Carta da Identidade da Ordem Hospitaleira
Assistência aos Doentes e Necessitados Segundo o Estilo de S. João de Deus
CARTA DE IDENTIDADE
DA
ORDEM
HOSPITALEIRA
DE S.
JOÃO DE DEUS
ASSISTÊNCIA AOS
DOENTES E NECESSITADOS
SEGUNDO O ESTILO
DE S. JOÃO DE DEUS
Roma, 8 de Março de
2000
APRESENTAÇÃO
Tenho a honra e o prazer de vos apresentar o documento «A Carta de Identidade da Ordem».
Quisemos que fosse um documento capaz de enfrentar todos os pontos necessários
para iluminar a hospitalidade que estamos chamados a realizar hoje como Ordem
Hospitaleira de São João de Deus, na perspectiva do Terceiro Milénio, para
continuar a incarnar o profetismo de São João de Deus.
O documento estava nas previsões do Plano do Governo Geral
para o sexénio. Para a sua elaboração foram nomeados três diferentes grupos de
trabalho, que se reuniram em duas ocasiões em Roma, e que, por sua vez,
nomearam entre si uma comissão restrita que elaborou, em várias passagens com
as sugestões e propostas dos três grupos, o texto que agora tendes em mão.
O Plano do Governo Geral para o sexénio previa uma série
de actividades de acompanhamento à «Carta de Identidade» que, no entanto, não
se puderam realizar, porque não foi possível elaborar o texto dentro do tempo
previsto.
O Conselho Geral julgou oportuno que, em vez de realizar
um novo documento expressamente para o Capítulo Geral, as Comunidades e grupos
escolhidos de Colaboradores estudassem no decurso de 1999-2000, a Carta de
Identidade, tendo por base as orientações dadas pela Comissão Preparatória do Capítulo.
As conclusões deste estudo deveriam servir para preparar o
programa a discutir e a aprovar no LXV Capítulo Geral para o próximo sexénio.
Esta ideia foi partilhada, quer pelos membros da Comissão que elaborou o texto,
quer pelos Superiores Maiores da Ordem, na reunião havida em Roma, de 30 de
Novembro a 04 de Dezembro de 1998.
O documento encara e analisa vários capítulos importantes
para a nossa missão:
§
O tema da hospitalidade, que é desenvolvido num quadro filosófico e
teologico-bíblico, para iluminar os traços fundamentais de São João de Deus e da tradição da Ordem, até chegar aos princípios
com os quais desejamos realizar hoje a nossa hospitalidade;
§
A dimensão ética do ser humano e da assistência. A este propósito são descritos os princípios gerais em
que se fundamenta a nossa ética e as situações concretas a que, transformando-nos
em hospitalidade vivida, somos chamados a responder segundo o estilo de São
João de Deus;
§
O tema da cultura da hospitalidade que nos recorda incessantemente a importância da
formação e da investigação para responder aos desafios do Terceiro Milénio;
§
A necessidade de por em prática nas nossas estruturas uma
gestão carismática. Devemos
aplicar as regras da gestão moderna, mas façamo-lo de modo carismático, isto é,
com os valores qualificantes que o seguimento de Cristo e de São João de Deus
trazem à gestão, ancorados à doutrina social da Igreja.
Procedendo desta maneira pensamos sair do Capítulo Geral com um programa
prático que nos ajudará a viver no próximo sexénio de modo a responder às
exigências do nosso carisma no século XXI.
Damos a conhecer este
documento oficialmente no dia de São João de Deus, no Ano Jubilar, no dia da
reconciliação, para sublinhar a sua importância em ordem a viver hoje a
hospitalidade.
Que São João de Deus nos ajude a
reconciliar o nosso ser para que sejamos capazes de transmitir a reconciliação
com o nosso «ser hospitalidade».
Fr. Pascual Piles
Superior Geral
1 |
PRINCÍPIOS,
CARISMA
E MISSÃO
DA
ORDEM HOSPITALEIRA DE S.
JOÃO DE DEUS |
1. 1. Projectar o futuro com base nos nossos princípios
1.
A
Humanidade aproxima-se do Século XXI ao mesmo tempo cheia de temores e de esperanças.
Conseguimos progredir impressionantemente na compreensão e domínio do
nosso mundo, que hoje nos aparece como uma grande aldeia – a aldeia global –
mas, ao mesmo tempo, persistem ou intensificam-se sofrimentos individuais e
colectivos, provocados pelas guerras, pelo egoísmo de classe ou de grupo e pela
limitação da natureza humana, que nos recorda a presença permanente da dor, da
doença e da morte.
A Ordem Hospitaleira de S. João de Deus faz parte desta «aldeia global».
Somos 1.500 Irmãos, 40.000 colaboradores, entre empregados e voluntários, e
cerca de 300.000 colaboradores-benfeitores.
Estamos presentes nos
cinco Continentes,
§
em 46 nações,
§
com 21
Províncias religiosas,
§
1
Vice-Província,
§
6 Delegações
Gerais
§
e 5 Delegações
Provinciais.
Realizamos o nosso apostolado a bem dos
doentes, dos pobres e dos que sofrem, através de 293 Obras Apostólicas.
Sendo membros de um mesmo corpo, a Ordem, vivemos, no entanto, realidades
bem diferentes:
·
há quem viva
em Obras e sociedades altamente tecnicizadas e quem viva em Obras e sociedades
em vias de desenvolvimento;
·
há quem viva
em nações envolvidas num clima de paz, e quem, ao contrário, viva em países
dilacerados pela guerra e pela violência, ou que sofrem ainda as consequências
de um passado recente, caracterizado pela violência;
·
há quem goze
de plena liberdade na sociedade em que vive, e quem, ao contrário, veja a sua
liberdade e os seus direitos fundamentais severamente limitados;
·
há quem se
dedique ao apostolado propriamente hospitalar e quem, ao contrário, se empenhe
nos temas sociais ou nos sectores de marginalização;
·
há quem tenha
como missão a de ajudar a viver, enquanto para outros o seu campo de acção é o
de garantir à pessoa humana o morrer com dignidade;
·
ainda que
todos trabalhemos na perspectiva de uma assistência integral, holística, há
matizes que nos orientam umas vezes para a saúde física, outras para a saúde
mental, ou então para o melhorar das condições para uma vida digna, etc.;
· finalmente, há uns que vivem no Norte e outros que vivem no Sul, uns nas culturas do Oriente e outros nas do Ocidente.(1)
.
____________________ (1) Cfr. PILES FERRANDO,
Pascual, Superior Geral da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, Carta Circular para o sexénio 1994-2000,
Roma, 1994, n. 1 |
Ao iniciar o terceiro
milénio da nossa era, homens e mulheres de todas as latitudes se interrogam
sobre o futuro da nossa sociedade, das nossas instituições, de nós mesmos.
Do mesmo modo todos nós, que tornamos possível a obra da
Ordem Hospitaleira
de São João de Deus no mundo, nos interrogamos sobre o futuro que a Ordem será
capaz de construir no próximo milénio ao serviço do homem que sofre, do homem
que se encontra em situação de necessidade e que pede a nossa ajuda, para
reconstruir o seu projecto pessoal.
Em alguns casos, ao projectar o futuro,
pode-se cometer o erro de deixar de lado o passado, não por má vontade, mas
simplesmente por descuido, por escassa ponderação, pelo desejo de incorporar
realidades novas.
Noutros casos, a necessidade de fazer mudanças profundas e de enfrentar
situações de rotura, exige deixar de lado acertos do passado, pois os tempos
novos exigem respostas novas, e considera-se oportuno libertarmo-nos do lastro
do passado, para haver mais liberdade de construir criativamente o futuro.
É necessário projectar o futuro a partir do presente, tendo em conta toda
a tradição positiva do passado: pensamos que seja esta a situação em que se
encontra a Ordem Hospitaleira que quer projectar o seu futuro com uma reflexão
actualizada dos seus princípios e valores.
Provavelmente haverá lugares e formas de
actuação por parte da Ordem que exijam uma mudança e poderá acontecer que em alguns
casos essa mudança deva ser radical, se queremos estar presentes neste terceiro
milénio a prestar um serviço à população e a transmitir uma mensagem que seja
actual. Por isso, não há dúvida nenhuma de que toda a Ordem Hospitaleira de São
João de Deus deverá fundamentar-se nos valores que têm caracterizado esta nossa
Instituição.
Estes valores deverão ser inculturados,
actualizados na sua expressão, realizados em harmonia com a diversidade dos
lugares do mundo, pois só deste modo poderão ser conhecidos e aceites pelas
pessoas que venham a ter contacto com as nossas Obras.
Apresentamos, em seguida, o n.
43 dos Estatutos Gerais da Ordem, no
qual são enunciados os seguintes princípios:
«Como consequência da sua identidade confessional católica,
os princípios fundamentais que orientam e caracterizam a assistência nas nossas
obras são:
§
ter como centro de interesse, para todos os que
vivemos e trabalhamos no hospital ou em qualquer outra obra assistencial, a pessoa
assistida;
§
promover e defender os direitos do
doente e necessitado, tendo em conta a sua dignidade pessoal;
§
empenhar‑se decididamente na
defesa e promoção da vida humana;
§
reconhecer à pessoa assistida o direito de ser
convenientemente informada sobre o seu estado de saúde;
§
observar as exigências do segredo profissional,
fazendo que sejam igualmente respeitadas por todos os que se aproximam dos doentes;
§
defender o direito de morrer com dignidade,
respeitando e satisfazendo os justos desejos e as necessidades espirituais
daqueles que estão prestes a morrer, conscientes de que a vida humana tem um
termo temporal e é chamada à sua plenitude em Cristo;
§
respeitar a liberdade de consciência das pessoas
que assistimos e a dos nossos colaboradores, mas exigindo com firmeza que seja
aceite e respeitada a identidade dos nossos centros hospitalares;
§
valorizar e promover as qualidades e a
profissionalidade dos nossos colaboradores e estimulá-los a participar activamente
na missão da Ordem e, em função das suas capacidades e âmbitos de
responsabilidade, torná-los participantes no processo de decisão das nossas
Obras Apostólicas;
§
opor‑se à procura do lucro, observando e
exigindo que se não lesem as normas económicas justas.» (2)
Consideramos que nós, Irmãos e Colaboradores, somos o «capital» mais
importante da Ordem para levar a cabo a sua missão.
Por isso, nas nossas relações, empenhamo-nos em respeitar e promover os
princípios da justiça social.
Nós, Irmãos
Hospitaleiros, desejamos partilhar o nosso carisma com quantos se sentem
inspirados pelo espírito de S. João de Deus.
Sempre que forem respeitados os nossos princípios, estamos abertos à colaboração e promovemo-la com organismos tanto da Igreja como da sociedade civil, no campo da nossa missão, com uma atenção preferencial pelos sectores sociais mais abandonados. (3)
_______________________________________________ (2) ORDEM HOSPITALEIRA DE
S. JOÃO DE DEUS, Estatutos
Gerais, Salice Terme, 1997, n. 43. (3)
Cfr. LXIII CAPITULO GERAL, A Nova
Evangelização e a Hospitalidade no limiar do terceiro milénio, Bogotá,
1994, § 5.6.3. |
Os princípios referidos têm a sua raiz no nosso Fundador e foram sendo
estruturados ao longo dos anos com a reflexão e o bem fazer dos seus
sucessores.
Também nós, de modo semelhante, tendo em conta a
tradição, de-vemos reflectir sobre a definição da missão da Ordem Hospitaleira.
O princípio chave subjacente à obra de João
de Deus é o seu desejo de «fazer o bem, bem feito; isto é, não se limitar a uma
assistência sem vida, descuidando a qualidade, mas unindo o sentido de caridade
cristã ao de justiça, para oferecer aos doentes e aos necessitados um serviço
eficiente e científica e tecnicamente qualificado». (4)
1. 2. O Carisma da Ordem
2. João de Deus era um homem carismático: o seu modo de agir atraiu a atenção de quantos o conheceram e a sua influência expandiu-se para além de Granada às aldeias e cidades de Andaluzia e Castela.
Este seu carisma transcendia a sua pessoa:
não se tratava só de atitudes e gestos humanos que, exprimindo-se em amor aos doentes
e necessitados, suscitavam a admiração e moviam à colaboração com a sua Obra.
_____________________________ (4) ORDEM HOSPITALEIRA DE S. JOÃO DE DEUS –
CÚRIA GERAL,
Irmãos e Colaboradores unidos para servir e promover a vida,
Roma, 1992, § 13 |
Em sentido teológico, Carisma é toda a forma de presença do Espírito que
enriquece o crente e o capacita para um serviço em favor dos outros.
O religioso consagra-se a viver um carisma particular, como dom recebido do Espírito Santo, mediante a esmerada atenção à graça, o encontro vital com Deus e a abertura e o serviço à Humanidade.
O carisma da Hospitalidade com que João de
Deus foi enriquecido pelo Espírito Santo, encarnou-se nele como gérmen que continuaria
a viver em homens e mulheres que no decurso da história prolongaram a presença
misericordiosa de Jesus de Nazaré, servindo aos que sofrem, segundo o seu estilo.
As Constituições da nossa Ordem definem assim o Carisma:
«Em virtude deste dom, somos
consagrados pela acção do Espírito Santo, que nos torna participantes, de
maneira singular, do amor misericordioso do Pai.
Esta experiência transmite-nos atitudes de benevolência e
de dedicação, torna-nos capazes de cumprirmos a missão de anunciar e realizar o
Reino entre os pobres e os doentes; transforma a nossa existência e faz com que,
através da nossa vida, se torne manifesto a amor especial do Pai pelos mais
fracos, que nós procuramos salvar, segundo o estilo de Jesus.» (5)
O Irmão de S. João
de Deus consagra-se e vive em comunhão com outros o chamamento a expressar o
mesmo carisma.
__________________________ (5) ORDEM HOSPITALEIRA DE S. JOÃO DE DEUS, Constituições, Roma, 1984, 2b |
Mas o amor para o interior (comunhão) deve exprimir-se para o exterior na
exigência de uma missão que se compreende como ajuda libertadora em favor dos
restantes membros da Igreja e, em geral, de todas as pessoas necessitadas.
