descobre-se a necessidade de
humanizar a vida religiosa e de potenciar os aspectos humanizantes nos Irmãos:
“curar-se a si mesmos, enquanto curam os outros”. Se não prestarmos atenção à
dimensão humana, perdemos o sentido próprio do carisma: o de sermos servos da
hospitalidade.
Ø
Objectivo da vocação hospitaleira é estabelecer uma Aliança com o ser humano
que sofre, como forma de exprimir carismaticamente a Aliança com Deus.
Ø
Consiste, além disso, em
criar laços de fraternidade. João de Deus sentiu-se irmão de todos: desde os mais pobres até ao Príncipe Filipe.[91] Criar laços de fraternidade é uma
peculiaridade que deve caracterizar o Irmão, a começar por sentir-se irmão de
quem sofre e de quantos partilham com ele o ministério da hospitalidade (Const.
45b; 46b.c; 23) – funcionários, voluntários
e benfeitores – com os quais é chamado a viver uma Aliança em favor do serviço
e da promoção da vida.[92]
Ø
A
hospitalidade deve ser compreendida abrangendo a opção preferencial pelos pobres e asu humanização (Const. 5a)[93] do serviço ao doente e aos necessitados
em geral.
4. Repensar
a Misericórdia e a Hospitalidade no nosso tempo: a relação com o estranho
a) A
relação com “o estranho”
65. 41Os
fenómenos da hospitalidade e da misericórdia falam-nos da relação do ser humano
com o próximo e com “o estranho”. Essa realidade estranha pode ser o amigo
(comunhão!) ou o inimigo (hostilidade!), o estrangeiro que nos assusta, o nosso
próprio corpo como um cenário do padecer, ou a alienação dos resultados das
nossas próprias acções (cf. Rom 7). O
encontro com o “outro”, o “amigo”, o “inimigo”, o “estrangeiro”, o “estranho”,
pode provocar reacções muito diferentes: alegria, acolhimento, solidariedade,
irritação, medo, curiosidade, interesse pelo exótico. O que nos é desconhecido
no outro produz medo; surge simultaneamente como ameaçador e fascinante:
ameaça, porque entra em competitividade com o próprio; fascina, porque o
estranho desperta possibilidades até então desconhecidas na própria vida.
66. 42O
estranho é sempre aquele que surge fora
do âmbito próprio, do próprio espaço, o que pertence a outro. É aquele que
se nos opõe, o incompreensível, o insólito, o heterogéneo, o não disponível. A
realidade parece ser estranha quando está relacionada com “o meu”, com “o
próprio”; para que algo possa ser definido como estranho, ou próprio, é necessário
que se reconheça a relação existente entre ambos os termos; por isso, o
estranho é tal, quando, em certa medida, nos pertence; reconhecemos o próprio a
partir do estranho, e o estranho, a partir do que é próprio. Por isso, o
hóspede não é o viandante que aparece e logo se vai embora, mas o viandante que
chega e permanece; que fica, embora temporariamente. O hóspede ocupa um espaço
de fronteira. O mesmo se diga do anfitrião que espera por ele. O espaço que
ambos eles ocupam não é o seu próprio.
67. 3743O
estranho é também, e acima de tudo, aquele que surge fora do nosso próprio tempo. Cada pessoa vive “o seu” tempo. Podemos
falar dos outros como de “outros tempos”, de outros ritmos. Conviver significa, por isso, calcular
tempos e ritmos, harmonizar o tempo dos outros com o meu próprio tempo. A
hospitalidade torna-se uma questão estreitamente vinculada ao respeito do tempo
dos outros, e não tanto, ou não só, ao respeito pelos seus âmbitos espaciais.
Considerado na sua própria temporalidade, o outro é geralmente um importuno, que se
nos escapa o detiene nuestra velocidad particular, alguém que,
causando incómodo, tende a adiantar-se ou a atrasar-se. Os outros são os mais
lentos ou os mais rápidos que nós, os que habitam uma temporalidade que, seja
por que razões for, nos são estranhos ou nos parecem incómodos. Verdadeiramente
estranho não é aquele vive longe de nós, mas os que vivem noutro tempo. O
marginalizado não está na periferia do espacial, mas vive literalmente noutro
tempo. Por isso, a hospitalidade tem muito a ver com a capacidade de “perder
tempo”, ou de “dedicar o próprio tempo”.
68. 3844O
estranho – seja espacial, seja temporal – é sempre aquele que nos interpela, aquele que se nos depara de forma
imprevisível, inesgotável. Requer a nossa resposta. Não responder ao estranho é
também uma maneira de lhe responder: neutralizamos assim as perguntas futuras,
protegemo-nos contra um futuro imprevisível. O estranho pode pôr em crise a
nossa própria identidade. Nisso reside a sua beleza e o seu perigo. A experiência
cultural do estranho pressupõe sempre um confronto com as possíveis
alternativas da nossa vida e implica uma provação para nós mesmos. O estranho é
uma reserva que nos permite enriquecer e corrigir a limitação das nossas
posições. Durkheim dizia – neste sentido – que a qualidade moral de uma cultura
mede-se pela sua relação com o estranho. Aquilo a que respondemos ultrapassa
sempre aquilo que oferecemos como resposta.
b) Aprendizagem
da hospitalidade e da misericórdia
69. 3945A
hospitalidade, assim entendida, e a misericórdia, como amor e não como
violência, revelam-nos verdades fundamentais do ser humano. A pessoa
descobre-se a si mesma quando vai ao encontro das outras pessoas. A descoberta
de si mesmo é um acto inter-subjectivo. Conhecemos os nossos direitos e deveres
na medida em que formos ao encontro do outro. Reconhecer-se como hóspede, ou
como anfitrião, como quem é acolhido ou como quem oferece hospitalidade,
significa descobrir uma identidade que dá origem a obrigações e responsabilidades.
Os indivíduos constituem-se como pessoas apenas através da perspectiva
aprovadora ou recriminatória de outros.
70. 4046É
sábio aquele aforismo de Merlau-Ponty que diz: “devemos aprender a considerar o próprio como estranho e o estranho
como próprio”. Isso só se consegue aprendendo a exercer um tipo de
hospitalidade e de misericórdia que não seja avassaladora, nem indiferente, que
seja capaz de conviver com o heterogéneo e que saiba desculpar as
contingências, próprias e alheias. Aprende-se a hospitalidade e a misericórdia
acostumando-se a interessar-se pelo outro, a respeitá-lo, e procurando assumir
as suas peculiaridades.
c) Em
missão de misericórdia e hospitalidade, “hoje”
71. 41 47Nas
actuais condições de vida, a mobilidade humana tornou-se muito fácil e a
experiência do outro é cada vez mais frequente na vida das pessoas. A vaga de
imigrações e emigrações tornou-se avassaladora. Vivemos na sociedade do
movimento, da globalização. Vivemos em sociedades multiculturais, que nos fazem
descobrir e sentir o pluralismo. É-nos pedida tolerância para com o diverso, o
outro, o estranho. Esta situação faz-nos ver que já não há blocos compactos,
homogéneos, que deixou de haver realidades totalmente definidas e delimitadas;
surpreendemo-nos ao constatar que o próprio se torna estranho e o que
inicialmente era estranho, diverso, passa para o âmbito próprio. As sociedades
complexas exigem uma maior sensibilidade para responder às exclusões que a
afirmação exagerada da identidade ou qualquer outra ordem social originam. Na
sociedade contemporânea verifica-se uma perda de gravidade dos sujeitos, que
ficam menos vinculados do que antes ao peso de um território; são menos
controláveis; vivem mais livres e interdependentes. Encontramo-nos num cenário
em que faz pouco sentido insistir na identidade como se ela fosse algo definido
e definitivo. Hoje, aceitamos mais facilmente falar de “identidade complexa” (Amin Maalouf). É a
partir do estranho que se compreende melhor o que é próprio.
72. São
sobejamente conhecidas a4248s situações
perversas do mundo de hoje. O número de pobres e de pessoas marginalizadas não
só não diminui como não pára de crescer, apesar das novas tecnologias e dos
processos de globalização. A concepção sagrada do ser humano cede o lugar
perante os ídolos diante dos quais se prostram as sociedades modernas,
prestando-lhes culto. A educação que a sociedade (meios de comunicação,
ambiente socio-económico) oferece às novas gerações não enaltece o valor da
hospitalidade, mas, antes, privilegia o individualismo, uma visão materialista
e hedonística da vida. Esta mentalidade não detém – nem está preparada para
isso – fenómenos perversos, como o consumo e o tráfico de drogas, a pornografia
e a desordem na esfera do amor humano, com a consequente perda de dignidade da
sexualidade humana, o crescimento da pobreza e da injustiça, o surgir de tantas
e novas doenças que afligem milhões de seres humanos. À degradação da
humanidade acrescentam-se a degradação ecológica – água (zonas costeiras,
recursos marinhos devido às actividades industriais mineiras), poluição do ar
(indústrias têxteis, alimentares ou de bebidas, refinarias petrolíferas…),
manipulação genética – e a degradação ambiental (pilhagem da natureza,
esgotamento dos recursos, ameaça de desequilíbrio ecológico).
73. 49A nossa
capacidade de hospitalidade é fortemente desafiada pelo fenómeno da explosão
demográfica. Todos os dias nascem no mundo mais 220.000 pessoas. O rápido
crescimento da população faz surgir novos desafios; desenraizamento das
famílias, urbanização, exploração insustentável dos recursos disponíveis e
acessíveis para satisfazer as grandes necessidades da população. Em muitos
lugares e em muitas pessoas, parece ter-se perdido o sentido da sacralidade da
vida: guerras fratricidas, violência contra as mulheres indefesas, exploração
de crianças inocentes, capitalismo desumano que alarga cada vez mais o fosso
cavado entre ricos e pobres. Há um grande desnível entre os cerca de 30% de
seres humanos que vivem na opulência material e os 70% que estão condenados a
manter-se na pobreza, privados dos bens indispensáveis para as suas
necessidades básicas; as culturas dos pobres estão também ameaçadas pela falta
de recursos e pela sedução de modelos de desenvolvimento material que lhes são
alheios.
74. 50As
atitudes de acolhimento e reconhecimento, de serviço e de solidariedade
(hospitalidade!) dos nossos contemporâneos revelam todo o seu esplendor em
múltiplas instituições e iniciativas: diversas formas de voluntariado, ONGs,
instituições sociais de todo o tipo, exércitos de paz, movimentos a favor da
justiça, da ecologia, da dignidade humana, rejeição de todo o tipo de
xenofobia, etc. Há igualmente muitos povos na Terra que conservam as suas
preciosas tradições de hospitalidade como um valor inestimável. É verdade, por
outro lado, que, nestes povos, o valor da hospitalidade tem vindo a diminuir em
benefício de um outro valor – ainda mais fundamental – a segurança; a
insegurança provocada pela violência, por guerras, pela criminalidade
organizada, pelo terrorismo, tornou-se um fenómeno tão ameaçador que os valores
tradicionais da hospitalidade se vêem fortemente afectados. Dentro de todo esse
emaranhado de graça está presente, com toda a sua tradição, a Ordem dos Irmãos
de S. João de Deus. Ela pretende estar à altura dos tempos e responder com novo
vigor à sua vocação específica, oferecendo âmbitos em que a organização, o
profissionalismo a técnica e a humanização se conjuguem e harmonizem com
atitudes e gestos de acolhimento, de serviço, de solidariedade e de eliminação
do sofrimento, físico e moral.
III. O Itinerário espiritual
Percorrer “hoje” o caminho de
João de Deus
1. A espiritualidade, hoje
75. Há
na Igreja – e também no mundo de hoje! – uma profunda sede de espiritualidade.
Perante a falta de sentido, do aumento de problemas que parecem irresolúveis,
da vertigem da era do movimento, todos sentimos necessidade de uma ligação ao
Mistério, de uma conexão ao Espírito que dê estabilidade e razão de ser.