Participam directamente no Carisma de João
de Deus, os Irmãos Hospitaleiros do seu nome, consagrados em Hospitalidade; e,
a modo de irradiação do mesmo, também dele são participantes os Colaboradores:
«Aquele que conhece João de Deus (...) chega a experimentar
que na sua vida surge uma espécie de Luz, que suscita nele o convite a viver a
Hospitalidade, imitando João ou os seus Irmãos (...) Os fiéis leigos que se
sentem convidados a viver a Hospitalidade, participam do carisma de João de
Deus quando se abrem à espiritualidade e à missão dos Irmãos, encarnando-a na
sua vocação pessoal.
Os níveis desta participação
são, obviamente, vários: há pessoas que se sentem particularmente ligadas à
Ordem através da sua espiritualidade; outras, ao contrário, vivem a
participação através do desempenho da sua missão.
O importante, porém, é que o dom
da Hospitalidade, recebido de João de Deus estabeleça entre Irmãos e
Colaboradores um vínculo de comunhão que seja para uns e outros impulso e estímulo
para desenvolver a própria vocação, a fim de serem para o pobre e o necessitado
manifestação do amor misericordioso de Deus para com os homens.» (6)
_____________________________________________ (6) Irmãos e
Colaboradores unidos ..., Op. cit., nn. 115-116 |
1. 3. A missão da Ordem
3. No texto das nossas Constituições a missão é definida da seguinte forma:
«Encorajados pelo dom que recebemos (...) dedicamo-nos ao
serviço da Igreja na assistência aos doentes e aos necessitados, com
preferência pelos mais pobres». (7)
Esta disposição geral, válida para toda a Ordem, deve, assim, concretizar-se em cada sua Obra apostólica.
Se partimos do facto de que cada Obra é específica e procura dar resposta às necessidades de algumas pessoas, num lugar e tempo concretos, e se pretendemos que a nossa missão seja EVANGELIZAR O MUNDO DA DOR E DO SOFRIMENTO, ATRAVÉS DA PROMOÇÃO DE OBRAS E ORGANIZAÇÕES DE SAÚDE E/OU SOCIAIS, QUE PRESTEM UMA ASSISTÊNCIA INTEGRAL À PESSOA HUMANA, segue-se daí que em cada situação concreta se dê resposta aos seguintes quesitos:
§ Qual a razão de ser desta Obra?
§ A quem é dirigido o nosso serviço?
§ Quem somos nós que o realizamos?
§ Quais são as estruturas mais idóneas?
Este será o caminho para podermos concretizar os princípios que queremos promover e a missão que queremos realizar na sociedade.
________________________ (7) Constituições,
Roma, 1994, 3 |
Só quando encarnarmos estes princípios, ou seja, quando o nosso serviço ao homem doente e necessitado do lugar mais recôndito deste mundo for iluminado por estes valores a que nos estamos a referir, só então estaremos a tornar possível uma Obra da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus.
Por isso, um outro passo muito importante será o de descrever em cada Obra quem deve ser o usuário da mesma, o homem doente e necessitado a quem estamos atendendo.
Além disso, ao dedicarmos a nossa atenção ao usuário interno deveremos incluir também nas nossas considerações o usuário externo: não só o doente, mas também os seus familiares.
Deverá haver idêntica actuação no que se refere à sociedade e ao meio onde estamos situados, às pessoas e às estruturas relacionadas com o funcionamento da Obra.
Os serviços que a Obra presta devem constituir uma realidade dinâmica e em evolução, visto que assim o é a nossa sociedade e em contínua mudança está o homem a quem assistimos.
_______________________________________________________________________________
Para a reflexão:
1)
Descreve sinais que evidenciem como
se está a viver o carisma, a missão e os princípios fundamentais da Ordem.
2)
Descreve o que está a tornar difícil ou a ofuscar o pôr em prática o carisma, a missão e os princípios fundamentais
da Ordem.
3)
Indica as linhas de acção que
podem garantir o pôr em prática o carisma, a missão e os princípios fundamentais
da Ordem.
4)
Indica os sinais que evidenciem
os laços de comunhão na hospitalidade entre Irmãos e Colaboradores.
5)
Que é necessário fazer para promover o crescimento
destes laços de comunhão na hospitalidade?
2 |
FUNDAMENTOS BÍBLICO-TEOLÓGICOS DA HOSPITALIDADE |
2. 1. A aproximação filosófica e religiosa ao sofrimento
2.1.1. O homem perante a dor
4.
«O que é o homem? Qual é o significado do sofrimento, do mal, da morte,
que subsistem apesar de tantos progressos? (...) Que acontecerá depois da vida
presente?» (1)
A realidade do sofrimento humano tem colocado uma inquietante pergunta
fundamental à qual os vários sistemas filosóficos e crenças religiosas têm
procurado responder com diferentes modalidades, mas sem conseguir eliminar de
todo o véu de mistério que a envolve.
Globalmente podemos sintetizar em cinco perspectivas as respostas
fundamentais a tão preocupante pergunta.
A primeira é, digamo-lo assim, mágica
ou misteriosa e faz referência à
radical inelutabilidade e incompreensibilidade da dor.
Com frequência esta
realidade é ligada a um mito de carácter «punitivo» por parte da divindade, ou
à superioridade de divindades maléficas sobre outras benéficas.
_________________ (1) CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 10, 1964 |
De qualquer modo,
tudo é projectado numa dimensão sobrenatural, razão por que podem ser também
sobrenaturais os remédios capazes de libertar o homem do sofrimento (bruxos,
médiuns, ritos esotéricos, etc.).
Este conceito, presente até agora entre os denominados «povos primitivos»,
subsiste também como substrato ancestral em muitas outras concepções religiosas.
Uma segunda resposta, que a partir da antiga filosofia epicúrea
atravessou a história até chegar ao hedonismo individualista deste século, é a
que podemos chamar a negação.
Todas as realidades dolorosas da vida constituem um limite à conquista do
prazer e, por conseguinte, é bom não se preocupar com isso, procurando gozar o
tempo presente até que seja possível.
Trata-se, na verdade, como diriam os psicanalistas, de «remover» a dor e a angústia criada pela
presença daquela.
Neste substrato cultural mergulham as suas raízes muitas formas de
«desespero» contemporâneo que, ao negar a realidade dolorosa, chegam logo a
negar a própria vida, quando não se consegue suportar o seu peso existencial.
Outra atitude, oposta à anterior, consiste na aceitação heróica da dor.
Pelo facto de ter sido sistematizada filosoficamente pelo estoicismo, o
correspondente adjectivo «estóico» tornou-se sinónimo daquele que aceita
grandes sofrimentos, sem se queixar.
Tão corajosa aceitação foi muito bem considerada pelo cristianismo, que na
elaboração teológica daquela introduziu elementos de derivação estóica que
pareciam harmonizar-se bem com a aceitação da Cruz por parte de Cristo e com a
atitude dos mártires.
Na realidade tal contaminação não foi de todo positiva e converteu-se numa
das matrizes daquela exaltação pseudo-cristã do sofrimento, a que foi dado o
nome de «dolorismo», e da qual ainda
estamos a libertar-nos com dificuldade.
Uma quarta modalidade de aproximação à dor consiste na sua anulação, mediante um caminho interior
que conduz progressivamente ao abandono de toda a paixão e de todo o
sofrimento, quer físico quer psíquico.
Levado à sua mais
alta expressão pelo Budismo, verifica-se igualmente a sua presença em outras
filosofias e religiões orientais, que hoje exercem o seu fascínio também no
mundo ocidental.
A atenção aos que sofrem é particularmente evidente na religião budista,
que converte a «compaixão» num dos
sentimentos universais que aproximam o homem da divindade, embora a ajuda que
se dá à pessoa que sofre consista mais em superar os desejos que estão na
origem dos problemas, mesmo materiais, do que na solução do que pode ser a sua
causa.
A última modalidade, de que falamos com mais pormenor no parágrafo
seguinte, é a que encontramos na mais alta expressão no Cristianismo e que
podemos chamar a valorização.
Sem descobrir completamente o mistério e sem querer transformá-la numa
realidade positiva em si mesma, o Cristianismo oferece «razões» à dor, transformando-lhe o seu absurdo em possível
instrumento de bem para quem sofre e para os outros.
Um tal processo é
possível verificá-lo também como simples sublimação psicológica do indivíduo,
quando encontra uma racionalização para a experiência dolorosa ou, então,
algumas compensações de comportamento.
Em qualquer caso e para além destas interpretações, não podemos deixar de
considerar uma dimensão absolutamente
pessoal do sofrimento, cujo significado escapa a qualquer generalização, já
que só tem sentido no universo existencial de cada indivíduo.
Nesta perspectiva o sofrimento converte-se em elemento biográfico cujo
mistério mais profundo nunca poderá ser descoberto, nem remetido para uma
desejada racionalidade.
2.1.2. O sofrimento e os sofredores no Cristianismo
5.
Na visão
judaico-cristã a dor, assim como o mal de que é expressão, não pertence ao
projecto originário da Criação.
Por outras palavras, não provém de Deus.
Por isso, ao contrário do que acontece noutras religiões, não há uma divindade
do mal na origem deste.
A dor, e o mal que dela é expressão, pertence à condição humana, mas, ao
mesmo tempo, expressa o mistério de uma realidade que Deus não quer e com a
qual não se alegra, ansiando ela mesma por ser redimida.
Uma realidade
negativa, uma «ausência» mais que presença, como já intuía Santo Agostinho.
Para fazer isto a Sagrada Escritura recorre à imagem mítica de uma
condição humana isenta de qualquer sofrimento e na qual entra a dor porque o
homem não obedece a uma ordem de Deus, quer dizer, na verdade afasta-se do seu
amor.
A imagem da serpente converte-se em símbolo de idolatria, isto é, do «não fiar-se em Deus» para lhe preferir uma realidade criada, fazendo
dela a sua divindade.
Durante muitos séculos este nexo «ontológico» entre a culpa, por um lado,
e o sofrimento como sua punição, por outro lado, foi entendido por Israel em
sentido «pessoal», vendo em cada dor
o castigo por um pecado (mentalidade que ainda hoje é frequente encontrar-se).
Os sábios de Israel, embora não evidenciando apenas o paradoxo entre a «felicidade do ímpio» e o «sofrimento do justo», deduziram que o
ímpio iria ser castigado na sua descendência e que o justo estava a expiar em
si mesmo as culpas dos seus pais.
O primeiro dramático grito contra esta visão do problema está contido no
livro de Job.
Com uma sensibilidade que ainda hoje surpreende pela sua modernidade, Job
insurge-se contra tal conceito e pede contas a Deus do porquê um «justo» como ele tenha que sofrer de
modo tão desproporcionado às suas possíveis culpas. A resposta de Deus,
contudo, não é explícita, mas concretiza-se fundamentalmente no convite a
acolher o mistério sem pretender explicá-lo e sem renunciar à fé num Deus que
apenas quer o bem dos seus filhos.
Esta grande tipologia do «justo
sofredor» é representada solenemente na figura do «servo sofredor de JAVÉ (JHWH)», um
personagem no qual a sucessiva tradição foi identificando a imagem de Cristo
que «carrega» os sofrimentos do povo libertando-o deles.
Uma tal «expiação vicária»,
densamente identificada por Paulo em Rom. 3, 25, mais que como «castigo» de um único homem em lugar de
todo o povo, deve ser entendida no sentido dos antigos sacrifícios de expiação, mediante os quais o holocausto
da vítima se tornava instrumento do perdão de Deus.
O sacrifício de
Cristo e, em virtude do seu corpo místico, a dor dos crentes (e segundo a
perspectiva de Rom. 8, 19 e Ef. 1, 7-10, também do mundo inteiro) converte-se
assim em instrumento do perdão de Deus.
2.1.3. A mensagem evangélica da libertação
6. A dimensão subjectiva de libertação, pela
qual Jesus Cristo na sua carne liberta o homem do pecado e, por isso, de todas
as suas consequências, adquire também uma incidência prática nas obras por Ele
realizadas.
As curas dos doentes, o acolhimento ao marginalizado, a defesa do pobre
constituem uma parte essencial da sua missão. Melhor, a sua acção em favor dos
pobres e dos últimos é até sinal específico da sua messianidade. (Cf. Mt. 11,
3-5).
Assim é plenamente recuperada a força da libertação integral do homem por
parte de Deus, da qual o Êxodo já tinha sido uma experiência histórica e um
testemunho simbólico.
A atitude de Jesus perante o doente é não só significativa mas, para nós,
também exemplar.
Jesus participa profundamente no infortúnio do doente e dos seus parentes
(Cf. Mt. 14, 14; 15, 32; Lc. 7, 13; Jo. 11, 36); não contesta, nem critica, nem
desaprova a sua vontade de cura; com frequência é Ele que toma a iniciativa
(Cf. Mc. 10, 49; Lc. 8, 49); Jo. 5, 6); nega qualquer conexão entre pecado
individual e doença actual (Cf. Jo. 9, 1-3); cura integralmente a pessoa doente
(Cf. Mt. 9, 1-7).
Quer dizer, as suas obras não se limitam a simples gestos taumatúrgicos,
mas têm como finalidade o bem integral da pessoa, a sua saúde (salus)
e não só a sua sanidade (sanitas).
O cuidado do necessitado carrega-se, assim, de múltiplos significados e
converte-se antes de mais num novo sinal da aliança entre o homem e Deus.
O pacto entre o
Criador e a Criação é de novo proposto pelo amor de Deus «ao curar» o pobre, o
doente, o excluído que, de posse deste amor, volta a viver de novo.
Ao confiar aos «fiéis de Cristo»
(christifideles) a continuidade deste
cuidado, encontramos assim o fundamento «carismático» da Hospitalidade, sobre
cujas raízes bíblico-teológicas é oportuna uma reflexão mais orgânica.
2.2. A Hospitalidade no Antigo Testamento
2.2.1. O Deus hospitalidade
7.
Hoje em
dia, ao falar de hospitalidade referimo-nos, em geral, ao acolhimento que
dispensamos a outra pessoa em nossa casa.
Mas, se quisermos ir ao mais profundo sentido teológico desta atitude
humana devemos, antes de mais, captar a dimensão ontológica da Hospitalidade.