Estamos sedentos de espiritualidade. A própria Igreja canalizou esta sede
através de diversas propostas de espiritualidade.
76. A57ssistimos
hoje a uma espécie de globalização, ou mundialização, da espiritualidade. O
diálogo inter-religioso produziu resultados maravilhosos neste campo. Mas, ao
mesmo tempo, está a ser reivindicado o carácter mais local da espiritualidade.
Por isso, está a esboçar-se uma espiritualidade com características africanas,
ou asiáticas, americanas ou europeias… No começo de um novo século, entendemos
a espiritualidade de uma forma mais integral. A espiritualidade tem que ver com
o corpo e com a alma, com a pessoa individualmente considerada e com a
sociedade, com o local e com o mundial, com o religioso, em particular, e com o
religioso ecuménico… O mesmo acontece com a nossa Ordem. Existe nela uma
espiritualidade globalizada, que responde ao dom recebido, mas, ao mesmo tempo,
a nossa espiritualidade peculiar adquire traços característicos e locais nas
diferentes regiões do mundo.
77. Entendemos
a espiritualidade como processo, caminho. Nela, distinguimos etapas. As nossas
Constituições apontam-nos metas. Torna-se necessário descobrir o caminho para
as alcançar, encontrar o método de espiritualidade mais adequado. O Espírito é
o nosso “mestre interior”: conduz-nos à perfeição do Amor, da Aliança, da união
com Deus, com os outros e com o cosmos. Nesta vida, nunca chegaremos à meta e,
por isso, são eloquentes as palavras que Gregório de Nisa escreveu na sua “Vida
de Moisés”:
“Interromper a
corrida rumo à virtude é o princípio da corrida para o vício… Tudo o que está
circunscrito dentro de limites não é virtude… O apóstolo, correndo sempre pelo
caminho da virtude, nunca deixou de seguir em frente, pois parecia-lhe perigoso
deter-se na corrida… Talvez a perfeição da natureza humana consista em estar
sempre dispostos a alcançar um bem maior”. 59
78. A
Igreja apresenta aos religiosos esta mesma perspectiva na Instrução “Partir de Cristo” (da
Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida
Apostólica), onde constata
que:
“É, precisamente, no simples quotidiano que a vida consagrada cresce, em
progressivo amadurecimento, a fim de se tornar anúncio de um modo de viver
alternativo aos do mundo e da cultura dominante… Além da presença activa de
novas gerações de pessoas consagradas, que tornam viva a presença de Cristo no
mundo, bem como o esplendor dos carismas eclesiais, é igualmente significativa,
de modo particular, a presença escondida e fecunda de consagrados e consagradas
que conhecem a velhice, a solidão, a doença e o sofrimento. Ao serviço que já
prestaram e à sabedoria que podem ainda compartilhar com os demais, acrescentam
eles a própria e preciosa contribuição, unindo-se com a sua oblação ao Cristo
sofredor e glorificado, em favor de seu Corpo que é a Igreja” (Cf.
Cl 1, 24; Partir de Cristo, 6).[94]
2. O paradigma, ou modelo, do
nosso caminho espiritual
79. “A nossa hospitalidade tem a sua origem na
vida de Jesus de Nazaré” (Const. 20), a quem imitou fielmente o nosso
Fundador, entregando-se inteiramente ao serviço dos pobres e dos doentes (Const. 1a). Então, João de Deus somos nós: partilhamos os
seus dons, a sua fé, a sua sensibilidade perante o sofrimento humano, a sua
entrega incondicional no serviço, a sua humildade e criatividade caritativa.[95] O seu itinerário espiritual é a proposta
pedagógica que o Espírito Santo nos oferece para desenvolvermos em nós o
carisma da hospitalidade. Também nós, como ele, somos pessoas em caminho,
viandantes e peregrinos no meio de um mundo globalizado e enormemente complexo.
A sua peregrinação interior, a sua caminhada espiritual até ao rebaixamento
mais profundo, até à miséria humana, são para nós a melhor proposta de
espiritualidade, de missão e de comunhão (Const. 5): são uma casa e uma escola de espiritualidade!
80. As etapas que João de Deus percorreu – “esvaziamento, chamamento, alteração,
identificação” – indicam-nos também as etapas do nosso caminho.
Entendemo-las, não como etapas lineares e sucessivas, mas em espiral, pois
reproduzem-se em cada uma das épocas da nossa vida. João de Deus torna-se para
nós o símbolo de um caminho que nos conduz ao esvaziamento (kénosis)
progressivo de nós mesmos e, deste esvaziamento, ao serviço até à morte (cf. Fl 2, 6-11).
a) Experiências
do esvaziamento: desinstalar-se para “nascer de novo”
81. ¿Cuál está
siendo nuestra formación? El tiempo de formación es "el tiempo de los
métodos". Es el tiempo en que
aprendemos a hacer las cosas: estudiar, expresamos, realizar nuestro trabajo
profesional, aprendemos a meditar, a orar, a ser buenos religiosos en nuestro
Instituto. Desde aquí hacemos críticas a los demás: ellos no han sabido hacer,
decir: nosotros haremos las cosas de otra manera, porque pondremos en
práctica aquello que sabemos. En esta etapa Moisés ve la
realidad con "los ojos de los métodos",
es decir, a través de una ideología que poco a poco vamos haciendo nuestra. No
nos adecuamos a la realidad tal como ella es.
Entramos en contacto no con la realidad misma, sino con la imagen que de ella
tenemos. Em qualquer itinerário parte-se de um lugar para se
chegar a outro. A saída implica o desinstalar-se: aquele que era o nosso estado
de vida normal, o nosso território vital, começa por perder sentido.
Sentimo-nos como se fôssemos estrangeiros na nossa própria casa. Assim começa o
processo que caracteriza o início de um caminho, que, muitas vezes, nem sequer
sabemos até onde nos conduzirá. Somos João de Deus e, como ele, sentimos a
vacuidade das coisas deste mundo; como ele, fazemos a experiência de nos
desinstalarmos.
82. Esta
experiência está magistralmente plasmada na figura bíblica de Moisés e do Povo
de Israel. Num primeiro momento, Moisés encarava a vida com a sabedoria dos
egípcios. A pouco e pouco, após um longo percurso que o levou a atravessar o
deserto, descobriu que quem conduzia a sua vida e a do Povo era Javé. Renunciou
por isso às seguranças imediatas e aos falsos deuses, e aceitou na sua vida a
iniciativa do Deus único que obriga a levantar a tenda, a caminhar vencendo
obstáculos e barreiras: barreiras mentais e sentimentos (medo, tendência ao
desalento, recusa do esforço que exige a conquista do futuro prometido), que
são mais fortes e violentas do que o deserto e os rios.
83. O
caminho espiritual começa por uma primeira experiência da limitação do mundo,
da vida. Apercebemo-nos, por graça de Deus, do carácter contingente de tudo
quanto existe – nada do que vemos é absolutamente necessário! Uma pessoa
procura o sentido da vida, da história, e só encontra respostas parciais ou
contraditórias. Aquilo que parece ser mais promissor acaba, afinal, por nos
desiludir. As carências afectivas, a frustração, as decepções e os fracassos
(família, amizades, estudo, projectos…), induzem-nos a colocar a questão da
consistência dos valores que predominam na sociedade e a procurar aqueles que
podem dar sentido à vida. Mesmo os maiores êxitos se podem tornar insuficientes
para preencher o desassossego e os anseios do coração humano: “fizeste-nos para Vós, Senhor, e o nosso
coração anda inquieto enquanto não repousar em Vós” (S.
Agostinho). E, acima de tudo,
Jesus adverte: “Que aproveita ao homem
ganhar o mundo inteiro, perdendo-se ou condenando-se a si mesmo?” (Lc 9, 25). A experiência do chamamento, da vocação, costuma
ser o primeiro passo no caminho para mudar de vida. A voz de Deus é poderosa e
apaga outras vozes; convida a ir “mais além” e suscita a nostalgia de algo
definido.
84. Em
diversas ocasiões, ao longo da vida, emerge, ou pode emergir esta experiência.
São aqueles momentos em que sentimos a necessidade de “nascer de novo”, porque
se verificaram grandes insucessos, interiores ou exteriores. Costumam ser
momentos caóticos, na vida, experiências de morte, que parecem “vedar” qualquer
saída com futuro. A experiência do vazio
pode conduzir ao desânimo, à aceitação passiva da realidade, a deixar-nos levar
pela vida, em vez de sermos nós a conduzi-la e a vivê-la; também pode ser um
sinal e um alarme que nos permita agarrar a própria existência com ambas as
mãos e deixar que se repercutam na alma as questões e os estímulos que, apesar
de silenciados, estavam vivos.[96] A experiência do vazio, se for acolhida,
se lhe opusermos resistência, se não for superficialmente mitigada, permitirá a
graça de um recriação e restauração interiores.
85. Corresponde
esta etapa ao que Teresa de Jesus denomina as duas primeiras moradas, ou àquilo
que João da Cruz denominava o início da subida ao monte Carmelo. S. João de
Deus descreve-as como uma experiência de morte inserida num mundo de morte e
sem saída. Corresponde também aos primeiros passos na vida espiritual que João
de Ávila – mestre espiritual do nosso Fundador – descreve como a etapa do
desligar-se (des-escuta) da linguagem
do mundo, demónio e carne (Audi, filia, I A).
b) “Chamamento”
e chamamentos ao longo da vida: “Escuta, ó filho!”
86. Quando uma pessoa renuncia a viver a partir
de si mesma, descobre um desígnio misterioso sobre a sua própria vida. Então, é
capaz de escutar a voz de Deus e de experimentar a energia do Espírito que a
conduz e guia para “o desconhecido”. A experiência vocacional foi comparada a
uma “sedução”, ou a uma “atracção irresistível”. Jesus, o Filho de Deus, vem ao
nosso encontro, corta-nos o caminho e convida-nos a mudar de direcção e a
segui-lo.
87. O chamamento
acontece, num primeiro momento, quase de forma imperceptível. Os acontecimentos
felizes, ou os momentos de desânimo sucessivos à experiência de frustrações ou
desilusões, são a linguagem de Deus. O que é certo é que a voz de Deus, num
momento concreto, ecoa no fundo da pessoa e remove estratos que lhe permitem
pôr-se em sintonia com ela: “escuta, ó
filho; abre os teus ouvidos”. Experimenta-se, por via de contraste ou de
coincidência com as aspirações mais profundas, a sedução de uma maneira de
viver e de Jesus de Nazaré manifestar o seu amor ao Pai e aos seus irmãos, os
homens. Experimenta-se a urgência de mudar o próprio estilo de vida, de quebrar
a monotonia de um cristianismo feito de práticas repetitivas sem maiores
complicações, nas quais se procurava, quase sempre de forma inconsciente, obter
a benevolência de Deus.
88. A
sedução do Mistério não acontece sempre em âmbitos de pura transcendência, de
isolamento e de oração íntima com Deus. Esta sedução acontece com frequência,
como na vida de S. João de Deus, no encontro com os crucificados do mundo, com
as pessoas marginalizadas e desprezadas. Nelas, descobre-se o rosto de Deus e o
chamamento de Deus torna-se, neles ou nelas, irresistível, profundamente
interpelante. No rosto dos desfigurados, descobre-se a presença do
Transfigurado.
89. O chamamento, a vocação, é uma etapa na
qual se torna necessário o discernimento, o acompanhamento espiritual, a
resposta a não poucas perguntas. Os mestres espirituais falam de “início do
caminho”, e de terceiras moradas. Aqui, torna-se necessário, no entanto, um
grande esforço ascético que permita o reajustamento da própria vida com quanto
Deus nos propõe.