Não será temerário ver na própria realidade trinitária a raiz mais
profunda de uma vida divina que se faz hospitalidade: a hospitalidade do Pai
que, desde a eternidade, «faz espaço» na sua essência para gerar o Filho, mas
também a hospitalidade do Filho que acolhe em si o dom geracional do Pai; por
último, a hospitalidade do Espírito Santo que se faz reciprocidade do dom
paterno-filial e, por conseguinte, identidade pessoal de um amor que acolhe (=
hospitaleiro).
Esta dimensão trinitária da Hospitalidade não se refere só à essência
divina, mas também à sua morada na pessoa humana, que se torna sujeito
hospitaleiro da divindade (Cf. Jo. 13, 20).
A própria participação eucarística, no antigo cânon latino, era assemelhada
ao receber Jesus debaixo do próprio tecto, enquanto o ser «hóspede da alma» era
denominação mais atribuída ao Espírito Santo. (2)
Depois, a nível da
imanência, a própria Criação revela-se como fruto desta primordial
Hospitalidade divina que na sua essência gera e ao mesmo tempo acolhe um
projecto que realiza para fora de si.
É a Hospitalidade que, no próprio acto de ser tal, agarra a eternidade
descendo-a à dimensão histórica e, por conseguinte, ainda antes de hóspede do
homem, faz-se hóspede do tempo.
_________________________ (2) Cfr.
Hino Veni Sancte Spiritus |
No entanto, é na
criação do homem que Deus manifesta mais cabalmente o seu ser Hospitalidade,
deixando espaço na sua criação para a presença e o domínio do homem,
hospedando-o, ainda antes da sua criação, na sua mente criadora, da qual traz a
marca.
E à criação segue-se logo a Aliança, nas suas múltiplas expressões,
simbolizadas pelo relato bíblico. Precisamente por ser encontro entre Deus e o
ser humano, a aliança de que a Sagrada Escritura nos fala converte-se não só em
encontro entre Deus e o seu hóspede, mas também entre o ser humano e o seu hóspede
divino.
Embora expressa por realidades ontologicamente diferentes, na aliança a
hospitalidade faz-se reciprocidade, dádiva recíproca. E todas as vezes que – na
história individual ou colectiva – esta aliança se rompe, o perdão divino e a
consequente reconciliação com o ser humano dão testemunho dos inesgotáveis
recursos de um acolhimento sempre novo.
2.2.2. O
conceito de hospitalidade
8.
contexto
cultural subjacente ao Antigo Testamento é o do mundo semítico, marcado por uma
tensão entre o acolhimento ao hóspede e, ao mesmo tempo, por uma certa
desconfiança em relação a ele como elemento de «ameaça» para a identidade do
povo.
Em tudo isto, o que unifica a atitude de Israel para com o outro é o
considerá-lo como estrangeiro.
A este respeito há três termos, pelo menos, que nos dão a entender
diferentes atitudes.
O primeiro é zar e indica o que pertence a uma outra estirpe
ou tribo, que é forasteiro no próprio país, por vezes também o inimigo (Dt. 25,
5; Jb. 15, 19; Is. 61, 5; 25, 2.5).
O segundo é ger e indica o estrangeiro residente no país
(os Israelitas no Egipto ou os Cananeus em Israel).
O terceiro é tosab e indica o estrangeiro residente noutro
país temporariamente (Gen. 23, 4; Dt. 14, 21).
Esta multiplicidade terminológica testemunha a diversidade da atitude
perante o estrangeiro em relação com a específica condição em que este venha a
encontrar-se.
Em síntese, podemos dizer que Israel distinguia entre os povos
estrangeiros, os estrangeiros residentes no país e os estrangeiros de passagem.
Precisamente com estes é que era exercitada a hospitalidade na sua forma
mais nobre.
Pensemos no relato de Gén. 19, 1-8, no qual Lot está disposto a oferecer
as suas filhas aos homens da cidade, na condição de que estes não toquem nos
hóspedes.
De facto, na origem desta disparidade de comportamento talvez houvesse uma
mesma finalidade: a de vencer a ameaça que o estrangeiro constituía para a sua
comunidade e identidade, quer hostilizando-o e considerando-o inimigo, quer
rodeando-o de atenções.
Encontramos, na verdade, um indício desta ambivalência nas tardias
interpretações latinas deste conceito com a raiz comum do termo hóspede (hospes) e inimigo (hostis).
Naturalmente que se
esta era a visão mais específica e pertinente em Israel, não devemos esquecer
aquilo que o mesmo Israel vivia e praticava para com os seus próprios concidadãos.
Em rigor de termos, o «próximo» (cujo conceito será totalmente reexplicado
por Jesus) era o compatriota, o correligionário.
Praticar a hospitalidade para com ele era um dever fundamental,
precisamente enquanto membro daquele povo cuja identidade era não só étnica,
mas também e, sobretudo, religiosa.
No comum sentir descobria Israel as exigências de hospitalidade para com
todas as categorias de pessoas (basta pensar nos órfãos e nas viúvas) que dela
tinham necessidade.
2.2. 3. As
razões da hospitalidade
9.
A
Hospitalidade no contexto do Antigo Testamento, assim como em todas as culturas
antigas, não deve ser entendida nos termos modernos de um simples acolhimento
ao hóspede, com cama e mesa, mas antes como uma radical «inclusão» do hóspede no âmbito da própria roda de afazeres do
hospedeiro, na sua tutela contra os inimigos, na sua protecção, no seu profundo
respeito existencial, no cuidado da sua pessoa perante todas as possíveis
necessidades.
As razões desta atenção (juntamente com as dos compatriotas supra referidas)
são várias.
Em primeiro lugar há uma razão cultural que Israel partilha com os povos
vizinhos. Trata-se da ideia segundo a qual na aparência do estrangeiro que
procura hospitalidade pode esconder-se uma divindade. Na elaboração monoteísta
as divindades transformam-se em anjos.
Há um claro indício disto em Heb. 13, 2: «Não
vos esqueçais da hospitalidade porque, por ela, alguns, sem o saberem, hospedaram
anjos».
Uma segunda motivação é mais específica e refere-se claramente à história
de Israel.
O «arameu errante» que foi Abraão, pai do
povo eleito, viveu como estrangeiro e como estrangeiro viveu Israel na terra do
Egipto.
Israel compreende, pois, muito bem a condição do estrangeiro e sabe como
ele necessita de hospitalidade.
Se se sentisse tentado a desprezá-lo, a advertência da Sagrada Escritura é
muito clara: «O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos
compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, por que fostes estrangeiros na terra
do Egipto» (Lev. 19, 34; cf. também Êx.
22, 20; 23, 9).
Por último há uma motivação religiosa (que será desenvolvida no Novo
Testamento), isto é, o exemplo divino. É Deus Hospitalidade, antes de mais, a
acolher o estrangeiro e a pedir para serem hospitaleiros com ele (cfr. Deut.10,
18), a querer que lhe sejam dados parte dos bens a Ele mesmo consagrados (cfr.
Deut. 26, 12).
O facto de que Israel também se comporte assim não é senão a actuação de
um querer de Deus, um dos caminhos de fidelidade à Lei (cfr. Lev. 16, 29; 18,
26; 19, 10.33).
2.2.4. As referências mais importantes
10.
De entre
os episódios mais significativos recordemos a visita dos três homens a Abraão,
próximo do carvalho de Mambré.
Para lá das interpretações patrísticas relativas à Trindade, que
certamente não correspondem à primeira intenção do autor, é de notar como
Abraão reconhece no hóspede o seu «Senhor».
Ainda antes de conhecer os motivos de tal visita e entre a multiplicidade
dos interlocutores ele capta a «visita» de Deus.
Todos os seus gestos são consequentes e podem ser lidos numa chave
abertamente teológica: prostra-se por terra (culto),
prepara pessoalmente o cordeiro e o leite (oferenda),
acredita nas palavras dos três personagens (fé),
suplica-lhes que não destruam Sodoma (oração).
Por outras palavras,
a hospitalidade torna-se ocasião de encontro com Deus.
Exemplar e pedagógico, na intenção do autor sagrado, é o episódio da viúva
de Sarepta que não deixa de praticar os seus deveres de hospitalidade para com
Elias, partilhando com ele o último pedaço de comida que tinha só para ela e o
seu filho.
Não só isto, mas em razão desta hospitalidade este é curado pelo profeta
(cfr. 1 Re. 17, 20).
Uma situação análoga, em certo sentido, podemos encontrá-la no relato que
se refere à prostituta Raab, que esconde os esploradores enviados por Josué a
Jericó, e recebe deles, em troca, a incolumidade para si e para a sua família
(cfr. Jos. 2, 1-12).
Uma relação entre a vida da pessoa que acolhe e a vida das pessoas
acolhidas podemos vê-la também no livro de Tobias em que se refere que deu o
dízimo dos seus bens às viúvas, aos órfãos e aos estrangeiros (cfr. Tob. 1. 8): a Hospitalidade,
que é gesto de acolhimento à vida do outro, é recompensada com o próprio dom da
vida.
O Sirácida convida poeticamente à hospitalidade para com todas as
categorias de necessitados: «Sê como um
pai para os órfãos e como um marido para as viúvas, e serás filho do Altíssimo;
e Ele amar-te-á mais do que a tua mãe» (Sir. 4, 10)
A hospitalidade a que a Sagrada Escritura nos chama torna-nos de certo
modo «familiares» da pessoa acolhida e, ao mesmo tempo, faz-nos experimentar a
ternura materna de Deus.
Não esqueçamos a forte carga de feminilidade encerrada no conceito de
misericórdia.
O termo hebraico rachamîm
relaciona-se, de facto, etimologicamente, com as entranhas maternas que se
dilatam para acolher a nova vida.
Hospitalidade e misericórdia encontram-se, assim, unidas num binómio que
se converte em ícone do Deus misericordioso, «amante da vida» (cfr. Sab. 11, 26).
Precisamente nesta perspectiva se coloca a hospitalidade com o doente,
isto é, a atitude e os gestos concretos de acolhimento em relação com ele.
É exemplar a este
respeito a figura do arcanjo Rafael que, enquanto «medicina de Deus» é presença
que acolhe e sara. A sua figura converte-se em metáfora não só da «resolução
médica» do problema, se assim nos podemos expressar, mas também do acompanhamento
do doente, do marginalizado, do moribundo, do pobre cujo único medicamento é
só, por vezes, uma presença amiga.
Destinatário desta
atitude hospitaleira é também o morto, como o manifesta o livro de Tobias,
pondo-a em estreita relação com a hospitalidade tradicionalmente entendida
(Tob. 2, 1-4).
Tobias, na verdade, manda o filho procurar um pobre para convidá-lo a almoçar; mas ele só encontra um compatriota morto, abandonado na praça.
Perante isto não
tem dúvida: deixa o alimento e vai sepultá-lo.
Em certo sentido, este gesto converte-se no seu acolhimento de convívio
com o pobre.
Por último, não podemos deixar de ter em conta um relato que inclui a
dimensão da hospitalidade na ascendência histórica do Messias.
É a história de Rut, mulher estrangeira que acompanha a sua sogra Noemi à
sua terra de origem, acabando por casar-se com Booz, em cujo campo de trigo
tinha ido respigar.
Desta união nascerá o avô de David. Os dois serão «premiados» com o
tornar-se antepassados de Jesus, porque recíproca tinha sido a sua
hospitalidade: o acolhimento de Booz à mulher estrangeira e, por parte de Rut,
o acolhimento de um pais estrangeiro pelo qual deixa o seu.
Quer dizer, a hospitalidade, como dom de mútuo acolhimento, abandona as
próprias certezas para encontrar na novidade do encontro uma nova segurança.
2.2.5. A hospitalidade institucional
11. Uma realidade de particular interesse é constituída pela escolha de seis cidades que «servirão de refúgio aos filhos de Israel, aos peregrinos e a qualquer outro que viva no meio de vós, para ali encontrar asilo quem quer que tenha morto alguém involuntariamente» (Num. 35, 15).
A instituição destas
cidades-refúgio constitui o momento em que a hospitalidade individual e/ou
comunitária se converte em estrutural.
Já não é chamada só a pessoa a ser hospitalidade nem o povo com gestos
individuais, mas toda a comunidade se faz «instituição
acolhedora».
A cidade torna-se quase um ícone de qualquer futuro organismo,
inteiramente dedicado a acolher o outro em situação de necessidade e a dar-lhe
tudo o que precise, não somente uma hospitalidade momentânea, mas uma cidade,
um completo sistema de coordenadas biográficas em que possa voltar a viver.
2.3. A
hospitalidade no Novo Testamento
2.3.1.
A perspectiva evangélica
12.
Antes de
examinar os gestos concretos de hospitalidade da parte de Jesus, deverá
reflectir-se sobre o acontecimento «hospitaleiro»
que está na base da própria fé cristã, isto é, a Encarnação.
Maria torna-se a grande «hospedeira
de Deus», acolhendo-o no seu seio, enquanto o Emanuel, o «Deus Connosco»,
se converte no Hóspede da humanidade inteira.
Não é por acaso que
deste acolhimento de Maria, poeticamente expresso na Anunciação, brota de
imediato um gesto delicadamente hospitaleiro como a visita a Isabel e o
acolhimento desta à mãe de Jesus.
Aos conteúdos e às motivações da hospitalidade, referidos ao Antigo
Testamento, o Novo Testamento junta a inovadora contribuição da mensagem e das
obras de Jesus.
O acolhimento ao outro, sobretudo se necessitado, adquire, à luz do
Evangelho uma tríplice perspectiva.
A primeira depreende-se da identificação do próprio Cristo com o pobre
(cfr. Mt. 25, 31-45). Acolhendo ao pobre acolhe-se a Cristo, para amar a Cristo
tem que se amar o pobre, o que fazemos (ou não fazemos) ao pobre o fazemos (ou
não fazemos) a Cristo.
É uma verdadeira e própria transfiguração do pobre em Cristo, não menos
emblemática que aquela que nos recorda o célebre episódio da vida de S. João de
Deus. (3)
A segunda perspectiva é a do juízo escatológico. Exclusivamente baseado na
caridade (e não na observância formal dos mandamentos) este encontra na
hospitalidade, em si mesma entendida,
um dos parâmetros de avaliação.