90. Ao longo da vida verificam-se “novos
chamamentos” que aprofundam e dão firmeza ao primeiro. São aqueles momentos em
que descobrimos uma nova orientação, em que nos sentimos chamados a mudar de mentalidade
(metanoia), em que sentimos a
necessidade interior de sermos enviados para novas fronteiras de missão.
Responder ao chamamento de Deus em tais circunstâncias é tão vital como
responder no início. Se não houver resposta, o caminho espiritual fica
bloqueado.
91. A porta de entrada no caminho espiritual é,
certamente, a vocação, mas ela deve ser acompanhada pela resposta. A resposta
exprime-se, antes de mais, na oração, na obediência e no serviço humilde. S.
João de Ávila pedia para “ouvir a primeira Palavra… só Deus, que é a suma
Verdade” (Audi, Filia, I, B, 1),
“pela fé” (Audi, Filia, I, B, 2).
c) Alteração
e Consagração
92. Quem tem consciência de ter sido chamado
por Deus para uma vida segundo o estilo de João de Deus e responde a esse
chamamento, faz em si mesmo a experiência de se tornar como que o sujeito de
uma misteriosa e progressiva transformação interior, que o transforma e torna
consagrado, habitado pelo Espírito para uma forma de vida em despojamento,
nudez e esvaziamento de si próprio.
93. Tal como sucedeu com o nosso Fundador, Deus
fala-nos através do clamor da humanidade que sofre por doença ou por causa da
pobreza e da injustiça. Desperta e fortalece-se em nós o amor compassivo e
misericordioso, o acolhimento, a benevolência, o sentido de solidariedade e de
fraternidade. Transforma-se, assim, a escala de valores em que, até esse
momento, se baseava a nossa vida. Ao consagrarmo-nos em hospitalidade, o
Espírito Santo torna-nos capazes de manifestar na nossa vida o amor especial do
Pai para com os que sofrem, e de mantermos vivo no tempo o estilo de vida de
Jesus de Nazaré, vivendo-o em castidade, pobreza e hospitalidade, cooperando na
missão da Igreja, servindo a Deus no homem sofredor (Const. 1d; 2b; 7b).
94. Esta acção transformadora do Espírito é
vivida e acolhida na celebração litúrgica da nossa Profissão religiosa (cf. Evangelica Testificatio, 47; Const. 9a).
Nela, reconhecemos que Deus nos vai consagrando através dos múltiplos
acontecimentos da vida.
95. Não é suficiente participar em actos de
consagração; é necessário deixar-se consagrar. Quando tal sucede, Deus faz tudo
o resto. Entra-se numa etapa mística na qual Deus, por meio de Jesus e do
Espírito, se torna o grande protagonista da vida do seu eleito. Os mestres
espirituais definem esta etapa como “quartas moradas”, que corresponde à
passagem de uma etapa ascética para outra, mais mística. João de Deus não viveu
esta etapa no isolamento contemplativo, mas na contemplação mística no âmbito
da acção de caridade, misericordiosa e hospitaleira, sentindo-se ungido pelo
Espírito no seu contacto com a miséria humana. É esse também o nosso caminho de
consagração constante. S. João de Ávila ensinava que a escuta da voz de Deus
introduz o crente numa nova visão e numa inclinação diante da vontade Deus, que
o leva a sair e a esquecer-se deste mundo mau, e mesmo da casa paterna (Audi, Filia, II-V).
d) Identificação
mística com Jesus pobre, marginalizado e sofredor
96. Nunca termina nesta vida o caminho no
Espírito, que tem por objectivo a identificação total com o Senhor. As últimas
etapas colocam-nos perante uma transformação, ou transfiguração, cada vez
maior, que pode ser adequadamente descrita como “desponsório místico”, uma
autêntica simbiose: “Já não sou eu que
vivo, é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20).
O Espírito manifesta-se e actua em nós como Hospitalidade; configura-nos com o Cristo compassivo e misericordioso do
Evangelho, para manter viva no tempo
a sua presença misericordiosa (Const. 2).
97. Estas últimas etapas da vida espiritual são
as que nos permitem descobrir as potencialidades secretas da nossa vida, que
ultrapassam toda a imaginação e desejo. Quem renuncia a ser conduzido até este
ponto, torna-se um frustrado. Os Mestres de Espiritualidade referem-se a estas
últimas etapas como “últimas moradas”,
ou “chegada ao cimo do Monte”, ou
ainda como o momento em que Deus se sente cativado pela alma do crente (Audi, Filia, VI).
3. Participantes no caminho do Povo de Deus
98. O nosso caminho espiritual carismático,
comunitário e pessoal, insere-se no grande Caminho espiritual do Povo de Deus,
que é a Igreja. O caminho espiritual da Igreja surge de uma forma
paradigmática, exemplar e pedagógica no ciclo sacramental e litúrgico. Esse é
também o nosso caminho. O ciclo litúrgico-sacramental
do Ano Litúrgico é o grande contexto do nosso caminho espiritual. Ao longo
desse Ano, entramos em contacto com toda a mensagem revelada. A leitura contínua que a santa mãe Igreja
nos propõe, dia após dia, semana após semana, é o melhor alimento espiritual, o
melhor guia pelos caminhos do Espírito.
99. O Concilio Vaticano II disse-nos que “a liturgia é simultaneamente a meta para a
qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde emana toda a sua força
[...], pois, em especial da Eucaristia, corre sobre nós, como de sua fonte, a
graça, e por meio dela as pessoas conseguem com total eficácia a santificação
em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as
outras obras da Igreja”.[97]
Por isso, a celebração diária da Eucaristia, no contexto do ciclo litúrgico:
Ø
incorpora-nos
no sacrifício de Jesus e no culto que Ele oferece ao Pai (Const. 7c);
Ø
exprime e
realiza a nossa missão como família hospitaleira[98];
o amor de Jesus, presente na Eucaristia, renova
o nosso espírito hospitaleiro (Const. 30);
Ø
através da
Eucaristia e da presença de Jesus nos nossos sacrários, torna as nossas
comunidades autênticas escolas de hospitalidade.[99]
A nossa hospitalidade eucarística é a fonte da nossa hospitalidade carismática.
E a nossa hospitalidade carismática reforça e vivifica a hospitalidade eucarística,
que manifestamos na celebração diária da Eucaristia e no acolhimento orante da
presença real do Senhor nos nossos oratórios.
100. Nos tempos penitenciais da Igreja, assim como
nas celebrações comunitárias e pessoais da Reconciliação, celebramos a
Misericórdia de Deus, reconhecemos a nossa colaboração e participação no mal,
abrimo-nos a Deus e à Comunidade e acolhemos a graça transformadora. O
sacramento da reconciliação é central na nossa espiritualidade que pratica a
misericórdia e o acolhimento incondicional e hospitaleiro do outro.
101. O sacramento da unção dos enfermos teve
sempre um lugar privilegiado no serviço pastoral e espiritual prestado aos
doentes. João de Deus procurou-o com grande solicitude. A tradição da Ordem
manteve-o como manifestação de verdadeiro amor aos doentes. A mãe Igreja
oferece-nos a possibilidade de celebrarmos a proximidade misericordiosa e
transformadora de Jesus através do sacramento
da unção dos enfermos. A celebração comunitária deste Sacramento – como
sujeitos da celebração ou como comunidade celebrante – faz-nos experimentar a
presença real e curadora de nosso Senhor Jesus no mundo da dor e da
enfermidade. Participar na oração e unção da Igreja a favor dos doentes é um
dos momentos mais importantes no nosso crescimento espiritual, como Irmãos
hospitaleiros.
102. A Liturgia
das Horas, em que participamos regularmente, une-nos intensamente ao
Caminho do Povo de Deus. A recitação dos Salmos, a escuta da Palavra, mais eficaz
do que uma espada de dois gumes, guia a nossa vida pelo Caminho do Senhor, de
maneira infalível. Por isso, não queremos prescindir desse ritmo vital. Quando
participamos na oração da Igreja, estamos também em comunhão com a humanidade,
de modo especial com os homens e mulheres que sofrem – a Igreja do sofrimento
–. É importante que renovemos a consciência dessa dimensão da nossa
espiritualidade: somos uma voz que abençoa, que louva, que dá graças e suplica
o Deus da vida e Pai da misericórdia, em nome daqueles que estão
impossibilitados de o fazerem pessoalmente ou não que experimentaram a
felicidade da sua filiação divina.
4. Participantes do Caminho de
Espiritualidade da Ordem e suas comunidades
a) Transmissão
carismática
103. O nosso caminho espiritual é o Caminho da
Ordem e das comunidades nas quais nos integramos. A espiritualidade
concretiza-se através de processos de transmissão, de contágio, de comunhão.
Por isso é que é tão importante a comunidade, a Ordem (do presente e do
passado), como escola de espiritualidade da hospitalidade. Recebemos o carisma
da hospitalidade numa comunidade de Irmãos, reunidos pelo Senhor Jesus, para caminharmos juntos ao encontro do Pai e
para comunicarmos aos homens a boa nova da salvação (Const. 26a)
e da assistência. Entrar na comunidade da Ordem significa integrar-nos numa
grande tradição espiritual e comprometer-nos em fidelidade criadora com ela,
para que o Espírito avive, por nosso intermédio, o dom da hospitalidade
naqueles que são portadores do mesmo.
104. Os Irmãos e os organismos mais antigos
adquirem, neste contexto, um novo relevo. Eles são as testemunhas, os ministros
da tradição espiritual. O contacto com eles torna-se vivificante. A sua
presença e o seu influxo são particularmente importantes naqueles lugares onde,
sendo os Irmãos ainda jovens, existe o perigo de um corte com as origens. Cabe
aos Irmãos mais velhos e aos Irmãos formados no seio da Grande Tradição,
exercer uma função de paternidade carismática.
b) O
amor fraterno
105. Como João de Deus, somos chamados a construir
laços de fraternidade. Um dos efeitos mais negativos da secularização é a perda
de identidade social do religioso na nossa sociedade. Somos marginalizados
sociais na medida em que a sociedade deixou de reconhecer o nosso papel de
pessoas consagradas. A pessoa precisa de se sentir socialmente integrada e
aceite. A resposta a esta necessidade consiste em encontrar um grupo de
pertença, de fortes relações primárias, onde seja possível encontrar o apoio
social que ajude a reforçar a própria identidade. O nosso lugar de referência
por excelência, para encontrar o sentido da nossa identidade, é a comunidade em
que vivemos. Mas, se devido ao individualismo espiritual, a comunidade não
oferecer apoio a essa razão profunda, vocacional, da nossa existência como
consagrados, não surpreende que haja quem procure fora dela, ou privatize, esta
dimensão, e procure identificar-se socialmente pela actividade que desempenha
(enfermeiro, trabalhador social, etc.), reduzindo a pertença comunitária às
tarefas que executa, e identificando-se não por aquilo que é, mas pelo que faz.
106. A hospitalidade que recebemos como dom
empenha-nos a viver a fraternidade e a manifestar as atitudes de acolhimento,
compreensão, benevolência e serviço, em primeiro lugar no seio da própria
comunidade (cf. Const. 36b). A misericórdia experimentada
encoraja-nos a valorizar os outros irmãos como depositários do mesmo dom e a
desenvolver os laços de comunhão que o Espírito estabeleceu entre nós e para
sermos sinais e testemunhas de que as diferenças de idade, cultura e etnia
passam para segundo plano quando a relação estabelecida se baseia nos valores
que apoiam a convivência humana: ou seja, a valorização e aceitação do outro
por aquilo que ele é.
107. O sentido de sinal da fraternidade em
comunhão mantém hoje toda a sua actualidade e o mesmo vigor que Jesus lhe
conferiu: trata-se de um convite a acreditar nele como Enviado do Pai e como
sinal de que somos seus discípulos (cf. Jo 13, 35; 17, 21; Const. 26b).
A possibilidade de ser sinal para a sociedade reside sobretudo na capacidade de
comunhão entre os irmãos, no amor fraterno, que deve ser sempre entendido como
valor evangélico: “a comunhão fraterna,
antes de ser instrumento para uma missão em particular, é um espaço teologal em
que se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado” (cf. Mt 18,20; VC 42).
c) Partilhar
a experiência de Deus e discernir comunitariamente a sua vontade
108. A comunidade da hospitalidade misericordiosa
é o âmbito ideal da nossa espiritualidade. É, ou é chamada a ser, biocenose,
biótopo, lugar de vida e de crescimento vital. A comunidade será uma “escola de
espiritualidade” na medida em que nós, os Irmãos, tomarmos consciência de que a
razão mais profunda que há para nos termos conhecido e vivermos juntos é a
nossa experiência pessoal de Deus, e que a
nossa comunidade é, por sua natureza, o
lugar privilegiado onde a experiência de Deus se deve poder realizar na sua
plenitude e ser comunicada aos outros (Const. 27; cf. Dimensão Contemplativa da Vida Religiosa,
15). Por isso, é urgente vencer a tendência para o
individualismo na vida interior e fomentar a comunhão no espírito, as ocasiões
de diálogo e os encontros para partilhar a fé, as dificuldades e os meios que
nos ajudam a vivê-la. Devemos comprometer-nos e esforçar-nos para realizar um
caminho em comum e praticar a ajuda recíproca, a correcção fraterna e comunicar
as experiências de Deus.
109. As celebrações litúrgicas, a oração em comum
e as reuniões comunitárias são momentos nos quais, guiados pelo Espírito e
acolhendo a Cristo como centro das nossas assembleias, podemos e devemos
praticar a comunicação e o diálogo ao nível da fé, rever e fazer a avaliação da
nossa vida, bem como discernir e acolher a vontade de Deus acerca da comunidade
e sobre cada Irmão (cf. Const. 38d).
110. Uma comunidade hospitaleira é chamada a ser,
de forma relevante, uma comunidade perita no discernimento espiritual. Este é,
possivelmente, um dos aspectos em que mais podemos crescer no futuro. Discernir
o bom espírito é algo que ultrapassa a mera acuidade intelectual. Sob este
aspecto, ninguém pode sentir-se superior seja a quem for. No discernimento, uma
comunidade coloca-se humildemente diante de Deus com o desejo de descobrir a
sua vontade. Por isso, o discernimento exige oração, escuta de Deus e dos
Irmãos, consciência de que Deus costuma revelar os seus mistérios aos mais
simples, pobres e jovens.
d) Comunidade
em missão de hospitalidade
111. A missão de hospitalidade – central na vida
da Ordem – faz-se presente e encarna-se na comunidade local. Comunhão e missão
exigem-se e completam-se entre si (cf. Const. 41a; 43c).
112. Nós não agimos a título individual: a
comunidade envia-nos, ao mesmo tempo que nos apoia e nos torna credíveis como
Irmãos de S. João de Deus (cf. Const. 43c). Na comunidade, todos os Irmãos estão
empenhados no anúncio do evangelho aos pobres e doentes. É verdade que nem
todos podem dedicar-se a esta missão, mas todos participam naquilo que realizam
os outros Irmãos, os quais, por sua vez, se sentem animados por aqueles que,
por razões de idade, doença ou funções que exercem, não podem desempenhar um
trabalho profissional. É importante cultivar e viver este sentido de comunhão
na missão, principalmente onde a idade dos Irmãos é elevada e as exigências
sócio-laborais não lhes permitem continuar a exercer como profissionais as
tarefas próprias do serviço aos doentes e necessitados.
113. Fomos convocados com base na Hospitalidade
para constituirmos uma comunidade de vida apostólica (Const. 5b; cf. Mc 3, 13-14).
É na missão que a nossa comunidade alcança o seu significado pleno (Const. 41a)
e onde se manifesta o fruto do encontro com Deus e com os Irmãos. É na missão
que se torna visível a transfiguração
da nossa identidade de crentes e se torna presente e actual o Cristo compassivo
e misericordioso do Evangelho que, em nós e por nós, se faz acolhimento,
serviço e entrega aos doentes e necessitados (Const. 2c; 5a).
Aquilo que configura a nossa identidade não é nenhum dos níveis da nossa vida,
separadamente. A transformação é fruto do dom da Hospitalidade (Const. 2b).
Por conseguinte, não é possível separar a actividade apostólica da oração e da
vida fraterna em comunidade, nem se pode pensar que é por meio da actividade,
do trabalho realizado, que nos constituímos em presença de Cristo. É a
Hospitalidade que nos torna apóstolos, que somos quando, com todas as nossas
faculdades, actuamos profissionalmente, e quando, por razões de idade ou de
qualquer outra limitação, não nos é possível estar ao lado do doente ou do
pobre, para o curar ou servir: de facto, aquilo que nos constitui e se torna
condição para podermos realizar gestos e actividades de hospitalidade, é sermos hospitalidade.
114. As actividades apostólicas não implicam uma
suspensão da vida comunitária (Const. 43c). Ou melhor: a vida comunitária tem uma
expressão forte na dispersão que é exigida pela misericórdia para com os
necessitados e pela hospitalidade; faz parte da nossa espiritualidade termos
consciência dos laços que nos unem quando estamos dispersos. Temos de conviver
quando estamos distantes uns dos outros, participando no programa espiritual da
nossa comunidade. Nunca nos deveríamos sentir sós. A integração no meio do povo
é uma forma peculiar de dispersão apostólica em hospitalidade e de vivência
comunitária. É aí que se demonstra que a nossa comunidade nasceu para os outros
e para si mesma (Const. 5b; 41a).
e) Uma
comunidade com sentido de Igreja
115. Nunca nos podemos esquecer que formamos
comunidades integradas na grande comunidade que é a Igreja e nas igrejas
particulares com os seus Pastores. Por isso, deixamo-nos conduzir pelos seus
impulsos espirituais, pelo seu magistério, pela acção imprevisível do Espírito
sobre ela e colaboramos na sua missão de tornar presente o Reino (Const. 1d; 5a; 41a),
conscientes de que, sem o testemunho do serviço de caridade e da missão de
curar, a Igreja de Jesus seria incompleta. As obras apostólicas da Ordem são
chamadas a serem âmbitos nos quais se professa, proclama e pratica publicamente
o amor cristão, do mesmo modo que a Paróquia é o lugar onde se professa e
celebra publicamente a fé.[100]
116. A comunhão com a Igreja aviva no Irmão a sua
vocação de “sacerdote compassivo e
misericordioso” segundo o estilo de Jesus (cf. Const. 7c; 30 b):
inserido no seio do povo que sofre, oferece ao Pai o culto de oblação da
própria existência e da existência dos pobres e dos doentes; além disso, é
profeta do Deus da misericórdia, que desce até ao mundo dos pobres para lhes
mostrar o seu amor e denunciar as situações de injustiça social ou estrutural;
o Irmão, na Igreja, encarna o mandato de Jesus, que manifestou a sua entrega de
amor até ao fim, prostrando-se diante dos seus discípulos para lhes lavar os
pés e lhes mandou perpetuar esse gesto de hospitalidade e serviço, para que a
sua permanência na Eucaristia não seja apenas um rito que se repete, mas o
memorial da sua entrega para comunicar a vida e conferir o mesmo nível de
dignidade à vida de todos os seus irmãos, os homens (cf. Jo 13, 1-17; Lc 22, 17-21).
5. O nosso caminho “pessoal” de espiritualidade
117. Não é suficiente seguir e partilhar o caminho
do povo de Deus. Cada um de nós é um ser único, uma pessoa irrepetível. No
caminho espiritual, há também uma dimensão individual na qual ninguém nos pode
substituir e que depende da nossa absoluta e intransmissível responsabilidade.
a) A
oração pessoal como caminho de espiritualidade
118. “A
fonte primária da nossa missão caritativa é o amor misericordioso do Pai (cf. 1 Jo 4, 10-11).
Isto exige que nós favoreçamos, pessoal e
comunitariamente, no diálogo da oração, a integração entre a vida interior e a
actividade apostólica, para nos tornarmos capazes de viver o amor a Deus em
sintonia com o serviço aos irmãos” (Const. 28a). Na oração, Jesus deseja realizar
connosco prodígios de misericórdia (S. Bento Menni). Inclina-se sobre a
nossa fraqueza, olha para nós com infinita ternura, acolhe-nos com todo o amor
do seu coração, como se inclinou sobre o leito dos doentes, como olhou para as
crianças e os pecadores, como acolheu Maria Madalena, Zaqueu e Pedro. Na
oração, somos convidados a deixar-nos fixar por Jesus e a permitir que a luz da
sua vida ilumine a nossa mente e o nosso coração, para descobrirmos a vontade
de Deus em cada momento e para a seguirmos com docilidade filial.
119. No encontro da oração pessoal, o Irmão
constata a verdade e o dinamismo do seu caminho no Espírito. O encontro amoroso
e regular com o nosso Deus-Trindade torna-se cada vez mais intenso, e até mesmo
mais vasto, até nos fazer orar em todas as circunstâncias. A caridade do
diálogo interpessoal com o nosso Deus revela até onde pode chegar o Espírito em
nós. É verdade que não sabemos o que havemos de pedir nas nossas orações e, por
isso, o Espírito vem em nosso auxílio (Rm 8, 26-27). É ele que guia os
nossos progressos na oração e nos surpreende na oração com as suas inspirações.
Quando as preocupações quotidianas ou o trabalho não permitem que aflore a vida
de oração, o nosso caminho de Espiritualidade pára e, inclusivamente, pode haver
um retrocesso nesse caminho.
b) Um
projecto pessoal de espiritualidade
120. Cada Irmão deve expressar o seu caminho de
espiritualidade num projecto pessoal, seriamente elaborado, em discernimento
com quem o guia ou acompanha no caminho do Senhor e, na medida do possível,
partilhá-lo com os Irmãos da comunidade.
121. O projecto pessoal de vida converte-se na
manifestação da nossa resposta vocacional ao longo do tempo. É o melhor sintoma
de que assumimos com responsabilidade a vocação que recebemos e estamos
dispostos a traduzi-la constantemente em acções adequadas: sabemos que, para
sermos família de Jesus, Irmãos, devemos não só escutar a palavra, mas também
traduzi-la em prática.
122. O nosso projecto de vida é uma resposta à
Aliança de Deus e centra-se no Reino de Deus que há-de vir. As virtudes da
castidade, pobreza, obediência e hospitalidade que caracterizam o nosso
compromisso na Aliança de Deus com o seu povo, adquirem todo o seu sentido no
contexto do Reino de Deus e do seguimento apostólico de Jesus. Com a prática
destes conselhos evangélicos, o Espírito prepara-nos para profetizarmos contra
os sistemas de injustiça, de discriminação dos fracos, de esbanjamento de bens,
de violência. Os carismas evangélicos que o Espírito nos concedeu para a vida
da hospitalidade, crescem em contextos de apaixonada missão e amor ao povo, que
nos insere cada vez mais nele, na sua história, e nos identifica cada vez mais
com os mais pequenos da terra.
123. Um elemento essencial do nosso projecto
pessoal de vida é a disponibilidade para, em todos os momentos, acolhermos as
pessoas como Irmãos de S. João de Deus. Esta é a expressão mais genuína da
nossa espiritualidade hospitaleira. É a espiritualidade da entrega, do serviço
permanente, do acolhimento sem reservas; é o caminho real que conduz ao auge do
amor que, como sucedeu com Jesus e João de Deus, se alcança descendo aos
ambientes mais sórdidos da miséria e fraqueza humanas, dedicando-nos à assistência de quem sofre com as atitudes
e os gestos característicos do Irmão de S. João de Deus – serviço humilde,
paciente e responsável; respeito e fidelidade à pessoa; compreensão,
benevolência e abnegação (Const. 3b) –, tornando-nos solidários com as suas
ansiedades e as suas esperanças.
c) Contemplativos
na missão
124. A acção apostólica não é pura exterioridade;
é a sacramentalização do Espírito e do Senhor Ressuscitado. Isto exige que
favoreçamos a integração entre a vida interior e a actividade apostólica (cf. Const. 28a; 103a).