Não só isto, mas até que, numa mais ampla acepção do termo, podemos dizer
que a hospitalidade, ou seja, o acolhimento ao outro, o fazer disso o objecto
dos próprios cuidados, é a alma de toda a mensagem escatológica.
Por último, o Deus Hospitalidade mas invisível,
do antigo Testamento que defendia o forasteiro, o órfão e a viúva, faz-se
visível em Cristo cuja vida é inteiramente consumida ao serviço dos outros.
As suas palavras não são, assim, uma simples exortação, mas tomam corpo na
sua própria actividade, que se converte em referência exemplar para todos os
cristãos.
Seria impossível querer sintetizar os gestos de hospitalidade, isto é, de
acolhimento ao outro, da parte de Cristo. Limitamo-nos a recordar, antes de
mais, a atitude de benevolência com que se encontra com cada doente, não se
limitando a curar-lhe a enfermidade, mas a abraçar todo o seu universo existencial.
____________________ (3)
Tradição que se refere ao momento em que João
de Deus lavava os pés a um necessitado, e este se transfigurou na pessoa de
Jesus. |
Toca o leproso,
derrubando o muro da segregação que o marginalizava, devolve a vista ao cego
abrindo os olhos a todos sobre a errónea crença de uma relação entre
culpabilidade individual e doença, ressuscita o filho da viúva de Naim,
sensibilizado pela situação desta mulher.
Depois, ainda acolhe as prostitutas e com isso as críticas dos
bem-pensantes; faz-se hóspede dos publicanos comendo à sua mesa; aceita a
hostilidade do seu povo, o suplício dos seus algozes, para os quais não hesita
em pedir perdão; suporta a traição ou o medo dos seus amigos, a abjecção da
Cruz.
Cristo, numa palavra, é o grande acolhedor da história e com Ele estão
chamados a confrontar-se todos os que quiserem trilhar as sendas da hospitalidade.
2.3.2. A filoxenia
13.
A múltipla
terminologia do Antigo Testamento, mesmo se traduzida no Novo com apropriados e
diversificados vocábulos, é «superada», de algum modo, por um termo específico
que designa especialmente a hospitalidade: filoxenia,
isto é, o amor pela pessoa estrangeira.
Este nexo entre hospitalidade e caridade (filoxenia e agapé) é a
característica específica que distingue a hospitalidade neotestamentária.
Podemos dizer, portanto, que a filoxenia
constitui quase um termo «técnico»
que entrou no vocabulário cristão para indicar uma particular atitude de
acolhimento em relação aos cristãos em geral e aos mais necessitados em particular.
Não é por acaso que está incluída nos «exemplos»
de Mateus sobre a caridade no que se refere ao já citado juízo escatológico
(Mt. 25, 35); Paulo inclui-a nas exortações que derivam do exercício da
caridade (Rom. 12, 13); Pedro faz o mesmo sublinhando o dever da reciprocidade
(1 Ped. 4, 9); a carta aos Hebreus considera-a inseparável da filadelfia, isto é, do amor pelos
irmãos.
Todos a devem praticar mas, ao mesmo tempo, é uma particular incumbência
do Bispo (1 Tim. 3, 2; 5, 10; Tito, 1, 8).
Em resumo, a Sagrada Escritura deixa transparecer que aquela que é uma
exigência genérica da Caridade pode transformar-se numa expressão carismática
específica por parte de algumas pessoas a isso chamadas.
2.3.3. Hospitalidade e evangelização
14.
Aparte
esta dimensão que põe em estreita correlação hospitalidade e caridade, há uma
outra peculiar motivação neotestamentária para valorizar esta virtude: as
exigências da evangelização nunca estão separadas do mandamento da cura: «curai os doentes que aí houver e dizei-lhes: está próximo
o Reino de Deus» (Lc. 10,
9; cfr. Mt. 10, 7-8)
Um pouco como nas
modernas «missões populares» as casas
dos cristãos tornavam-se em autênticos «centros
de escuta». Este dever de acolhimento está especificamente indicado em 3
Jo. 7-8:
«já que partiram em nome de Cristo, sem
aceitar nada dos pagãos, nós temos o dever de acolher tais pessoas, para cooperarmos
na difusão da verdade».
Sobre esta práxis temos vários testemunhos no Novo Testamento (Rom. 16,
4.23; Fil. 22) e em virtude desta estratégia de evangelização por vezes
convertiam-se famílias inteiras (cfr. Act. 16). A hospitalidade faz-se assim
instrumento de evangelização, tanto na perspectiva do testemunho como na
palavra, e, para a comunidade, as estruturas de hospitalidade funcionam como
sinal e lugar do anúncio da integral libertação evangélica.
2.3.4. O Bom Samaritano
15.
A grande
parábola da hospitalidade é a do «Bom
Samaritano», na qual é identificado o próprio Cristo e o ideal do cristão
pela contínua tradição da Igreja. (4)
É por demais significativo o motivo que origina este relato parabólico,
isto é, um pedido feito a Jesus sobre o que se devia entender por próximo.
Na concepção hebraica daquele tempo, era
considerado «próximo» e, portanto, merecedor do amor de Israel, só o
compatriota ou a pessoa vinculada por particulares laços (de sangue, de
amizade, etc.).
Com um paradoxo inaudito para indicar quem é o «próximo» – o que está mais perto – Jesus escolhe «o mais afastado», o odiado inimigo
samaritano.
________________________________________________ (4) Cfr.
JOÃO PAULO II in Salvifici Doloris, 1984,
CapítuloVII. |
A parábola tem interesse também porque oferece elementos para uma espécie
de metodologia da hospitalidade que pode ser para nós de exemplar actualidade.
O samaritano põe o acolhimento do ferido acima dos seus interesses
pessoais (estava de viagem, pára, adia os seus compromissos) e faz isto não se
conformando ao comportamento dos outros (não só o sacerdote e o levita, mas
também os próprios samaritanos). Cumpre, assim, o que considera ser o seu dever
sem negar-se a fazê-lo porque «todos fazem assim».
Em seguida, utiliza o melhor que pode os recursos de que dispõe. Enfaixa
as feridas como pode, limpa-as e trata-as com os únicos remédios que tem
consigo, carrega o ferido na sua cavalgadura e procura encontrar para ele um
alojamento adequado.
Por último, organiza uma estrutura assistencial e, ao fazê-lo, envolve a
comunidade. O estalajadeiro converte-se assim no protótipo de qualquer
realização social que, oportunamente solicitada por quem recebeu o carisma da
hospitalidade, se converte em instituição de acolhimento.
Com um são pragmatismo o samaritano preocupa-se
com encontrar fundos para a assistência ao doente, dá do seu próprio dinheiro,
isto é, faz-se mediação de uma autêntica solidariedade social.
A conclusão da parábola é o perene convite feito história na vida de S.
João de Deus e de todos aqueles que têm recebido como dom o carisma da
hospitalidade: «vai e faz o mesmo»
Para a reflexão
1)
Ilustra com exemplos os actos mais
comuns de aproximação que vemos entre nós (Irmãos, Colaboradores e
assistidos) perante a dor humana (cfr. 2.1.1) [n. 2].
2)
Assinala a evolução progressiva da
hospitalidade entre o Antigo e o Novo Testamento (diferenças, afinidades,
superação de conceitos, etc.)
3 |
O CARISMA DA HOSPITALIDADE EM SÃO JOÃO DE DEUS E NA ORDEM HOSPITALEIRA |
3.1. O carisma da hospitalidade
em S. João de Deus
16. Carisma da hospitalidade significa um dom concedido pelo Espírito Santo para uma missão eclesial em favor dos pobres e necessitados.
O nosso Fundador viveu este carisma e a consequente missão com um estilo próprio e tão característico que iniciou uma cultura hospitaleira original e de grande vitalidade.
A «cultura» hospitaleira joandeína constitui um original valor profético de renovação na Igreja e na sociedade.(1)
_____________________________
(1) A Ordem Hospitaleira
dispõe hoje de uma rica documentação para estudar e aprofundar nas suas linhas
gerais a vitalidade do carisma hospitaleiro. As fontes de documentação convertem-se
assim num meio para chegar ao manancial do carisma hospitaleiro de S. João de
Deus e às suas características.
Cronologicamente e por ordem de importância, dispomos de seis CARTAS DE S. JOÃO DE DEUS e de três CARTAS DE S. JOÃO DE ÁVILA dirigidas a ele. Estas cartas estão à nossa disposição em edições críticas e apresentam-nos um retrato directo de S. João de Deus. Fazem-nos ver e apaixonar por um personagem, um membro vivo seguidor do primeiro Hospitaleiro da história, Jesus Cristo. Fazem-nos entrever a sua paixão pelo homem necessitado e sofredor, pela Igreja sua mãe e por todos os seus filhos.
A segunda fonte por ordem de importância é, sem
dúvida, a Biografia do Santo, escrita por FRANCISCO DE CASTRO e publicada em
1585: História de la vida y sanctas obras de Juã de Dios y de la Instituciõ
de su Orden, y principio de su hospital, en Granada, en casa de Antonio Librixa,
Año de MDXXXV.
Com um grande fundamento histórico, constitui um relatório profundo do
percurso humano e espiritual do Santo em que se coloca em relevo a
hospitalidade divina para com ele como fonte da sua hospitalidade sem fronteiras
e para com todos os pobres e doentes.
Para a Família Hospitaleira deve continuar a ser um fermento de revitalização dos serviços da Ordem em todo o mundo.
Apresentamos as principais características.
3.1.1.
Hospitalidade misericordiosa
17. A Hospitalidade joandeína brotou da experiência cristã da misericórdia de Deus vivida pelo nosso Fundador, ao ser-lhe revelada a sua condição de pecador e a grandeza da misericórdia e do amor de Deus, que perdoa gratuitamente e quer a comunhão de vida com todos os seus filhos.
______________________________
A partir de 1995 a Família
Hospitaleira dispõe de uma fonte de vida e hospitalidade de S. João de Deus,
nova e preciosa. Trata-se da Documentação proveniente do Arquivo da Deputação Provincial de Granada, que fez
parte do pleito «entre os Irmãos do
Hospital de João de Deus e os Frades e Convento do mosteiro de S. Jerónimo».
Esta documentação tem a data de 12.03.1570 (o processo, porém, começou em 1572)
e consiste em 171 folhas manuscritas que foram transcritas por José SÁNCHEZ MARTINEZ no seu
livro: Kénosis y Diakonia en el
itinerário espiritual de San Juan de Dios, Madrid, 1995. Das 17 testemunhas
que responderam às 26 perguntas, 10 tinham conhecido S. João de Deus. Esta e
outra documentação é utilizada por Sánchez num outro trabalho sobre o mesmo
processo, constituindo a terceira fonte por ordem de importância para estudar a
hospitalidade de S. João de Deus.
Por outro lado, contamos com as primeiras
Constituições do hospital de Granada e três Bulas fundamentais:
1. Licet ex debito, de Pio V (1 de Janeiro de 1572).
2. Etsi pro debito, de Sisto V (1 de Outubro de 1586).
3.
Piorum Virorum, Breve de Paulo V (12
de Abril de 1608).
Têm um valor decisivo porque estes documentos
aproximam-nos de S. João de Deus e dos princípios teológicos e jurídicos da
nossa hospitalidade. A estes devemos acrescentar as petições dos Superiores
Gerais, de graças e aprovações, que deram lugar a essas bulas. Ambas são consideradas
como fontes da nossa hospitalidade.
Das primeiras
Constituições recordamos:
Esta experiência constitui a característica fundamental e a fonte de onde brota a riqueza da hospitalidade de S. João de Deus: «Se considerássemos como é grande a misericórdia de Deus, nunca deixaríamos de fazer o bem enquanto pudéssemos».(2)
________________________
1.
Regla y Constituciones para el Hospital de Ioan de
Dios, desta ciudad de Granada...
1585.
2.
Constituciones hechas en el primer Capitulo General en Roma año de 1587.
3. Costitutioni et
ordini da osservarsi dagli Frati
dell’Ordine di Giovanni di Dio ... 1589.
4.
Costitutioni del devoto Giovanni di Dio – d´Italia,
1596.
5.
Regla del
Bienaventurado Padre San Agustín y
Constituciones de la Orden de Iuan de Dios, Madrid, 1612.
A documentação moderna é abundante; para não exagerar, recordamos
apenas alguns títulos de entre os mais significativos, publicados depois do
Capítulo Geral de 1976 e que citamos aqui por ordem cronológica:
- P. Marchesi, As
bases da renovação (1982).
- P. Marchesi, A
Humanização (1981).
- A Dimensão apostólica
da Ordem de S. João de Deus (1982).
- Constituições da
Ordem Hospitaleira de S. João de Deus, (1984).
- P. Marchesi, A
Hospitalidade dos Irmãos de S. João de Deus rumo ao ano 2000 (1986).
- Declarações do LXII Capítulo Geral (1988).
- Brian O’Donnell, Servo
e Profeta, (1990).
- João de Deus continua
vivo (1991).
- Irmãos e
Colaboradores unidos para servir e promover a vida (1992).
- A Nova Evangelização
e a Nova Hospitalidade (1994).
- P. Piles, A
força da caridade (1995).
- P. Piles, João
de Deus: chamada para a nova hospitalidade (1996).
- P. Piles, Deixai-vos
guiar pelo Espírito (1996).
- A Dimensão
Missionária da Ordem Hospitaleira. Profetas no mundo da
saúde (1997).
Os estudos e investigações
feitos ao longo dos séculos e recentemente, sobre a vida, a espiritualidade e a
hospitalidade de S. João de Deus, representam contributos de grande importância
para aprofundar o tema tratado nesta «Carta
de Identidade». Para não sobrecarregá-la, remetemos para os títulos mais
significativos da bibliografia.
(2) 1.ª Carta de S. João de Deus à Duquesa de Sesa (1DS), 13.
Relativamente a este tema cfr. GAMEIRO, Aires, in Koinonia, filoxenia e martírium em S. João de Deus e na sua Ordem
nascente. Tese de doutoramento, Roma, 1996.
Costumamos considerar S. João de Deus como
fundamentalmente misericordioso, compassivo, capaz de compreender, de perdoar,
e temos razão; mas isto é uma consequência da sua consciente e permanente
vivência em relação à misericórdia e ao perdão de Deus e de Cristo para com
ele.
Ele via a vida e as
coisas da vida como dons divinos gratuitos da misericórdia divina: «... devemos dar graças a Nosso Senhor Jesus
Cristo, por usar para connosco de tanta misericórdia, dando-nos de comer, de
beber e de vestir, e todas as coisas sem o merecermos».(3)
O bem
mais desejado e pedido pelo nosso Fundador durante a sua conversão foi o perdão
e a misericórdia divina, como podemos ler nos capítulos VII, VIII e IX da sua
Biografia, em Castro.
Suspirou pela misericórdia do Senhor e pediu-a, e tendo-a recebido fez-se intermediário dela para todos os necessitados.
A hospitalidade misericordiosa de S. João de Deus é, sem dúvida, o que mais impressiona o leitor, atento às suas acções extraordinárias em favor de todas as categorias de necessitados e sofredores.
Podemos afirmar de maneira absoluta que a experiência profunda da hospitalidade misericordiosa de Deus para com ele o transformou em hospitaleiro misericordioso para com todos sem excepção e quase, podemos dizê-lo sem limites.
Nas suas acções não conhecemos limites de necessitados e sofredores que não tenha socorrido.
_________________________
(3) 2.ª Carta de
S. João de Deus à Duquesa de Sesa, (2DS), 18.
A lista dos necessitados de Granada e dos arredores, socorridos por S. João de Deus, que Castro nos apresenta no capítulo XII, e a que o mesmo Santo apresenta na Segunda Carta a Guterres Lasso, coincidem e abrangem quase todas as categorias existentes na cidade de Granada, no seu tempo.
3.1.2.
Hospitalidade solidária
18. Esta experiência e revelação da misericórdia de Deus para com ele provocou duas respostas: uma de aniquilamento (Kénosis)(4) ou humilhação penitencial, bem visível nas fontes; depois, uma resposta de hospitalidade misericordiosa para com todos os necessitados, sofredores e pecadores.(5)
Francisco de Castro
descreve-nos como João de Deus, no dia da sua conversão, de livreiro pobre que
era, se desfez de tudo o que tinha para se fazer um seguidor de Jesus Cristo.
.
Diz ainda:
____________________________
(4) Cfr. SANCHEZ MARTINEZ, José,
in Kénosis y Diaconia en ele itinerário
espiritual de San Juan de Dios. Madrid, 1995.
(5) Cfr.
2ª
Carta de João de Deus a Guterres Lasso (2GL), 5. Estas listas não são
exaustivas.
Castro,
no capítulo XVI, tem intenção de acrescentar outros necessitados. O Santo
assistiu pessoas sofredoras de males morais mais agudos. Conhecemos a sua
solicitude e misericórdia para com as prostitutas, os presos, os
marginalizados, os mouros e, provavelmente, os «cristãos novos», de origem
judia, os escravos e outros excluídos sociais, como os doentes incuráveis.
«Andava sempre descalço, tanto na cidade como em todas as
suas viagens, com a cabeça descoberta, com a barba e o cabelo rapados à
navalha, sem camisa nem outro vestido mais do que um capote de burel apertado
com um cinto e uns safões de estamenha.
Andava sempre a pé, sem nunca usar cavalgadura, tanto nas
viagens como fora delas, por mais cansado e ferido dos pés que estivesse. Quer
chovesse quer nevasse, nunca cobriu a cabeça, desde o dia em que começou a
servir a Nosso Senhor, até que Ele o chamou para Si.
Contudo, compadecia-se dos mais ligeiros sofrimentos dos
seus próximos e procurava remediá-los, como se ele próprio vivesse em grandes comodidades» .(6)
A sua primeira casa começou por ser muito pobre para acolher outros pobres
como ele.
Castro conta-nos isso em poucas palavras:
«Resolvido João de Deus a procurar deveras o alívio e
remédio dos pobres, falou com algumas pessoas devotas, as quais o tinham
ajudado nos seus trabalhos e, com a sua ajuda e entusiasmo, alugou uma casa na
Peixaria da cidade, por ser perto da praça de Bivarrambla, de onde recebia,
como doutras partes, os pobres desamparados, doentes e entrevados, que
encontrava.
Comprou algumas
esteiras de junco e algumas mantas usadas, para dormirem, porque ainda não
tinha dinheiro para mais, nem outro remédio a fazer» .(7)
______________________________
(6) CASTRO, op.
cit., Capítulo XVII
(7) Ibid., Capítulo XII.
Podemos afirmar que
S. João de Deus se encarnou nos pobres e nos doentes como qualquer um deles,
acolhendo-os e acudindo às suas necessidades. Curou-os, apesar das suas
limitações, com as riquezas do carisma da hospitalidade que Deus lhe deu. Nunca
se negou a ajudar os necessitados com tudo o que podia dispor na sua pobreza.
3.1.3.
Hospitalidade de comunhão
19. Intermediário entre ricos e pobres, entre categorias de opulentos e
necessitados e desprezados, S. João de Deus praticou a hospitalidade de
comunhão.
Com S. João de Deus a recolha de esmolas
converteu-se num património e numa riqueza espiritual da Ordem, da qual não se
pode prescindir, embora esta tenha adaptado os seus métodos a cada época e
cultura.
É necessário considerá-la como circulação de bens para a construção solidária e espiritual da sociedade.
Quando gritava de noite pelas ruas «fazei o bem, irmãos, a vós mesmos, por amor
de Deus», queria inquietar e provocar as consciências a não dormir
sobre as misérias dos seus irmãos; pedia e dava numa reciprocidade dinâmica.
Convidava a praticar
a comunicação cristã de bens.
Quando escrevia cartas agradecendo as ofertas recebidas e contando a dor
que sentia pelos sofrimentos dos miseráveis que não podia assistir sozinho, e
quando pedia continuamente dinheiro emprestado que pagava com dificuldade,
queria construir uma comunidade de comunhão na qual todos se sentissem irmãos –
amados, ajudados e perdoados por Deus, como ele se sentia.
Sabia que se todos
tivessem tido uma experiência profunda da misericórdia de Deus, como ele a
queria, a Igreja e a sociedade ter-se-iam tornado realmente na família dos
filhos de Deus habitados pela vida e pela comunhão divina, superando as
necessidades dos necessitados.
3.1.4.
Hospitalidade criativa
20.
Numa cidade com quase dez
hospitais e casas para os pobres, é incrível como a sensibilidade de S. João de
Deus tenha descoberto tantos necessitados e doentes abandonados. E surpreende
ainda mais como conseguiu abrir um espaço novo na maneira de praticar a
hospitalidade. Antecipou-se aos que tinham a responsabilidade de o preceder na
resolução dos problemas dos doentes, dos pobres e dos necessitados.
A sua hospitalidade era uma resposta dada aos que não a encontravam
(abandonados) e às necessidades novas que não despertavam a sensibilidade da
sociedade (sofredores devido a culpas, ódio ou vinganças).
S. João de Deus via todo o sofrimento, o do corpo e o do espírito.(8)
3.1.5. Hospitalidade integral
21.
Podemos
afirmar que um dos valores característicos da hospitalidade joandeína é o
carácter integral dos cuidados dirigidos a toda a pessoa que sofre. Para João
de Deus, o doente e o necessitado não eram apenas um corpo e uma alma, pecador
ou pecadora, mentiroso ou indigno.
____________________________
(8) Cfr. 2.ª Carta de S. João de Deus a Guterres Lasso (2GL), 8
Todos eram pessoas, seus irmãos e irmãs, todos dignos de serem ajudados e perdoados por ele e pelos seus colaboradores. E porquê? Porque o mesmo faz Deus providenciando cada dia às necessidades de todos,(9) perdoando e salvando.(10)
E porque vê-los sofrer lhe despedaçava o coração.(11)
A hospitalidade de S. João de Deus, diríamos hoje, era ao mesmo tempo preventiva e de emergência, curativa e reabilitadora; curava os curáveis e acompanhava os incuráveis.
Além disso, era pedagógica e formativa para os órfãos, as crianças expostas e as prostitutas e para aqueles que ajudava a libertar-se das suas culpas, a construir e levar por diante um projecto de formação e de inserção social. No seu hospital oferecia cama e comida, calor e locais para acolher os peregrinos, medicamentos, médicos, capelães e ajudas espirituais para os doentes.(12)
A prática hospitaleira de S. João de Deus mostra-nos que o provérbio
chinês – se deres a um homem um peixe,
sacia-lo por um dia; se lhe deres uma cana de pesca, ele terá de comer para
toda a vida – é uma questão falsa, quando se interpreta como dilema exclusivo
(ou... ou...).
A hospitalidade para socorrer os que sofrem e os
necessitados tem de ser sempre e... e..., segundo as circunstâncias do lugar,
do tempo e das pessoas.
______________________________
(9) 1.ª Carta de S. João de Deus a Guterres Lasso (1GL), 2.
(10) Carta de S. João de Deus a Luís Baptista (LB), 19.
(11) 1DS, 15
(12) Desde o Capítulo XII até ao Capítulo XX da sua Biografia, CASTRO ilustra bem estas diversas dimensões da hospitalidade joandeína
3.1.6. Hospitalidade reconciliante
22.
S. João de Deus era compreensivo e tratava a todos
– pecadores, opressores e oprimidos – como Deus o tratava a ele: perdoava e ajudava,
assistia e curava as feridas físicas e morais.
Muitas
vezes cuidava primeiro das feridas morais e espirituais, como condição para
alcançar a harmonia e a cura das enfermidades do corpo.
Num mundo tão dividido e dilacerado por tantas ideologias, por fundamentalismos e discriminações étnicas que geram ódio, ressentimentos e desejos de vingança, a capacidade de S. João de Deus de perdoar, de reconciliar e de construir pontes de fraternidade merece ser estudada e vivida pela Família Hospitaleira.
Entre todos os seus
assistidos e os seus colaboradores, ele era um verdadeiro médico de feridas, de
tensões e de conflitos.
Como Cristo, também ele curava as chagas.
Os seus biógrafos fazem notar como ele se sentia ferido pela separação dos seus pais, pela saudade e pelas frustrações da vida militar; mas, principalmente, pelas suas culpas, pelas injúrias sofridas, pelo sofrimento causado por tantas dívidas contraídas para ajudar os pobres e os doentes, seus irmãos.
Estas experiências
de feridas existenciais convertiam-no num hospitaleiro especializado em curar e
reconciliar entre si inimigos que, depois, chegavam a tornar-se seus
colaboradores, como aconteceu com Antão Martim e muitos outros.
À sua benfeitora, a Duquesa de Sesa, dizia que se curava com as feridas de Cristo crucificado e aconselhava-a a que fizesse o mesmo:
«Não encontro melhor remédio nem consolação, para quando me
encontro aflito, do que olhar e contemplar a Jesus Crucificado».(13)
«Recorrei
à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e... sentireis grande consolação».(14)
Foi assim que conseguiu que Antão Martim
perdoasse e se reconciliasse com Pedro Velasco e pôde conquistá-los a ambos
para que fossem colaboradores directos da sua hospitalidade, como primeiros
Irmãos da Ordem.
E unido à paixão de Cristo, nas sextas-feiras, cuidava das feridas da prostituição de muitas mulheres destruídas por aquele género de vida.
Pelo seu carisma de hospitalidade misericordiosa perdoou à mulher que tirou da prostituição e que o injuriava: «Cedo ou tarde, tenho que te perdoar. Por isso, perdoo-te desde já».(15)
E assim converteu-a uma segunda vez, como ela mesma deu testemunho durante o funeral do santo.
Quando o acusavam perante o arcebispo de acolher gente indigna na sua «Casa de Deus», declarou ser ele o único indigno e que «já que Deus tolera maus e bons, e, diariamente faz nascer sobre todos o seu sol, não haverá razão para despedir os desamparados e aflitos, da sua própria casa».(16)
________________________________
(13) 2DS.,
9.
(14) 1DS, 10
(15) CASTRO, ibid. , Capítulo XV.
(16) CASTRO, ibid., Capítulo XX.
3.1.7.
Hospitalidade geradora de voluntários e colaboradores
23.
O amor misericordioso sem fronteiras de S. João de
Deus tinha uma vitalidade tão forte que gerava amor, caridade cristã e colaboração;
era uma hospitalidade luminosa, um carisma cada vez mais participado.
Esta
força carismática recebida de Deus, à qual S. João de Deus foi fiel, converteu
o santo num facho de luz hospitaleira em diversos níveis de solidariedade e
colaboração com ele na ajuda aos pobres e doentes.
Podemos distinguir vários níveis de colaboradores: os que ajudavam com acções ou esmolas pontuais, e os que se converteram em colaboradores permanentes, como Angulo e muitos outros citados nas suas cartas, por Castro, e na documentação do Processo contra os frades Jerónimos.
Alguns abraçaram o voluntariado joandeíno até à total pertença na identificação com o seu carisma.
Entre os mais estreitos colaboradores contam-se os primeiros companheiros
ou Irmãos de hábito, os benfeitores mais identificados com o seu carisma que
fizeram própria a obra de S. João de Deus.
E este sentimento de pertença ao hospital e à sua obra joandeína gerava,
por sua vez, uma forte dinâmica de solidariedade.
Esta identificação com o carisma levava muitos dos seus colaboradores a defenderem a sua originalidade com bens e pessoas.(17)
Esta identidade de pertença à Família de S. João de Deus continua a ser um modelo válido para o presente e o futuro.
3.1.8.
Hospitalidade profética
24. Uma das características mais originais da Hospitalidade de S. João de Deus
foi a profecia.
Sem meios, um estrangeiro imigrante com fama de louco, entregando-se
totalmente a Jesus Cristo e aos que sofrem, abriu caminhos novos na Igreja e na
sociedade.
As suas atitudes hospitaleiras surpreenderam, desconcertaram, mas funcionaram como faróis para indicar caminhos novos de assistência e humanidade para com os pobres e doentes.
A partir do nada,
criou um modelo alternativo de ser cidadão, cristão, hospitaleiro a favor dos
mais abandonados.