Na missão, não deixamos de estar com Cristo. Mais ainda, estamos então unidos a
ele de uma forma singular. Mas devemos ter consciência de que há sempre o “perigo de os obreiros do evangelho se
deixarem envolver de tal forma na sua actividade pelo Senhor que se esqueçam do
Senhor de toda a actividade” (João Paulo II). Um momento importantíssimo da nossa
espiritualidade é dispormo-nos para o serviço de caridade, renovando a
consciência de que, ao servirmos os fracos, estamos a servir o próprio Jesus. A
mística” da hospitalidade encoraja-nos a viver em actividade contemplativa.
Temos o privilégio de poder contemplar ininterruptamente a Cristo: os pequenos
– toda a pessoa é “pequena” e débil – são ícones
vivos de Jesus. A aproximação ao corpo das pessoas para as curarmos do mal,
como fazia Jesus, para as dignificarmos e convertermos em âmbitos de dignidade
e de experiência religiosa e cristã, é essencial na nossa espiritualidade.
125. A fecundidade do nosso apostolado vitaliza-se
quando nos sentimos solidários com aqueles que sofrem, conscientes de que o nosso amor misericordioso para com eles nunca é um
acto unilateral (Const. 42c): o apostolado hospitaleiro é uma fonte de
espiritualidade. Não só porque o Irmão evangeliza, mas porque, na sua acção
evangelizadora, se sente evangelizado. Deus fala-nos nos outros, especialmente
nos necessitados da nossa ajuda: faz-se lamentação, súplica, gratidão… e
convida-nos a escutar e a discernir as suas mensagens. O emigrante, o doente,
são o “outro” que encarna e actualiza a diversidade, o diferente com que o Espírito
nos deseja surpreender. Descobrir os valores que existem nos grupos humanos e
nas pessoas, deixar-se impressionar e enriquecer por eles, torna-se fonte de
espiritualidade. As suas consequências são imprevisíveis, como imprevisível é o
Espírito.
126. O apostolado hospitaleiro é uma autêntica
escola e um cadinho de humanização: estimula-nos a crescer como seguidores de
Jesus de Nazaré, que restituiu à humanidade o rosto que o Pai tinha desejado
desde o princípio, ao mesmo tempo que vai purificando o egoísmo e a falta de
solidariedade, para que o acolhimento, a compreensão, o serviço e a doação
total se plasmem e transmitam em gestos de misericórdia e solicitude. O doente,
na sua debilidade física, não é apenas destinatário; é também agente de
compreensão e de amor – é a “universalidade” (P. Marchesi)
que, sem necessidade de teorias, nos ajuda a adquirir a verdadeira ciência, a
autêntica sabedoria do viver. Além disso, partilhamos o apostolado hospitaleiro
com os profissionais da Saúde e da Assistência, com todas as pessoas que
colaboram nas Obras apostólicas da Ordem. Isso é fonte de uma constante revisão
das nossas actividades e motivações, obriga-nos a verificar se os que sofrem
são o centro de toda a nossa actividade
apostólica e de todas as nossas preocupações (Const. 103b); se colocarmos todas as nossas energias
e talentos ao serviço de Deus nos doentes e necessitados (Const. 22b; 1d);
se, pessoal e comunitariamente, somos
guias morais, consciência crítica e criativos[101]
– hoje, diríamos refundadores[102]
– de um estilo de hospitalidade em sintonia com a Hospitalidade de João de
Deus; se, individual e comunitariamente, mantemos vivo e promovemos o seu espírito
(Estatutos
Gerais, 127b); se vivemos tão compenetrados da nossa missão, que os nossos Colaboradores se sentem
impelidos a agir da mesma maneira (Const. 23a). Com os nossos Colaboradores, estamos
comprometidos em cultivar e promover os valores da pessoa e em contribuir para
desenvolver e aprofundar o que temos vindo a chamar “cultura de hospitalidade”.
d) Dimensão
corporal do nosso caminho de espiritualidade
127. A encarnação do Verbo continua no tempo e
torna-se realidade na pessoa; na pessoa do Irmão que serve e na pessoa do
doente ou necessitado a quem servimos. A corporeidade é a mediação para a relação
humana e faz parte do processo espiritual. O nosso corpo é templo do Espírito e
membro do Corpo de Cristo; a sua missão consiste em glorificar a Deus. No
corpo, ficam gravadas a nossa histórica, as nossas recordações mais profundas.
O corpo é o lugar da nossa aventura existencial. Tem uma vocação eucarística:
tende a converter-se num corpo entregue, como foi o corpo do nosso Pai, João de
Deus. A virtude da castidade, vivida como Irmãos Hospitaleiros, é gérmen de
fecundidade pessoal, pois no apostolado de
caridade cumprimos a missão de servir e promover a vida e afirmamos a dignidade
e o valor do corpo (Const. 10d).
128. A unidade psicossomática indica-nos que não
pode haver espiritualidade que não passe pelo corpo, nem culto adequado ao
corpo que não acabe no espírito. A inter-relação entre equilíbrio
psicossomático e vida espiritual é indiscutível. Daí a importância de
cultivarmos o equilíbrio da nossa realidade corpórea: a paz, a serenidade
interior, o afecto e a delicadeza transmitem-se através dos sentidos. Jesus
impunha as mãos aos doentes, quando os curava (Lc 4, 40).[103]
e) Vigilância e abertura ao
Espírito
129. Nós, os Irmãos de S. João de Deus, queremos
estar muito vigilantes diante da acção do Espírito no nosso tempo e nos
diferentes lugares. A vigilância levar-nos-á a viver a nossa espiritualidade em
situações martiriais,[104]
nas quais, mais do que a acção, seja a paixão a caracterizar a nossa forma de
missão; em ambientes de diálogo inter-religioso, em que Jesus seja apresentado
como nosso Senhor, servidor de todos, Corpo entregue, e nós sejamos as suas
testemunhas a partir de uma espiritualidade da kénosis e da humildade; em
atitude de comunhão com o laicado, mulheres e homens, descobrindo, neles e
nelas, energias para a perseverança, para a entrega ad vitam, para a relação mútua; em situações conflituosas e
difíceis em que sejamos mensageiros e testemunhas de justiça e nos empenhemos
na construção da paz.
6. A formação como caminho de espiritualidade
130. O caminho de espiritualidade tem uma versão
reduzida naquilo que denominamos “iniciação carismática”, que se realiza nos
primeiros anos da vida na Ordem, e na chamada “formação contínua”, que se prolonga
por toda a vida.[105]
a) Primeira
etapa: iniciação carismática
131. Na primeira fase da formação e durante a sua
formação profissional, o Irmão aprende a fazer as coisas: a estudar, a
exprimir-se, a realizar o trabalho profissional, a meditar, a rezar, a ser um
bom religioso… É o tempo dos “ideais” – de santidade, de comunidade, de
“encarnação no mundo” –.[106]
A partir de então, aprecia e critica os outros: eles não souberam fazer, ele
fará as coisas de outra forma, porque vai pôr em prática aquilo que sabe e
sente. Nesta etapa, encara-se a realidade com “os olhos dos métodos”, isto é,
através de uma ideologia de que, a pouco e pouco, nos vamos apropriando. Não
nos adequamos à realidade tal como ela é. Entramos em contacto não com a
realidade em si, mas com a imagem que dela temos. Não é, pois, de estranhar
que, ao inserirmo-nos na vida real, a vida quotidiana nos surpreenda e pareça
contrastar com o ideal sonhado. As frustrações e decepções podem servir como
escola de “encarnação” no mundo, a partir da experiência-aceitação da própria
fragilidade, da inconsistência das ideias descarnadas, da limitação-riqueza dos
outros e das estruturas.[107]
132. Semelhantes experiências irão repetir-se ao
longo do apostolado, quando chegar o momento de abandonar o trabalho, por
razões de idade ou falta de saúde. Esses momentos, em que se experimenta a
crise, serão apelos a determo-nos no caminho, a acolhermos a força da
Hospitalidade e a redescobrirmos que fomos chamados e consagrados para sermos hospitalidade e para anunciar o
reino segundo o estilo de Jesus (Const. 21), que precisou de experimentar o
insucesso, o sofrimento, a angústia, a fragilidade e o abandono, inclusivamente
a cruz e a morte, para compreender e ser capaz de se compadecer e libertar
aqueles que sofrem e morrem abandonados (cf. Heb 2, 14-18).[108]
b) Segunda
etapa: responsabilidade operativa
133. Depois da formação inicial, o Irmão
Hospitaleiro insere-se plenamente na actividade apostólica. A passagem de uma
vida guiada e tutelada para uma situação de responsabilidade operativa deve ser
acompanhada de uma maneira especial e intensa para ele aprender a viver em
plenitude a juventude do seu amor e do seu entusiasmo por Cristo.[109]
134. A idade intermédia da nossa vida coloca-nos
perante o perigo da rotina e da insipidez, por falta ou escassez de resultados.
É esta a altura de fazer a revisão, à luz do Evangelho e do nosso carisma, do
primeiro amor, da nossa vocação original. Encontramos um novo impulso e novos
motivos de perseverança na vocação. Nesta fase, concentramo-nos naquilo que é
essencial.[110]
135. Na idade matura é fácil cairmos no
individualismo, cedermos à tentação de nos fecharmos diante da vida, ou de nos
relaxarmos. O caminho espiritual ajuda-nos a reforçar o nosso tom vital, a
purificar-nos e a entregar-nos em oblação generosa. Esta fase da vida
oferece-nos a possibilidade de amadurecermos no dom e na experiência da
paternidade espiritual.[111]
c) Terceira
etapa: limitações cada vez maiores
136. A idade avançada caracteriza-se pelo
progressivo afastamento da actividade, ou pela enfermidade ou inactividade
forçada. Apesar de ser um período da vida frequentemente doloroso, ela oferece
ao Irmão idoso a oportunidade de se deixar plasmar pela Páscoa do Senhor.
Nestas circunstâncias, a missão da hospitalidade misericordiosa adquire os tons
da paixão, que nos identifica com a paixão do Senhor. Cumpre-se assim, no Irmão,
o misterioso processo de espiritualidade iniciado muito tempo antes. A morte é
então aguardada e preparada como um acto de amor supremo e de entrega total de
si mesmo.[112]
d) Momentos
cruciais
137. Independentemente das etapas da vida, há na
nossa existência momentos cruciais e decisivos. Factores externos (um destino,
um insucesso, um acontecimento histórico), ou internos (uma doença, uma
depressão, uma perda, uma amizade, uma crise de fé ou de identidade), podem
tornar-se fortes motivos de tensão na nossa vida, até ficarmos com a impressão
de que ela se estilhaça. Nestes momentos, tornam-se factores decisivos na vida
o acompanhamento espiritual,[113]
a oração, a proximidade fraterna, a presença dos amigos. O Irmão poderá, assim,
redescobrir, o sentido da sua aliança com Deus e o significado da primazia e
fidelidade de Deus na sua vida. A provação é um instrumento providencial do
Espírito para o crescimento, para a identificação com Jesus, para o progresso
no seguimento de Jesus crucificado.[114]
Conclusão
138. Quando
deixamos que aflore em nós, Irmãos de S. João de Deus, a sede de
espiritualidade que habita em nós, temos de estar atentos às surpresas do
Espírito. Algo de novo irá nascer em nós. Algumas barreiras serão derrubadas. O
impossível tornar-se-á possível. Os nossos desertos florescerão. A nossa sede
será apagada. Seremos mensageiros alegres e entusiastas da Boa Nova da
Misericórdia e da Hospitalidade. Seremos a parábola de um mundo novo no meio de
um mundo de sofrimento e marginalização.