Esta hospitalidade profética foi um fermento de renovação na assistência e na Igreja.
O modelo joandeíno
funcionou também como consciência crítica e guia sensibilizadora para atitudes
novas e práticas de ajuda aos pobres e marginalizados.
_______________________________
(17) Esta solodariedade identificadora é bem visível nas
CARTAS a Guterres Lasso e à Duquesa de Sesa, na Biografia de CASTRO e nos
testemunhos do Processo e refere-se a dezenas de colaboradores.
3.2. A hospitalidade ao longo da
história da Ordem
3.2.1. A hospitalidade joandeína
desde os primeiros companheiros e através dos séculos
25. Os primeiros Irmãos(18), que foram companheiros de S. João de Deus, participaram no seu carisma hospitaleiro, praticaram-no e difundiram-no. O acto de fundação do hospital Antão Martim de Madrid fala do estado de necessidade de «doentes com chagas contagiosas».
Antão Martim, no seu testamento, afirma que João de Deus o deixou como guia do seu hospital, no seu lugar, como ele mesmo.(19)
Os seus companheiros
são recordados pelas testemunhas como hospitaleiros muito próximos no seu
serviço aos pobres e aos doentes que assistem.
A pessoa de João, humilde, pobre e humilhada no seu esvaziamento voluntário (kénosis), renunciando a toda a grandeza para se situar ao nível dos pobres e para os servir, continua a ser o modelo para os seus companheiros e colaboradores.
_________________________________
(18) No Processo contra os Jerónimos (Cfr.
SANCHEZ, op. cit.), anterior à biografia
de CASTRO, fala-se muito das atitudes hospitaleiras dos Irmãos de hábito de S.
João de Deus.
João de Ávila (Angulo) dá-nos os seus nomes: Antão
Martim, Pedro Pecador, Alonso Retigano e Domingos Benedicto.
(19) ORTEGA LÁZARO, L.
Antón Martín ... pp. 17-18 e 31
As testemunhas dos primeiros anos da Ordem são unânimes em declarar que «os Irmãos recebiam
com muita caridade e abertura a todos os pobres sem excepção, quer fossem estrangeiros
quer gente do lugar, curáveis ou não, loucos ou sãos de mente, crianças e
órfãos.
E faziam isto
imitando o seu fundador, João de Deus. Recebiam a todos, tanto os mouros como
os cristãos velhos». (20)
Depois desta primeira etapa da Ordem Hospitaleira, ao longo de quase
cinco séculos de história os Irmãos e colaboradores joandeínos, os que já
faleceram e os que vivem ainda hoje, uns famosos e outros que passaram
despercebidos, deram um precioso testemunho de fidelidade ao carisma da
hospitalidade.(21)
Por outro lado, desde as primeiras décadas da existência da Ordem, a assistência nos campos de batalha, nos exércitos e entre os militares, mesmo em tempo de paz, converteu-se numa presença constante de serviço hospitaleiro da Ordem em Espanha, Itália, Portugal e França.
_________________________________
(20) Declarações no Pleito
entre os Irmãos do «hospital de João de Deus» e «os frades e convento do
mosteiro de S. Jerónimo, 1572-73, in SANCHEZ MARTINEZ, José, op.cit. pp.
181-188 e 285 ss.
(21) Consideramos importante dar a conhecer, mesmo só em parte, algumas
fi-guras de Irmãos que se notabilizaram nos valores da hospitalidade.
Os santos, beatos e veneráveis merecem ser
recordados em primeiro lugar: S. João
Grande, S. Ricardo Pampuri, S. Bento Menni e muitos Beatos mártires.
Entre os veneráveis e os que têm as suas causas de beatificação já iniciadas,
contam-se: Francisco Camacho, Antão
Martim, José Olallo Valdés, Eustáquio Kugler e um grupo de mártires, além
de muitos outros que na história de Ordem sofreram o martírio e a perseguição
por
Cristo e pela Hospitalidade no Brasil, Colômbia, Chile, Polónia, Filipinas,
França, Espanha e, recentemente, também noutros países.
A acção da Ordem articulou-se em outras duas expressões de hospitalidade: uma o serviço de emergência, em caso de epidemias e nos hospitais em territórios de missão – alguns deles converteram-se em «hospitais-escolas» (22); a outra, que se desenvolveu em vários países, foram as escolas de medicina e cirurgia e os cursos para enfermeiros, com o fim de preparar os membros e os colaboradores da Ordem.
Nos séculos XIX e XX, com a psiquiatria que se converteu num ramo especializado da medicina, a Ordem sensibilizou-se em fundar e administrar Obras Apostólicas específicas para doentes mentais.
____________________________________
Muitos
Irmãos «fundadores» e «restauradores» de comunidades e obras da
Ordem merecem ser mais conhecidos como figuras vivas de vitalidade e de valores
do nosso carisma, como os Irmãos João
Bonelli (França); Gabriel Ferrara
e João Baptista Cassinetti (Itália e
Alemanha); Francisco Hernández
(América). Em épocas mais recentes vale a pena recordar os seguintes nomes: Pe. João Maria Alfiei (Itália), Paulo de Magallon (França), Eberhard Hacke e Magnobon Markmiller (Alemanha), e S. Bento Menni (Espanha,
Portugal e México).
A nível de
investigação histórica têm um papel destacado alguns Irmãos, que com amor pela
Ordem e com espírito científico, nos permitem conhecer hoje o passado do nosso
carisma.
Outros Irmãos ilustres
destacaram-se como médicos, cirurgiões, farmacêuticos, botânicos, dentistas;
mas seria impossível mencioná-los a todos. Neste mesmo documento, dedicado ao
tema da formação e à investigação na Ordem, referimos alguns outros nomes, no
capítulo sexto, nota 11.
A
estes Irmãos que foram profetas da Hospitalidade, deveríamos acrescentar os
colaboradores que, ao longo da história, colocaram os seus valores e
capacidades ao serviço da Ordem.
(22) ANTIA, Juan Grande, in: Labor
Hospitalario-Missionera de la Orden de S. Juan de Dios en el mundo, fuera de
Europa», AA.VV., Madrid, 1929.
«Os Irmãos Hospitaleiros, desde Filipe
II até Fernando VII, foram automaticamente responsáveis pela saúde dos
militares, especialmente nas expedições à Índia e no tempo de guerras e epidemias.
Na França este desenvolvimento foi notável graças a Paul de Magallon, no século XIX, com a restauração da Ordem depois da Revolução de 1798; e, em Portugal, Espanha e América, graças a S. Bento Menni.
Depois das restaurações do século XIX, outras Províncias (alemã, polaca, austríaca e italiana) fundaram obras exclusivamente para doentes mentais e deficientes psíquicos – crianças, jovens e adultos.
As Províncias da
Irlanda, Inglaterra e Ásia-Austrália especializaram-se em promover serviços
para deficientes psíquicos e deram um importante contributo ao diferenciá-los
das pessoas diagnosticadas como doentes mentais e ao mudar a terminologia
aplicada aos mesmos, com o fim de sublinhar a sua dignidade e os seus direitos
como pessoas.
A assistência às crianças e aos jovens deficientes físicos foi uma resposta de S. Bento Menni na Espanha, tão urgente até há poucos anos e que encontra hoje expressões nalguns hospitais gerais pediátricos de vanguarda e em Centros de reabilitação.
Uma expressão do carisma de S. João de Deus que se desenvolveu nas últimas décadas são: os abrigos nocturnos para pessoas sem abrigo; os Centros para pessoas idosas; e os Centros para pessoas com dificuldades de aprendizagem ou deficientes psíquicos.
______________________________________________
Mais de cem Hospitais-Escolas que tinham na América, nos quais se
curavam espanhóis, militares e indígenas, e que em cada um deles tinham uma
numerosa e bem servida Escola de índios,
tinham também farmácias e clínicas ou dispensários para socorro e remédio de
todos.
Nos seus Hospitais-Escolas os índios
encontravam, além disso, não só a saúde para o corpo, mas também para a alma;
os fervorosos Filhos de S. João de Deus foram sempre fiéis ao axioma herdado do
seu Fundador e dos seus antepassados, e que sempre continua válido para um bom hospitaleiro: pelos corpos às almas».
Um dos aspectos que a Ordem sempre desenvolveu foi a dimensão missionária.
Pode-se dizer que a expansão missionária da Ordem começou quando ela surgiu.
A fundação em Cartagena (Colômbia), em 1596, foi a primeira das muitas que se foram criando na América, África e Ásia até ao século passado.
Depois da época em
que a Ordem foi extinta, restauraram-se as missões na América, África, Ásia e
Oceânia.
A Ordem quer levar por diante hoje a evangelização do mundo da saúde tal como fez S. João de Deus e como Jesus Cristo nos ensina.
3.2.2.
Presença actual
26. As exigências da Nova Evangelização que a Igreja manifesta no início do III
milénio, levaram a Ordem a responder com a apresentação de uma Nova
Hospitalidade. A «nova hospitalidade»
deve expressar-se em dois sentidos: em obras de inovação na comunidade e em
novas respostas às carência existentes.
A partir do Capítulo
Geral de 1976 e, mais ainda, a partir do Capítulo Geral Extraordinário de 1979,
a Ordem realizou um esforço considerável para renovar a assistência. Foram
diversas as áreas de desenvolvimento e vale a pena recordar as principais.
A humanização e a pastoral conheceram nestes últimos vinte anos uma revitalização muito necessária para complementar os grandes progressos técnicos dos hospitais e para responder aos sofrimentos concretos dos doentes e dos seus familiares.
A assistência joandeína foi sempre integral (holística), incluindo sempre a solicitude pastoral e espiritual, actualizada.
A dimensão humanizadora e pastoral juntamente com a necessária formação permanente dos Irmãos e dos colaboradores, pode renovar a presença da Ordem nos Centros tradicionais, tornando-se elementos de apoio para uma nova hospitalidade e uma nova evangelização.
Nos últimos anos
completou-se a humanização com a formação em bioética, em ética da saúde e com
a sua aplicação ao serviço dos doentes.
A modernização da estruturas com base nas novas necessidades e exigências
técnicas e humanas, juntamente com novos critérios de gestão, estabelecendo a
prioridade dos recursos e seguindo programas bem definidos, contribuíram para
renovar muitos dos nossos hospitais e Centros.
A evolução verificada nos nossos Centros tradicionais afectou todas as áreas.
As inovações tecnológicas no âmbito das ciências da saúde reflecte-se nas mudanças contínuas que se realizam nos nossos Centros. As suas estruturas materiais registaram muitas mudanças devido à introdução de equipas técnicas, à evolução das técnicas assistenciais e aos novos métodos de trabalho, sobretudo o trabalho em equipa, com várias especialidades.
Tudo isso tem por
fim atender melhor e de uma forma mais global o doente como pessoa.
A mudança mais
significativa foi a da integração dos colaboradores.
Até há pouco tempo a comunidade dos Irmãos, com o apoio de alguns leigos, tornava possível o serviço aos doentes. Hoje em dia, os colaboradores são as actores principais nas obras e não há áreas em que eles não estejam presentes, desempenhando mesmo cargos de grande responsabilidade na direcção e na gestão.
Juntamente com os colaboradores-empregados, nos nossos Centros está a ser integrado um número cada vez maior de voluntários que desenvolvem tarefas de humanização e de serviço pastoral.
Esta presença renovada e actualizada nos Centros está a dar excelentes resultados, sobretudo graças à formação.
Desta maneira, o futuro das obras passa, em parte, pela actualização constante dos instrumentos técnicos, dos métodos de trabalho e de direcção e gestão, mas também pelos meios técnicos de comunicação e informatização mais modernos.
Também se está a desenvolver a área da investigação científica com programas que às vezes se levam a cabo com a colaboração de departamentos universitários competentes.
Os Irmãos deverão ser guias ético-morais, tornar-se consciência crítica, antecipação criadora e inovadora, e sinal profético da boa nova para os pobres, os doentes e os necessitados de hoje, de todas as culturas e religiões.
3.2.3.
Novas formas de presença
27.
Desde há vários anos as expressões inovadoras na
Ordem derivam da sensibilização para as novas necessidades da sociedade e para
respostas inovadoras para as novas necessidade existentes a partir do nosso
carisma.
Nalguns
casos recorre-se a expressões já presentes na prática de S. João de Deus: uma
maior abertura à comunidade social, às famílias e às suas necessidades.
A nossa
hospitalidade sai cada vez mais dos hospitais e dos Centros assistenciais e
estende-se à prevenção e educação da saúde, à reabilitação, à reinserção social
e à saúde comunitária.
S. João
de Deus ocupava-se com zelo dos órfãos, da sua educação e formação, da reinserção
social das prostitutas, etc.
Deste
modo a Ordem está hoje alargando o seu campo de acção aos centros abertos ou hospitais de
dia (day-hospital), à assistência
ao domicílio, aos poli-ambulatórios. Procura também encontrar soluções
assistenciais para ajudar os novos doentes: drogados, doentes de SIDA, doentes
terminais, etc.
Os
sofrimentos causados pela solidão, pelo abandono, pelo desespero e pelo vazio
existencial encontram recursos nos
«telefones da esperança», na publicação de boletins e folhetos de mensagens
humanas e cristãs, em revistas sobre temas de reflexão, de formação ética e hospitaleira.
Um dos
caminhos através do qual a Ordem tenta responder às novas necessidades da
sociedade é a integração de Irmãos e colaboradores em obras, projectos e
iniciativas da Igreja e de outros organismos nacionais e internacionais no
campo da saúde, da investigação científica e da assistência.
Estas
realizações verificam-se entre grupos de uma ou mais Províncias, entre as suas
fundações ou associações, em colaboração com Organizações Não-Governamentais
(ONG), com governos de outros países, sobretudo em vias de desenvolvimento.
O carisma
de S. João de Deus é tão rico e tem tanta vitalidade que quando a Ordem, os
Irmãos e os colaboradores se deixam guiar pelo Espírito de Deus e se
sensibilizam para as necessidades que emergem na sociedade, a hospitalidade
torna-se uma presença eficaz, mesmo quando os recursos humanos e espirituais
parecem insuficientes.