139. O
povo de Deus, a humanidade inteira, precisa do nosso testemunho e o nosso
espírito tem uma força humanizante. Mas também temos de pôr em destaque a força
e a energia espirituais que nos são transmitidas a partir do povo santo de Deus
e de toda a humanidade, da qual fazemos parte. Por isso, acreditamos que quanto
mais nos sentirmos Igreja e povo de Deus e humanidade, mais a nossa
espiritualidade crescerá, e mais profunda e relevante se tornará. Somos
chamados a viver a nossa espiritualidade partilhando com os outros não só o
nosso dom mas também os dons dos outros.
140. Como
Profetas de Misericórdia, animados pelo espírito de S. João de Deus, acolhemos
o convite que, no início deste terceiro Milénio, João Paulo II nos dirigiu na
Carta Novo Millenio Ineunte: “Duc in altum! – Falamo-nos ao largo! – Caminhemos
com esperança!”.[115] Cristo Jesus, nossa esperança (1 Tim 1,1), encoraja a
nossa fidelidade na missão profética.
Índice
2. A Igreja e a Ordem neste contexto 2
I. A Memória: origens carismáticas 5
1. O Caminho espiritual de S. João de Deus 5
a) Esvaziamento: deixar espaço à graça –
primeira etapa 5
b) O chamamento: ao serviço definitivo do
Senhor Deus – segunda etapa 6
c) Alteração: transformado pela Palavra de
Deus – terceira etapa 7
d) Identificação: como Jesus pobre e como
os pobres – quarta etapa 8
2. Tradição: transmissão do espírito do
Fundador e Pai 10
a) Pai e irmão no Espírito: os primeiros
Irmãos 10
b) O espírito hospitaleiro herdado 12
3. O “hoje” do carisma de João de Deus:
Missão partilhada e inculturação 15
II. Os Fundamentos: Misericórdia e Hospitalidade como
categorias basilares 17
1. Pressuposto: misericórdia e
hospitalidade, culpa e violência 17
b) A encarnação da misericórdia 18
c) A misericórdia no carisma da Ordem 20
a) O que é a hospitalidade? 20
b) A hospitalidade na Revelação 22
c) A hospitalidade no nosso Pai, S. João
de Deus 23
d) A Hospitalidade nas Constituições e nas
obras escritas da Ordem 24
4. Repensar a Misericórdia e a
Hospitalidade no nosso tempo: a relação com o estranho 26
a) A relação com “o estranho” 26
b) Aprendizagem da hospitalidade e da
misericórdia 27
c) Em missão de misericórdia e
hospitalidade, “hoje” 27
III. O Itinerário espiritual 29
Percorrer “hoje” o caminho de João de Deus 29
2. O paradigma, ou modelo, do nosso
caminho espiritual 30
a) Experiências do esvaziamento:
desinstalar-se para “nascer de novo” 30
b) “Chamamento” e chamamentos ao longo da
vida: “Escuta, ó filho!” 31
d) Identificação mística com Jesus pobre,
marginalizado e sofredor 33
3. Participantes no caminho do Povo de
Deus 33
4. Participantes do Caminho de
Espiritualidade da Ordem e suas comunidades 35
c) Partilhar a experiência de Deus e
discernir comunitariamente a sua vontade 36
d) Comunidade em missão de hospitalidade 36
e) Uma comunidade com sentido de Igreja 37
5. O nosso caminho “pessoal” de
espiritualidade 38
a) A oração pessoal como caminho de
espiritualidade 38
b) Um projecto pessoal de espiritualidade 38
c) Contemplativos na missão 39
d) Dimensão corporal do nosso caminho de
espiritualidade 40
6. A formação como caminho de
espiritualidade 41
a) Primeira etapa: iniciação carismática 41
b) Segunda etapa: responsabilidade
operativa 42
c) Terceira etapa: limitações cada vez
maiores 42
[1] Regra e Constituições para o Hospital de Ioan de Dios de Granada (1585) Tít. I, 1ª Constituição, in PrimitivasRegla y Constituciones, Tit. 1º,
1ª ConstituciónMadrid 1977, p. 12.
[2] Primitivas
Constituições de 1587,Del principio y suceso de la
Congregación de los hermanos de Juan de Dios, IntroducciónIntrodução, in op. cit.., pp. 81-82.
[3] “João de Deus não pertence só a
nós; pertence também à sociedade, à Igreja. E nós nem sequer somos os únicos
responsáveis por que ele permaneça vivo ao longo da História. Mas, com a ajuda de
Deus, temos de fazer com que a sua Ordem e ele continuem no tempo". Ir. Pascual Piles Ferrando, Deixai-vos guiar pelo Espírito (Gal 5, 16). Carta circular aos Irmãos da
Ordem, Roma 24 de Outubro de 1996, 9.3.
[4] Cf. Declarações do LXV Capítulo Geral (Documentação).
Granada, 6-24 de Novembro de 2000; Carta
de Identidade da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, Roma, 8 de Março de
2000; Irmãos e Colaboradores unidos para
servir e promover a vida, Roma, 8 de Março de 1992; João de Deus continua vivo, Mem Martins, Outubro 1991; A nova evangelização e a nova hospitalidade
no limiar do Terceiro Milénio. LXIII Capítulo Geral da Ordem Hospitaleira,
Santa Fé de Bogotá, 2-28 de Outubro de 1994; Marchesi,
P., A Hospitalidade dos Irmãos de S. João
de Deus rumo ao ano 2000, Roma, 1986; Piles
Ferrando, P., Deixai-vos guiar
pelo Espírito (Carta Circular aos Irmãos da Ordem), Roma, 24 de Outubro de
1996; Piles Ferrando, P., Hospitalidade no início do Terceiro Milénio.
Realização da profecia de S. João de Deus (Carta circular). Roma, 2 de
Fevereiro de 2001.
[5] “Somos 1.500 Irmãos,
40.000 colaboradores, entre empregados e voluntários, e cerca de 300.000
colaboradores-benfeitores. Estamos presentes nos 5 continentes, em 46 nações,
com 21 Províncias religiosas, 1 Vice-Província, 6 Delegações Gerais e 5
Delegações Provinciais. Realizamos o nosso apostolado a bem dos doentes, dos
pobres e dos que sofrem, através de 293 Obras Apostólicas. Sendo membros de um
mesmo corpo, a Ordem, vivemos, no entanto, realidades bem diferentes: há quem
viva em Obras e sociedades altamente tecnicizadas e quem viva em Obras e
sociedades nos países em vias de desenvolvimento; há quem viva em nações que
beneficiam de um clima de paz, e quem, ao contrário, viva em países dilacerados
pela guerra e pela violência, ou que sofrem ainda as consequências de um
passado recente, caracterizado pela violência; há quem goze de plena liberdade
na sociedade em que vive, e quem, ao contrário, veja a sua liberdade e os seus
direitos fundamentais severamente limitados; há quem se dedique ao apostolado
propriamente hospitalar e quem, ao contrário, se empenhe nos temas sociais ou
nos sectores de marginalização; há quem tenha como missão a de ajudar a viver,
enquanto, para outros, o seu campo de acção consiste em garantir à pessoa
humana uma morte com dignidade; ainda que todos trabalhemos na perspectiva de
uma assistência integral, holística, há matizes que nos orientam umas vezes
para a saúde física, outras para a saúde mental ou, então, para o melhoramento
das condições para uma vida digna, etc.; finalmente, uns vivem no Norte e
outros que vivem no Sul, uns nas culturas do Oriente e outros nas do Ocidente.”
Ordem Hospitaleira de S. João de Deus,
Carta de Identidade da Ordem Hospitaleira
de S. João de Deus. A assistência aos doentes e necessitados segundo o estilo
de S. João de Deus, Roma, 8 de Março de 2000. Editorial Hospitalidade,
Lisboa 2000, pág. 7-8.
[6] João de Deus não ignora
que, para atingir a plenitude e evitar os escolhos, o homem precisa de vigiar e
estar disponível: “andai sempre
vigilante, com o pé no estribo”, porque pode acontecer que “nessa viagem vos haveis de ir perder”.
Cf. S.
João de Deus
(SJD), Cartas, 1 Carta à Duquesa de Sesa (1DS), 7; Carta a Luís Baptista (LB), 6. in
Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, Constituições,
Cartas de S. João de Deus, Regra de Santo Agostinho. Telhal 1985.
[7] SJD, Cartas, ibidem.
[8] Durante o cerco
de Fuenterrabía, João
de Deus ofereceu-se para ir buscar as provisões que faltavam às tropas no destacamento
militar: “montou numa égua que tinha
tomado aos franceses” e, como não levava freio e correndo a galope pela
falda de uma serra, dirigiu-se para a povoação, mas a égua atirou com o cavaleiro para o meio de um fraguedo, seguindo o seu “instinto natural”. João não conseguiu
detê-la; ficou sem fala por mais de duas horas, vertendo sangue
pela boca e pelo nariz, sem sentidos. Ao
despertar, sentiu
impotência, dores, ameaça pela proximidade do inimigo e… sem socorro em tão
grande perigo, “ergueu-se do chão, o melhor que pôde, e,
falando com dificuldade, pôs-se de joelhos, de olhos fitos no céu, invocando o
nome de Nossa Senhora, a Virgem Maria”. Tomou
nas mãos um pau e, apoiando-se nele, foi andando, até chegar junto dos
companheiros que o esperavam “e o
mandaram deitar numa cama”. Francisco de Castro, História da Vida e Obras de S. João de Deus, in Manuel Gómez Moreno, Primicias históricas de San Juan de Dios (de seguida,
abreviadamente, Castro), Madrid 1950).
[N.d.T. – As citações são tomadas da edição portuguesa da Biografia de S. João
de Deus, traduzida por Fr. Aires Gameiro, O.H., co-edição de Editorial
Franciscana (Braga) e Hospital Infantil de S. João de Deus (Montemor-o-Novo),
1980. Este episódio é relatado no Cap. I, p. 35].
[9] Castro, Cap. II, p. 37.
[10] “Criou-se com os pais até à idade
de oito anos, e, sem eles o saberem, foi levado dali por um clérigo” (Castro, Cap. I, p. 34).
[11] “Tudo
perece… enquanto estivermos neste desterro e vale de lágrimas” (1DS 6; 2DS 10)...“A morte destrói e acaba com tudo o que este
miserável mundo nos dá, não nos deixando levar connosco senão um pedaço de pano
roto e mal cosido” (3DS 15).
[12] 1DS 10.
[13] 2DS 18.
[14] BC 6vCastro, Cap. III, p. 40.
[15] “Como
não via o caminho que Nosso Senhor lhe destinava para O servir…, andava triste
e não tinha sossego nem repouso”.BC 9. Castro, Cap. IV, p. 41-42.
[16] Castro,BC 6v-16 Cap. V, p. 44.
[17] Ibid.14ss., Cap. VI, p. 47.
[18] IbdIbid., Cap. VI, 16p. 48-49.
[19] Cf. Castro, Cap. VII, p. 44 seg.
[20] Castro, Cap. VII, p. 53-54.
[21] BC 19ss Ibid., Cap. VII, 54;
Cap. VIII, p. 57.
[22] BC 23ss Ibid., Cap. VIII, p. 59-60.
[23] Ibid., Cap.
IX, p. 64.
[24] IbdIbid.,23v. Cap. VIII, p. 60.
[25] Ibid., Cap. VII, p. 51.
[26] Ibid., Cap.
XII, p. 76.
[27] Ibid., Cap. XI,
p. 73.
[28] J. Sánchez Martínez, “Kénosis-diaconía” en el itinerario
espiritual de San Juan de Dios, Jerez, 1995, p. 331, 441.
[29] 2GL 4, 5.
[30] Castro, Cap. X, 68.
[31] Castro, Cap. XVI, p. 97.BC
36.
[32] IbdIbid., Cap. X, p. 67.
[33] Processo de Beatificação de S. João de Deus – Livro 52/1.23, folha 81. Cf.
J. Sánchez Martínez, “Kénosis-diaconía en el itinerario espiritual de
San Juan de Dios”, op.
cit., p. 190-191.
[34] IbdIbid,
L 52/1.20, f 73v.
[35] Castro, Cap. XVIII, p. 107.
[36] 1GL 11.
[37] Castro, Cap. X, p. 68.
[38] Ibíd., Cap. X, p.
68.
[39] 1DS 15 e seg. Castro afirma também que “o
seu coração não suportava ver pobres a padecer necessidade, sem que lhe desse
remédio”,: BC 57v Cap. XVI, p. 101..
[40] BC 44 Castro, Cap. X, p. 67.
[41] Ibid., Cap.
XVII, p. 103-104
[42] Sánchez Martínez, J., “Kenosis-diaconía…”, op. cit., p.
331, 441.
[43] Ibid., p. 292, 307, 393.
[44] 2GL 7.
[45] Ibidem, 2.
[46] Ibid., 17.
[47] 2GL Ibid., 8
[48] 2GL Ibid., 7.
[49] BC 76 Castro, Cap. XX, p. 119.
[50] Ibid.,
Cap. XX, p. 123.
[51] Ibid., Cap. VII, p. 53-54.
[52] LB 13.
[53] Ibid., 8.9.
[54] Ibid., 6.
[55] Ibid., 7.
[56] Ibid., 9.
[57] Ibid., 15.
[58] Ibid., 10.
[59] Ibid., 11.13.9.
[60] Ibid., 15.
[61] Cf. 1DS 13.
[62] Sánchez Martínez, J., “Kénosis-diaconía…”Id ,
op. cit., p. 292,
307, 393.
[63] Não se fala neles. Só a Biografia de Francisco de Castro, no Cap. XX,
menciona o nome do seu companheiro, Antón Martín. Pelo contrário, em “El Processo”, que é anterior à
Biografia de Castro, fala-se muitas vezes dos Irmãos de hábito de João de Deus;
e também se fala dos seus companheiros nas Biografias escritas por Dionísio
Celi e Antonio Govea. João de Ávila (a quem o Santo, nas suas Cartas, chama “Angulo”)
refere o nome de quatro dos companheiros de João de Deus: Antón Martín, Pedro
Pecador, Alonso Retingano e Domingo Benedicto.
[64] L. Ortega Lázaro, El hermano Antón Martín e su
hospital en a calle Atocha de Madrid (1500-1936), Madrid
1981, p. 31. Cf. 17-19.
[65] Cf. J. Sánchez Martínez. “Kénosis-diaconía”Id , T 8/5; T
9/5; T 10/5, p. 346, 356, 364.
[66] Cf. J. Sánchez Martínez. “Kénosis-diaconía”Id , T 11/20,
p. 383: acolhiam todo o tipo de pobres, com todo o género de enfermidades, não
se importando se eram mouros ou cristãos, e não abandonavam nenhum deles.
[67] Já nas primeiras Constituições é enaltecido este aspecto essencial.
[68] Como sucedeu com João de Deus, Jesus cativa-nos de modo especial com a sua
entrega total em amor, morrendo na cruz por nós: a contemplação da paixão de Cristo, “Homem das dores” (Is 53, 3), ocupa um lugar de relevo na nossa
espiritualidade (Const. 33). Sob este aspecto, a tradição da Ordem remonta
aos tempos do nosso Fundador, devotíssimo da Paixão de Cristo. Ao contemplar
Cristo crucificado, o nosso Pai concentrava-se a meditar tanto sobre os
padecimentos de Jesus, como sobre o amor que o motivava a aceitá-los – um amor
que o levou a perdoar até mesmo os seus inimigos. É para este mesmo grau de
amor que João convida, quando escreve a Luís Baptista: “Lembrai-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo e da sua bendita Paixão,
pois retribuía com o bem o mal que Lhe faziam. Assim haveis de fazer vós”(LB
10). João de Deus convida-nos a imitar a Cristo nos seus padecimentos,
dedicando-nos a uma vida de penitência e sacrifício até à entrega de amor ao
serviço dos que sofrem. No rosto dorido dos doentes, na vida arruinada dos
pobres, João descobre e contempla o rosto de Jesus Cristo. Servi-los, para
João, não é uma cruz, não significa sacrifícios: é a manifestação de que o amor
de Deus inundou a sua vida e que não pode fazer outra coisa senão amar a todos
e sempre, especialmente quando são fracos.
[69] A nossa espiritualidade é, fundamentalmente, cristocêntrica. João de Deus
foi um amante apaixonado de Jesus. Através dele, aprendemos a centrar a nossa
vida em Cristo e a contemplá-lo na sua maneira de servir, amar e curar os
doentes. Jesus de Nazaré é o Mestre que, na sua forma de agir, nos mostra as
atitudes e os gestos que precisamos de encarnar para continuar a sua obra de
amor. Tal como Jesus, somos chamados a sentir o coração comover-se perante o
abandono e a miséria das pessoas (cf. Mt 9, 36) e a entregar-nos ao seu serviço
e alívio como a única coisa que verdadeiramente interessa na vida (cf. Mc 6,
34-44); tal como Jesus, experimentamos a capacidade de termos consciência de
que, quando nos aproximamos dos necessitados para os servir, manifesta-se a
força interior que nos anima (cf. Lc
8, 40-48); ao contemplarmos Jesus que se identifica com os pobres e os doentes,
assumindo sobre si as suas dores e carregando as suas enfermidades (cf. Mt 8,
17), renova-se a nossa decisão de nos dedicarmos ao serviço daqueles que
sofrem, assumindo, como Jesus, a condição de servos que, com a entrega da
própria vida, promovem e defendem a vida dos pobres (cf. Mt 12, 15-21; 20, 28).
[70] A
Virgem Maria, figura da Igreja e primeira entre todas as
pessoas consagradas (cf. VC, 112), é para nós um modelo de serviço a Cristo em
Hospitalidade. João de Deus amou afectuosamente Nossa Senhora: venerou-A e
imitou-A na sua maneira de viver; foi um seu profundo devoto e sentiu-se
acompanhado e protegido por Ela em todos os momentos difíceis da sua vida.
Todas as Cartas de João de Deus começam com as palavras: Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora, a Virgem
Maria sempre intacta. Como era seu costume, convidava a que “… tudo o que fizerdes…, seja tudo para serviço
de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Virgem Maria Nossa Senhora (1GL 12). Invocava Nossa Senhora com a recitação
do Rosário e encorajava as pessoas a fazerem o mesmo: Devo dizer-vos que me tenho dado muito bem
com o Rosário e que espero em Deus rezá-lo quantas vezes puder e Deus quiser” (LB 17). Soube transmitir aos seus companheiros
a confiança na Virgem Maria e o desejo de a imitar no serviço aos pobres e
doentes. Sirva de exemplo o testemunho do Ir. Antón Martín que, no seu
testamento, afirma: “Em nome da
Santíssima Trindade… e da Bem-aventurada Virgem Gloriosa, nossa Senhora Santa
Maria sua Mãe, a qual eu tenho por Senhora e Advogada em todos os meus factos…
[…] ao serviço de nosso Senhor Jesus Cristo e da sua gloriosa Mãe
(L. Ortega Lázaro, O Ir. Antón Martín e o seu Hospital na Calle
Atocha, em Madrid”. 1550-1936, Madrid 1981, pág. 8).
Seguindo a tradição da Ordem,
as Constituições recolhem o sentido
mariano da nossa espiritualidade: a Virgem Maria é modelo da nossa consagração
a Deus (nº 25), profundamente hospitaleira na sua vida consagrada ao
serviço da pessoa e da obra de Jesus (cf. Nº 42b). O seu exemplo encoraja-nos a
realizar como ela a nossa peregrinação na fé (cf. Lumen Gentium, 58) e a imitá-La, acompanhando com integridade e
amor afectuoso aqueles que sofrem, associando-nos desta forma ao sacrifício do seu Filho, que se prolonga
na dor da Humanidade (Const. 34a; cf. 4d). Maria, Saúde dos Enfermos e Mãe
de misericórdia, tem um lugar especial na
vida da nossa comunidade hospitaleira (Const. 42b) e no coração de cada
Irmão. Sentimo-nos encorajados a honrá-la e a imitar a sua simplicidade e
disponibilidade, a sua entrega e fidelidade ao projecto de Deus sobre a nossa
vida (cf. Const. 4c), ao mesmo tempo que a veneramos com afecto de piedade
filial, celebrando as suas festas e, de modo especial, a do seu Patrocínio
sobre a Ordem, e com as formas tradicionais de devoção, entre as quais
sobressai a recitação do Rosário. (Cf. Const. 4d; 42b).
A Virgem do Magnificat põe em
relevo um dos aspectos mais claros da nossa espiritualidade: o Deus da
misericórdia cumpre as suas promessas de libertação e inclina-se com particular
predilecção sobre os pobres e os humildes, e fará triunfar o seu poder de
misericórdia sobre a arrogância dos poderosos deste mundo que oprimem os
fracos. Como Maria, somos chamados a sentir-nos em comunhão com eles, a sentir
como nossa a realidade injusta que os oprime e a comprometer-nos
evangelicamente na sua libertação integral (Cf. Lc 2, 46-53).
Na Visita a Santa Isabel, por
outro lado, a Virgem Maria propõe-Se-nos como modelo de hospitalidade, indo
ajudar a sua prima e dedicando-se com simplicidade ao seu serviço e, acima de
tudo, porque Deus manifesta e torna presente nela a sua salvação. Deus
encarnado no seio de Maria, ao escolhê-la como medianeira para comunicar o seu
Espírito a Isabel e ao menino que ela trazia no ventre (cf. Lc 2, 41-44), eleva
os gestos de hospitalidade ao nível de sacramento que evoca e realiza a sua
acção salvífica.
[71] Const., 1984, 103a.
[72] Ibidem, 103c.
[73] VC 54.
[74] Após o Concílio Vaticano II, desde meados dos anos oitenta, a Ordem
impulsionou e encorajou um movimento de Aliança
com os Colaboradores. E, recentemente, a Igreja reconheceu o facto de os
leigos trabalharem para a missão ou
colaborarem na missão dos religiosos, na história das relações entre
pessoas consagradas e laicado católico”. (Cf. Const. 23a).
[75] Cf. V. A,. Riesco, La
Hospitalidad manifestación del Ser de Dios en favor del hombre. Fundamento
bíblico de nuestra espiritualidad.
[76] Não é fácil explicar porquê, mas o Deus do Antigo Testamento foi por vezes
apresentado com características violentas e até demoníacas. Vislumbra-se, no
fundo, a necessidade de explicar o mistério do mal e de afirmar, contra toda a
idolatria, que Javé era o único Deus.
[77] Assim o exprime repetidamente o Capítulo I (Constituição Fundamental) das
Constituições renovadas. Em primeiro lugar, apresentam S. João de Deus como um
homem “transformado interiormente pelo
amor misericordioso do Pai, que viveu em perfeita unidade o amor a Deus e ao
próximo (Const. 1); “imitou fielmente
o Salvador nas suas atitudes e gestos de misericórdia…, entregando-se por completo
ao serviço dos pobres e dos enfermos” (Const. 1).
[78] Em segundo lugar, as Constituições afirmam: “A Ordem Hospitaleira nasce do evangelho da misericórdia (Mt 8,17;
25,34-46), como o viveu em plenitude S.