______________________________________________________
Para a reflexão:
Como é que a Ordem (Irmãos e Colaboradores) está a recriar
as características principais da hospitalidade?
|
PONTOS FORTES |
PONTOS FRACOS |
CARÊNCIAS, SUGESTÕES |
1) Hospitalidade
misericordiosa |
|
|
|
2) Hospitalidade
solidária |
|
|
|
3) Hospitalidade
de comunhão |
|
|
|
4) Hospitalidade
criativa |
|
|
|
5) Hospitalidade
integral |
|
|
|
6) Hospitalidade
reconciliante |
|
|
|
7) Hospitalidade
geradora de Vo-luntariado e Colaboradores |
|
|
|
8) Hospitalidade
profética |
|
|
|
4 |
PRINCÍPIOS QUE ILUMINAM A NOSSA HOSPITALIDADE |
28. Acolhendo o chamamento da Igreja a ser cada vez mais consciente da missão evangelizadora de todos os grupos e obras eclesiais, ao projectar a nova Hospitalidade, a Ordem sente-se comprometida a desenvolver claramente a sua identidade, à luz do que denominamos a «Cultura da Ordem».
Nesta cultura hospitaleira estamos comprometidos todos, Irmãos e Colaboradores, encarnando na nossa acção os princípios que iluminam a nossa hospitalidade. Vamos seguidamente desenvolver cada um destes princípios.
4.1. A
dignidade da pessoa humana
4.1.1. O respeito pela dignidade da pessoa humana como
característica essencial da atitude verdadeiramente cristã
29. O facto de o homem e a mulher terem sido criados à imagem de Deus (Gn 1, 27) confere-lhes uma dignidade indiscutível.
De todos os seres vivos, o ser humano é o único semelhante a Deus, chamado à comunicação com Ele, que pode ouvir e responder a Deus.
A dignidade de todo o ser humano perante Deus é o fundamento da sua dignidade diante dos homens e de si mesmo.
É esta a razão última da igualdade e fraternidade fundamental entre todos os homens, independentemente da sua raça, povo, sexo, origem, formação e classe social. É esta a razão pela qual um ser humano não pode utilizar um outro ser humano como uma coisa; pelo contrário, deve tratá-lo como um ser autónomo e responsável por si mesmo e demonstrar-lhe respeito.
Da dignidade do ser humano perante Deus deriva também o direito e o dever da auto-estima e do amor a si próprio.
Por conseguinte,
devemos considerar-nos um valor para nós mesmos e assumir responsavelmente o
cuidado da nossa saúde.
Da dignidade de todo o ser humano perante
Deus deriva também o dever de amar o próximo como a nós mesmos e que a vida do
ser humano é sagrada e inviolável, principalmente porque no rosto de todo o ser
humano resplandece a glória de Deus (Gn 9, 6).
4.1.2. O respeito tem de ser universal.
30. O respeito da dignidade da pessoa humana criada à imagem de Deus exige que todos, sem excepção, devem considerar cada uma das outras pessoas como um «outro eu», cuidando em primeiro lugar da sua vida e dos meios necessários para que possam vivê-la dignamente.(1)
Exige também que se
afirme a dignidade de todo o ser humano, quaisquer que sejam as anomalias de
que padeça, as limitações que tenha ou a marginalização social a que se veja
reduzido.
O respeito da dignidade da pessoa humana criada à imagem de Deus está latente na filosofia e na crescente consciência internacional relativamente ao amplo leque dos direitos humanos.
__________________________
(1) VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), n. 27
O carácter universal de respeito pela dignidade
humana explicita-se na afirmação de Kant, segundo a qual as pessoas têm um
valor absoluto, são fins por si mesmas, dotadas de dignidade e não intercambiáveis
por um preço.
O corolário ético seria que, enquanto pessoas, todos os homens são iguais e merecem a mesma consideração e respeito. A dignidade é inerente ao ser humano pelo facto de ele ser sujeito de direitos e deveres.(2)
4.1.3. Atitude profunda e
conduta eficaz de acolhimento para com os doentes e os necessitados
31. Dado que o valor e a dignidade humana
ficam mais facilmente questionados e comprometidos no sofrimento, na debilidade
ou na morte, a Ordem Hospitaleira, ao atender o doente como tal e os
necessitados, dá um testemunho do que significa e vale o ser humano e transmite
a todos os homens a maravilhosa herança de fé e esperança que recebeu do
Evangelho.
As atitudes de Jesus em favor dos mais fracos e dos marginalizados da sociedade, são para a Ordem Hospitaleira, segundo o exemplo de S. João de Deus, uma chamada permanente ao compromisso na defesa e promoção dos seus direitos fundamentais, baseando-se no respeito da dignidade humana.
______________________________
(2) O conceito de dignidade humana
e dos direitos das pessoas aparecem intimamente unidos à Declaração Universal
dos Direitos Humanos, 1948; no Pacto Internacional sobre os Direitos
Económicos, Sociais e Culturais, 1996; no Pacto Internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos, 1996; e no recente Congresso sobre Direitos Humanos e
Biomedicina, 1997.
Tendo em conta a
variedade de formas através das quais a Ordem exprime actualmente o seu
carisma, parece-nos que existem alguns campos que, na perspectiva da nova
Hospitalidade, são sinais evangélicos especialmente significativos, nomeadamente:
§
As pessoas «sem-abrigo»:
como expressão da dimensão de gratuitidade, quase negada na nossa sociedade da
eficiência e da produtividade.
§
Os doentes na fase terminal da vida:
acolhidos e acompanhados nos «hospícios»
ou Estabelecimentos de cuidados paliativos, como lugares que marcam o valor da
vida no momento da morte.
§
Os doentes de SIDA: para contrastar medos
e preconceitos irracionais.
§
Os tóxicodependentes: para amar o homem
que não sabe amar.
§
Os emigrantes: para acolher Jesus
estrangeiro como genuína expressão da Hospitalidade.
§
Os idosos: para afirmar o valor da vida na
sua globalidade.
§
As pessoas doentes e as sujeitas a limitações crónicas: como expressão do valor e da
dignidade da Pessoa humana.
_________________________
Se bem que nestas declarações não esteja bem claro
em que consiste e em que se baseia a dignidade humana, todas elas a reconhecem
como inerente a todo o ser humano e reconhecem também os direitos iguais e
inalienáveis de todos os membros da família humana como fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo.
Todos os lugares onde exista a pobreza, a doença ou o sofrimento são privilegiados para que nós, Irmãos e Colaboradores de S. João de Deus, exercitemos e vivamos o Evangelho da misericórdia.(3)
4.2. Respeito pela vida humana
4.2.1. A vida como bem fundamental da pessoa e condição prévia para
desfrutar dos outros bens
32.
Não pode estar subordinada a nenhum outro bem, e
toda a pessoa deve ser reconhecida com direitos iguais aos das
outras pessoas.
O dever de realizar-se, característico de todo o homem – pressupõe que se conserve o bem radical da vida, como condição sine qua non para poder cumprir o dever de conservar a missão recebida com o ser, independentemente da maneira como este princípio ético for formulado: conseguir o fim para o qual fomos criados, tender para a própria perfeição ou realização solidária de si mesmo em sociedade.
A vida humana que,
para os crentes, é um dom de Deus, deve ser respeitada desde o seu começo até
ao seu fim natural.
Sendo o direito à vida inviolável e o fundamento
mais sólido tanto do direito à saúde como dos outros direitos pessoais, nenhuma
consideração justifica o recurso ao aborto ou à eutanásia activa.
_________________
(3) Cfr. LXIII CAPÍTULO GERAL, A Nova Evangelização e a Hospitalidade no
limiar do terceiro milénio, Bogotá, 1994, § 5.6.1.
4.2.2. Protecção e promoção
das pessoas com deficiências físicas, mentais e psicológicas
33. Em toda a pessoa deficiente, física ou mentalmente, havemos de ver um membro da comunidade humana, um ser que sofre e que, mais do que qualquer outro, necessita do nosso apoio e dos nossos sinais de respeito que a ajudem a acreditar no seu valor de pessoa.
Isto é muito importante nos nossos dias porque a nossa sociedade se demonstra cada vez mais intolerante para com os deficientes, incapazes ou inválidos (diminuídos).(4)
A Ordem Hospitaleira
deve esmerar-se e distinguir-se na disponibilidade e no serviço para obter, na
medida do possível, a realização prática e efectiva dos princípios de integração, normalização e personalização.
O princípio de integração opõe-se à tendência para isolar, segregar ou descuidar os deficientes.
O princípio de normalização implica o esforço de reabilitação das pessoas deficientes, criando o ambiente mais normal possível.
__________________________
(4) A OMS indica como deficiência a perda ou a
anomalia de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica. Uma
incapacidade é a diminuição ou a falta da capacidade de levar a cabo uma
actividade de maneira, ou com o rendimento, que se consideram normais. Uma diminuição
física é uma desvantagem que tem um determinado indivíduo, produzida por
deficiência ou incapacidade, ou que limite ou impeça o desempenho de uma
actividade normal por parte desse indivíduo – tendo em conta a idade, o sexo e
os factores culturais e sociais. (Alastair Anderson, Simplesmente outro ser
humano, Saúde Mundial, 34,
Janeiro 1981: 6).
O princípio de personalização sublinha que, na atenção aos deficientes, a dignidade, o bem-estar e o desenvolvimento da pessoa em todas as suas dimensões ocupam o primeiro lugar, devendo-se proteger e promover as suas faculdades físicas, psíquicas, espirituais e morais.
4.2.3. Promover a vida, criando ou colaborando na
criação de instâncias que ajudem a superar a miséria, a fome, a doença
34.
Na nova evangelização da Ordem
Hospitaleira tem de ser visível o Evangelho da vida, reforçando todos os
esforços que se fazem para eliminar estruturas injustas e desumanizadoras, e
para criar possibilidades de vida digna onde existem a pobreza, a doença, a
marginalização ou o abandono.
Em virtude do
seguimento de Cristo segundo o carisma de S. João de Deus, o apoio e a promoção
da vida humana devem realizar-se mediante o serviço de caridade que se
manifesta no testemunho pessoal e institucional, nas diversas formas de
voluntariado, na animação social e no compromisso político.
O serviço de promoção da vida deve estender-se desde a protecção da vida
nascente até ao acompanhamento fraterno de todo aquele que sofre devido à sua
doença, marginalização ou necessidade, respeitando, defendendo e promovendo a
sua dignidade de pessoas.
Uma atenção especial merecem as pessoas na fase final da vida.
O serviço de promoção da vida deve ser manifestado no desenvolvimento de actividades no campo da prevenção, no tratamento da invalidez e da reabilitação de pessoas deficientes.
Neste sentido, nunca será suficiente o que se faz para ajudar os deficientes a participarem plenamente na vida e no desenvolvimento da sociedade a que pertencem, para criar um ambiente social que os aceite plenamente como membros da comunidade, embora com necessidades especiais que devem ser satisfeitas.
4.2.4. Obrigação e limites na conservação da própria
vida
35. A vida é um bem fundamental da pessoa e a
condição preliminar para desfrutar dos outros bens, mas não é, porém, um bem absoluto.
A vida pode ser sacrificada em favor dos outros, ou de ideais nobres, que dão sentido à mesma vida.
A vida, a saúde, e todas as actividades temporais, estão subordinadas aos fins espirituais.
Negamos o domínio
absoluto e radical do homem sobre a vida.
Não podemos realizar actos que pressupõem um domínio total e independente, como seria, por exemplo, o de destruí-la.
Paralelamente, podemos afirmar o domínio útil sobre a própria vida, conservando-a, mas não a qualquer preço.
A vida é sagrada, certamente; mas é importante a qualidade da vida, isto é, a possibilidade de viver humanamente com sentido.
Não existe o dever de conservar a vida com métodos artificiais, em condições particularmente penosas.
Nem todos os tratamentos que prolongam a vida biológica resultam humanamente benéficos para o doente como pessoa.
Os indivíduos não têm o dever de aceitar meios desproporcionados para preservar a vida.
Em cada caso poder-se-á ponderar se os meios são
proporcionados ou desproporcionados para esse fim, tendo em conta as condições
físicas ou morais do doente, e pondo em comparação o tipo de terapia, o grau de
dificuldade e de risco que ela comporta, se existe uma razoável confiança no
êxito, e ainda o nível de qualidade humana (na perspectiva do doente) da vida
conservada, o tempo de sobrevivência, as incomodidades (próprias e familiares)
que o tratamento acarretar e os custos.
4.2.5. Obrigação de não atentar contra a vida dos
outros
36. A vida humana é sagrada, porque desde o seu início é fruto da acção criadora de Deus e mantém-se sempre numa relação especial com o Criador, que é o seu único fim.
Deus é o Senhor da
vida, desde o seu começo até ao seu termo.
Ninguém, em nenhuma circunstância, pode arrogar-se o direito de matar de modo directo um ser humano.(5)
__________________________
(5) Cfr. JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae (EV), 5.
Tendo presente que no carisma hospitaleiro toda a pessoa deve ser acolhida, a Ordem manifesta-se contra a pena de morte em qualquer circunstância.
A eutanásia, em sentido propriamente dito – isto é, como acção ou omissão que, pela sua natureza provoca intencionalmente a morte, com o fim de eliminar qualquer dor –, é uma grave violação da Lei de Deus.
«A tentação da eutanásia aparece como um dos sintomas mais alarmantes da ‘cultura de morte’ que se difunde sobretudo nas sociedades do bem-estar».(6)
4.2.6. Obrigações em ordem aos recursos da biosfera
37. A protecção da integridade da criação está latente no crescente interesse pelo meio ambiente.
O equilíbrio ecológico e um uso sustentável e equitativo dos recursos mundiais são elementos importantes de justiça para com todas as comunidades da nossa actual «aldeia global»; e são também matéria de justiça para com as futuras gerações, que herdarão a Terra que lhe vamos deixar.
A exploração desenfreada dos recursos naturais e do meio ambiente degrada a qualidade de vida, destrói culturas e leva os pobres à miséria.(7)
_____________________________
(6) Cfr. Ibid. EV, 64-65.
(7) Cfr. PAULO VI, Octogesima Adveniens, 21; JOÃO PAULO
II, EV, 27, 42.