João de Deus” (Const. 1); “pela
consagração do Espírito, os Irmãos ficam configurados com Jesus compassivo e
misericordioso; participam do amor misericordioso do Pai e mantêm viva no tempo
a presença misericordiosa de Jesus de Nazaré” (Const. 2).
[79] 1DS, 13.
[80] Cf. Daniel Innerarity, Ética da hospitalidade, Ed. Península,
Barcelona 2001.
[81] Cf. N. B. Pagadut, Be hospitable, Claretian Publications,
Quezon City, PhilipiinesPhilippines 1992.
[82] Castro, Cap XII, p. 79;
Cap. XIV, p. 87-88.
[83] ... e um dia, recorda esta
testemunha, entrou na sua cozinha e encontrou-o muito alegre e batendo com a
palma de uma das mãos no reverso da outra e cantando um hino sagrado. E esta
testemunha chegou e comentou: “Parece que
está contente, senhor padre…!” E ele retorquiu: “Quem serve a Deus, que ande alegre” (Test. 30. In
Gómez Moreno, op. cit., p. 214).
Muitas
vezes foi lá e via-o andar entre os enfermos, vestindo-os, mudando-os de um
lado para outro e voltando a deitá-los na cama, abraçando-se a eles, com uma
cara de riso e com tanto amor e caridade que era uma coisa admirável, que até
parecia querer meter todos os doentes no seu coração. (Test. 59. In Gómez
Moreno, op. cit., p. 231-232).
[84] 2GL 5.
[85] Amai a Nosso Senhor Jesus Cristo
sobre todas as coisas do mundo, pois,
por muito que O ameis, muito mais vos ama Ele. Tende sempre caridade, porque onde não há caridade não há
Deus, embora Ele esteja em todo o lugar (LB 15).
[86] Const. 1587, Cap. 17. op. cit., p. 95.
[87] Const. 2c; 3a; 5a.
[88] Cf. Gaudium et Spes, 22; Const.
20.
[89] “A
renovação tem aspectos fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de eliminar as
deficiências da nossa vida e de derrubar as barreiras que forem um obstáculo
para a nossa comunhão fraterna; em segundo lugar, esforçar-se por descobrir
também os nossos “pontos fortes”, que ajudem a alcançar uma união semelhante à
que existe entre o Pai e o Filho”. (P. Marchesi, Bases de uma renovação, Roma, 1978, p. 18).
[90] “…temos
consciência de que as necessidades fundamentais do homem não são de ordem
material; antes de mais, o homem precisa de ser reconhecido como pessoa digna enquanto
tal: digna de receber cuidados, atenções e amor, para além das diferenças
culturais, institucionais, sociais, religiosas, raciais, etc.”. (P. Marchesi, A Humanização, Roma 1981).
[91] Chegado que foi à Corte, o Conde de Tendilla e outros senhores, que o
conheciam, deram informes dele ao Rei, pondo-o ao corrente das suas coisas, e
introduzindo-o no palácio. Aí lhe falou João de Deus, começando por dizer: “Senhor,
eu costumo chamar a todos irmãos em Jesus Cristo. (Castro, Cap. XVI, p. 99).
[92] Cf. Ordem Hospitaleira de S. joão
de Deus, Irmãos e Colaboradores,
unidos para servir e promover a vida.
[93] Nos anos oitenta, sob a influência e no espírito do movimento de
humanização, a Ordem tentou organizar a sua missão em favor das antigas e novas
necessidades da humanidade. É interessante recordar como a Assembleia dos
Provinciais, realizada em 1981, encerrou os seus trabalhos: “A nossa Assembleia reafirma a sua esperança e o seu compromisso na
renovação contínua da Ordem. Estamos convictos de que esta só se pode conseguir
se todos nós, os membros do Instituto, vivermos em constante atitude de
conversão às exigências implícitas na nossa consagração a Deus, como religiosos
hospitaleiros, e nos esforçarmos por traduzir as atitudes em respostas
concretas às esperanças que a Igreja e a sociedade depositaram em nós. Tendo em
conta que o mundo está a viver um momento importante da sua história, na qual
os valores fundamentais da pessoa são, ao mesmo tempo, reivindicados e
violados, assumimos o compromisso
particular que o carisma da Ordem comporta, como urgência a defender e promover
o respeito pela dignidade humana. Isto fez amadurecer em nós a convicção de
que a Humanização, entendida no sentido que adquire na pessoa de Jesus de
Nazaré, constitui, neste momento histórico em que vivemos, o vínculo unificante e integrador que nos pode ajudar a traduzir em
factos concretos o processo de renovação”. (P. Marchesi, op. cit.,
p. 91-92).
[94] Cf. também o n.10, onde se pode ler: “Este é um tempo no qual o Espírito irrompe, abrindo novas
possibilidades. A dimensão carismática das diversas formas de vida consagrada,
embora sempre em processo e jamais terminada, prepara na Igreja, em sinergia
com o Paráclito, o advento d'Aquele que é já o futuro da humanidade em caminho.
Ver também os números 18, 21 e seg. Recordemos que este documento tem
subjacente a imagem do “caminho”.
[95] Cf. Governo geral da ordem Hospitaleira de S.
João de Deus, João de Deus Continua Vivo, Mem Martins, 1991, p. 16-17.
[96] Sucedeu o mesmo com S. João de
Deus: quando se sentiu humanamente desenraizado, avivou-se nele o chamamento
que, já em Oropesa, o convidava a abandonar o trabalho de pastor de rebanhos e
de cavalos do Conde, e dedicar-se ao serviço do Senhor “fora do seu natural”, pois ”sentia
grande dor, quando estava em casa do Conde de Oropesa e via, na cavalariça, os
cavalos gordos, luzidios e agasalhados, e os pobres fracos, despidos e mal
tratados. Dentro de si, dizia: «Então, João, não será melhor que te ocupes em
tratar e apascentar os pobres de Jesus Cristo do que os animais do campo?»”
(Castro, Cap. IV, p. 41).
[97] Sacrosanctum
Concilium, 10
[98] “Na Eucaristia, com efeito, o Senhor Jesus associa-nos a
si na própria oferta pascal ao Pai: oferecemos e somos oferecidos. A mesma
consagração religiosa assume uma estrutura eucarística: é uma oblação total de
si, intimamente associada ao sacrifício eucarístico. Concentram-se na
Eucaristia todas as formas de oração, proclama-se e é acolhida a Palavra de
Deus, somos interpelados a respeito de nossa relação com Deus, com os irmãos e
com todos os homens: é o sacramento da filiação, da fraternidade e da missão.
Sacramento da unidade com Cristo, a Eucaristia é simultaneamente sacramento da
unidade eclesial e da unidade da comunidade dos consagrados” (Partir de Cristo, 26).
[99] A
“permanente disponibilidade (de Jesus) para ser fortaleza, consolação e viático
dos doentes, estimula-nos a perseverar ao lado do homem que sofre,
acompanhando-o na sua dor e na sua solidão” (Const.
30c).
[100] A Igreja tem necessidade de nós, tal como nós temos necessidade dela… É
indispensável a comunicação dentro da Igreja. A nossa vocação e o carisma da
nossa Ordem, na sua identidade e nos seus programas, devem estar bem presentes
no mundo dos crentes, tornar-se para eles um estímulo e um modelo, um caminho
para realizar a vocação baptismal comum à santidade (P. Marchesi, A
Hospitalidade dos Irmãos de S. João de Deus rumo ao ano 2000, Roma, 1986,
n. 89).
[101] Cf. P. Marchesi, A Hospitalidade dos Irmãos de S. João de
Deus rumo ao ano 2000, Roma, 1986, n. 66-86.
[102] A espiritualidade na missão exprime-se no entusiasmo, na imaginação
profética. A falta de Espírito conduz à rotina, à monotonia, à mera repetição.
A presença do Espírito é fogo que tudo anima e recria. Um Irmão com espírito
hospitaleiro nunca se acostuma ao que faz: em todas as suas actividades,
descobre sempre a novidade do Reino de Deus.
[103] O nosso corpo está numa relação muito estreita com a natureza: é a parte
da natureza que mais domesticámos. A nossa espiritualidade adquire assim
matizes profundamente ecológicos, que não devemos desprezar: compreenderemos
melhor, dessa forma, as possibilidades de todos os corpos humanos, mas também
as suas desventuras e degradações.
[104] Na perspectiva de um Irmão Hospitaleiro, existe sempre a possibilidade do
martírio, o “caso sério” da entrega da caridade, da confissão da fé e da
proclamação da esperança. O martírio é um dom e foi sempre reconhecido como
tal. É um dom para o mártir e é um dom também para a Ordem. Trata-se de um dom
paradoxal, mas real. Podemos rejeitá-lo de antemão, se evitarmos o perigo, se
procurarmos seguranças, se evitarmos qualquer tipo de risco. Mas uma vida
vivida dessa forma, a fugir, não merece os apelativos de “hospitaleira” e
“misericordiosa”. O martírio como horizonte, dá uma cor especial à vida
hospitaleira. No âmbito das possíveis formas de martírio estão aqueles
compromissos com os pobres que implicam marginalização, isolamento, condenação.
É quando o hospitaleiro pode afirmar: “estive na cadeia”, fui expulso”…
[105] Orden Hospitalaria de
San Juan de Dios. Proyecto de Formación
de los Hermanos de San Juan de Dios. Roma 2000: “Na nossa vida religiosa atravessamos etapas
significativas que devemos cultivar de modo especial: os primeiros anos da
formação inicial em cada uma das suas etapas, a idade da maturidade, os
momentos de crise e a retirada progressiva da vida activa. A vida própria dos
institutos religiosos e, sobretudo, o seu futuro, dependem, em parte, da
formação permanente dos seus membros. É dever de cada Instituto procurar os
meios e o tempo apropriados para que as pessoas se formem adequadamente”. Ordem Hospitaleira de S. João de Deus. Projecto de Formação dos Irmãos de S. João de
Deus (P.F.O.),
Roma 24.10.2000,
nº
132. Cf.
Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, A Formação Permanente na Ordem, Roma 1991.
[106] IbP.F.O.., 39 e
44.
[107] IbCaracterísticas do nosso modelo de
formação: integral, em processo, experiencial, personalizada, gradual e diferenciada,
libertadora e profética, universal – Ibid., ºs46-57.
[108] Ib Ibidem, nº 24: À luz do itinerário do nosso Fundador, o processo de formação deve
proporcionar aos candidatos e formandos um amplo espaço para eles
interiorizarem e reflectirem sobre o carisma e a espiritualidade da Ordem.
Constitui um desafio para a Ordem educar, formar e tornar os Irmãos capazes de
testemunharem o Evangelho da misericórdia na sociedade actual, com fidelidade
criativa”.
[109] Ibid.,
92 e 137c.
[110] Ibid., 26h. A Formação Permanente na Ordem, 33.
[111] Ibid, 136. A Formação Permanente na Ordem, 34.
[112] Ibid, 44. A
Formação Permanente na Ordem, 35 e 36.
[113] Ao longo do caminho pessoal de espiritualidade, é essencial o
acompanhamento, não só no período da juventude, mas em todas as idades. O
exemplo da relação de S. João de Deus com S. João de Ávila é para nós uma
excelente referência. Precisamos de estabelecer uma comunicação o mais profunda
possível com algum Irmão ou Irmã experimentados no caminho do Senhor: eles
servir-nos-ão de referência, de confronto, de estímulo. Cabe aos nossos
Superiores – na medida do possível – realizar um serviço de animação
relativamente a cada Irmão da Comunidade.
[114] “Cada Irmão e cada formando deverão saber assimilar e
viver todos os acontecimentos, tanto positivos como negativos, como parte da
própria história de salvação, a partir da qual Deus nos fala e conduz” (P.F.O., n. 27 e 50)
[115] Novo
Millenio Ineunte, 58.