Devemos promover atitudes estratégicas que criem
relações responsáveis com o meio ambiente do mundo que partilhamos e do qual
não somos mais do que administradores.
.
Sendo as nossas estruturas lugares de consumo dos mais variados
materiais, podemos dar sinais concretos e significativos de atenção ao ambiente
instituindo comités para esse fim, privilegiando a utilização de materiais
biodegradáveis e recicláveis, e sensibilizando-nos a todos, Irmãos,
Colaboradores e agentes da saúde, através de cursos ou seminários.(8)
4.3. Promoção da saúde e luta
contra a dor e o sofrimento
4.3.1. Dever de velar pela promoção da saúde da população
38. Entre as actividades que promovem a saúde da população há que destacar a informação ao público e os programas de educação que favoreçam estilos de vida sãos e diminuam os riscos evitáveis para a saúde, como sejam o consumo de tabaco, álcool e outras drogas, actividades sexuais que aumentam o risco de contágio da SIDA e doenças transmitidas sexualmente, má dieta e inactividade física, e níveis de imunização inadequados na infância.
_______________________________
(8) A Nova Evangelização
e a Hospitalidade ..., op. cit., § 5.6.3, Situações concretas.
Em muitos países, a
educação para uma vida saudável constitui um dos meios utilizados para diminuir
a morbilidade e mortalidade infantis, através da amamentação e da informação
aos pais sobre os riscos da água contaminada e de uma nutrição adequada.(9)
4.3.2. Dever ético de velar pelos melhores interesses dos doentes
39. Todos quantos trabalhamos no campo da saúde temos o dever ético de velar pelos melhores interesses dos doentes em todas as circunstâncias, e de integrar esta responsabilidade com uma maior preocupação e compromisso para promover e assegurar a saúde da população.(10)
4.3.3. Colocar-se ao lado dos pobres, marginalizados e sofredores como imperativo evangélico de justiça
40.
No mundo do sofrimento e da pobreza
(em que vive a maioria da população mundial) a missão de tornar presente João
de Deus revela-se particularmente importante pelo facto de a pobreza que oprime
– devido a estruturas sociais injustas, que excluem os pobres – gerar uma
violência sistemática contra a dignidade dos homens, mulheres, crianças e seres
por nascer, que é intolerável no Reino querido por Deus.
________________________________
(9) Associação Médica Mundial, Projecto
de declaração sobre a promoção da saúde, 10.75/94, Agosto 1994.
(10) Associação Médica Mundial, Ibidem.
«A
nossa Ordem existe para evangelizar os pobres, para os acompanhar e aliviar as
pessoas que sofrem, segundo o estilo de S. João de Deus. (...). Notaram-se
alguns esforços para adequar a nossa vida e as nossas estruturas ao serviço dos
marginalizados: hospitais de dia, hospícios, assistência a doentes de SIDA,
toxicodependentes e terminais, promoção de zonas marginalizadas a partir dos
Centros já existentes... Sem dúvida, estes esforços requerem uma acção mais
coerente na perspectiva do pobre, de maneira que a Ordem, no seu estilo de
vida, se identifique claramente com esta opção e tenha uma incidência maior,
através da sua forma de viver, do seu serviço, do seu anúncio e denúncia, na
Igreja e nas estruturas da sociedade».(11)
4.3.4. Tratamento correcto do doente perante o encarniçamento terapêutico
41. Mesmo orientados para a promoção da saúde, os nossos hospitais não podem encarar a morte como um fenómeno extremo que deve ser marginalizado, mas como uma parte integrante da vida, especialmente importante para a realização plena e transcendente do doente.
Por conseguinte, todo o doente deve ver satisfeito em si mesmo o seu
direito a que não se lhe impeça, e inclusive a que se lhe facilite, o assumir
responsavelmente o transe da própria morte, de acordo com a sua religião e com
o seu sentido da vida.(12)
________________________________
(11) A Nova
Evangelização e a Hospitalidade..., op. cit., § 3.6.3.
(12) Cfr.
JOÃO PAULO II, EV, 15.
Isso não aconteceria se lhe fosse ocultada a verdade ou ele ficasse
isolado, sem uma verdadeira e urgente necessidade, sem poder manter as suas
relações habituais de amizade e os contactos com a família ou com a comunidade
religiosa e ideológica.
Só assim se tornará realidade, nesses momentos definitivos da existência, a humanização da Medicina.
4.3.5. Cuidados paliativos
42. As instituições da Ordem Hospitaleira que atendem pacientes em estado avançado da doença têm de dispor, na medida do possível, de unidades de cuidados paliativos, destinadas a tornar mais suportável o sofrimento na fase final da doença e, ao mesmo tempo, assegurar ao doente um acompanhamento humano adequado.(13)
4.4. A eficácia e a boa gestão
4.4.1. Dever de consciencializar a população de que os
recursos da saúde não podem ser considerados como um mero consumo
43.
Em todos
os países, a procura de serviços de saúde é superior à capacidade de a nação os
oferecer. É um dever importante colaborar no despertar da consciência da
sociedade para o facto de os custos dos serviços de saúde não poderem ser
considerados como um mero consumo.
_____________________________
(13) Cfr. Ibid.,
EV, 44.
Representam também um investimento dos recursos humanos, o que permite diminuir o sofrimento individual e oferecer oportunidades às pessoas de voltarem ao trabalho produtivo ou de viverem nos seus próprios lares ou com custos mais baixos em termos de assistência médica. Por isso, os encargos com os serviços de saúde têm um efeito positivo na diminuição de outros encargos sociais.
4.4.2. Administração e gestão eficazes e eficientes dos recursos
44. A profissão médica deve assumir a responsabilidade de uma administração eficaz dos recursos destinados aos serviços de saúde, o que inclui a utilização de métodos de diagnóstico e terapêuticas eficientes, que compreendam também a implementação de índices de qualidade e de parâmetros de exercício aplicáveis e reais.
4.4.3. A instituição hospitaleira empresarial deve
orientar-se para a recuperação da pessoa globalmente considerada
45.
Toda a
instituição hospitalar empresarial deve orientar-se, ou reorientar-se, para a
recuperação da pessoa integralmente considerada, ou seja, nas suas dimensões
somato-psíquicas, sociais e espirituais que, consideradas no seu conjunto,
interagem para a humanização na assistência no campo da saúde. No
hospital-empresa, o investimento para criar um clima humano e humanizador, como
ajuda à rentabilidade dos recursos, favorece a produtividade e a eficácia do
próprio trabalho.(14)
_________________________________________
(14) Cfr. JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, 40; 20; 32.
4.4.4. O investimento para criar um clima humano e humanizador como ajuda à rendibilidade dos recursos
46.
Do mesmo modo que noutras empresas, o
investimento para criar um clima humano e humanizador no hospital, ajuda a
rendibilidade dos recursos para melhorar as condições dos profissionais e dos outros
profissionais da saúde.
Todos eles podem, por sua vez, ajudar a criar as condições mais humanizadoras para os doentes se humanizarem a si mesmos.(15)
Entre os melhoramentos que é preciso incrementar merece um relevo particular a actualização de conhecimentos e habilitações por meio da formação permanente adaptada às circunstâncias de cada tempo e lugar.
4.4.5. Direitos e deveres dos trabalhadores
47. O pessoal contratado tem direito ao trabalho de acordo com a lei vigente.
Compete ao
especialista em Direito Laboral encontrar as soluções técnico-jurídicas capazes
de coordenar o direito de objecção de consciência e o direito ao trabalho na
formulação do contrato de trabalho, nas sucessivas revisões do mesmo e na
entrada em vigor de novos acordos colectivos de trabalho.
__________________________________
(15) Cfr. MARCHESI, Pierluigi, A Humanização, 1981.
A máxima atenção que a Ordem deverá prestar aos
direitos do trabalhador, no respeito da mais estrita justiça social, não deve
realizar-se à custa da sua própria existência, o que iria contra a própria
justiça social.
4.5. Nova
hospitalidade e novas exigências: III e IV Mundos
48. Cada vez é maior o abismo que separa os países do chamado Norte desenvolvido dos do Sul, em vias de desenvolvimento.
A abundância de bens e serviços disponíveis em algumas partes do mundo, sobretudo no Norte opulento, corresponde no Sul a um inadmissível atraso e é precisamente nesta zona geopolítica que vive a maior parte da população mundial.
Ao olhar para o leque dos diversos sectores do chamado Terceiro Mundo: produção e distribuição de alimentos, higiene, saúde e habitação, disponibilidade de água potável, condições de trabalho, especialmente feminino, esperança de vida e outros indicadores económicos e sociais, o quadro geral é desolador, quer seja considerado em si mesmo, quer em relação aos dados correspondentes dos países mais desenvolvidos do mundo.(16)
_________________________________
(16) Cfr. JOÃO PAULO II, Sollicitudo Rei Socialis, 14.
Também nos países desenvolvidos as forças económicas e sociais excluem dos
benefícios sociais milhões de pessoas que constituem o chamado Quarto
Mundo:
pobreza ou miséria
de «homens,
mulheres e crianças que, além de viverem em condições de gravíssima precariedade
física e psicológica, perderam a legitimação de sujeitos de direito, não
estando garantidos os seus direitos mediante a devida protecção jurídica e
social.
Exemplos mais concretos são os
desempregados durante anos, jovens sem qualquer possibilidade de emprego,
meninos da rua explorados e abandonados à sua sorte, idosos na solidão e sem
protecção social, ex-presos, vítimas de abusos de drogas, doentes de SIDA,
imigrantes em geral, e clandestinos, em particular... todos condenados a uma
vida dura de pobreza, marginalização social e precariedade cultural».(17)
4.5.1. Solidariedade e cooperação
49. O evangelho de Jesus Cristo é uma mensagem de liberdade e uma força de libertação.
A libertação é antes de mais e principalmente libertação da escravidão radical do pecado.
______________________________________
(17) MARTINI, Card. Carlo Maria, Carta
para o Biénio Pastoral 1992-1993.
Logicamente reclama a libertação das diversas formas de escravidão de ordem cultural, económica, social e política – que, em última análise, derivam do pecado e constituem outros tantos obstáculos que impedem aos homens de viverem segundo a sua dignidade.(18)
«A solidariedade é uma virtude
eminentemente cristã. É exercício de comunicação dos bens espirituais, mais do
que comunicação de bens materiais.
O princípio da solidariedade é uma exigência directa da
fraternidade humana e cristã. A solidariedade manifesta-se em primeiro lugar na
distribuição de bens e na remuneração do trabalho.
Os problemas socio-económicos só podem ser resolvidos com
a ajuda de todas as formas de solidariedade: entre os pobres entre si, entre
ricos e pobres, entre os trabalhadores, os empresários e os empregados,
solidariedade entre as nações e os povos.
A solidariedade é uma exigência de ordem moral. Em grande parte, a paz do mundo dependa dela».(19)
4.5.2. Cooperação e Colaboradores: direitos e deveres
50. O Documento do LXIII Capítulo Geral afirma com suficiente clareza aquilo que se exige dos Irmãos e Colaboradores de S. João de Deus.(20)
________________________________
(18) Cfr. INSTRUÇÃO DA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Liberdade cristã e libertação, Roma,
1986
(19) C.C. 1939-1942.
(20) A Nova Evangelização e a
Hospitalidade..., op. cit., 4.4.
Destacamos os
seguintes aspectos:
§ Humanizar-se para humanizar e ser testemunhas de santidade, partindo do radicalismo das bem-aventuranças segundo o exemplo de S. João de Deus, pobre entre os pobres, servo e profeta.
§ A promoção das pessoas sob todos os aspectos: cuidados prestados aos doentes, acolhimento afectuoso dos doentes crónicos, uma atenção especial para os mais débeis e os mais pobres, acompanhamento dos que vivem a última etapa da sua vida, transformando os gestos de cura em gestos de evangelização.
§ Temos que apresentar a nossa cultura de hospitalidade como alternativa à cultura de hostilidade, que não só predomina nas relações entre os povos, as nações e as etnias, mas até mesmo nas relações interpessoais.
Temos que demonstrar uma nova capacidade de acolhimento, criar comunidades de fé abertas, que sejam um convite a todas as pessoas com as quais nos relacionamos: doentes, seus familiares, colaboradores, amigos.
Cada Obra Apostólica deveria ser uma pequena Igreja doméstica capaz de criar a comunhão cristã em que a alegria de um seja a do outro, e a dor de um a dor do outro.
Hoje, mais do que nunca, nas relações
humanas, o Irmão de S. João de Deus é chamado a ser testemunha de Deus «amante da vida» (Sb 11, 26), que se
mistura entre as pessoas e com a sua presença torna acolhedora a terra, e o
homem verdadeiramente homem.
§ Valorizar e promover as qualidades dos profissionais e voluntários que colaboram com a Ordem, e torná-los partícipes no serviço e na evangelização das pessoas assistidas nas nossas obras e em alguns momentos da vida da Comunidade.
§ Preparar os profissionais identificados com a filosofia e os valores da Ordem para que assumam funções de direcção e animação nas nossas obras.
4.5.3. O voluntariado. Gratuitidade e identificação
51. «É voluntário aquele que, além dos seus deveres profissionais e dos deveres próprios do seu estado, de modo continuado e desinteressado, dedica uma parte do seu tempo a actividades, não em favor de si mesmo nem dos associados (diferencia-se por isso do associativismo), mas dos outros ou de interesses sociais colectivos, segundo um projecto que não se esgota na própria intervenção (distinguindo-se assim da beneficência), mas que tende a erradicar ou modificar as causas de necessidade e da marginalização social».(21)
A nossa filosofia é idêntica à de outros tipos
de voluntariado. Só que o que é básico para todos está matizado pelo facto de
ser uma acção hospitaleira ou social, realizada nos Centros da Ordem, segundo o
espírito de S. João de Deus.
No nosso voluntariado vivem-se os seguintes princípios:
§ Princípio da voluntariedade: os voluntários aderem livremente, porque querem.
__________________________________
(21) CÁRITAS. Cfr. DEL CARMEN
FUÉS, M.: O voluntariado na nossa
sociedade, in: Labor Hspitalaria,
1985; 198(4): 206.
§ Princípio da gratuitidade: a sua entrega é fruto de uma exigência interior, de um compromisso pessoal. Não há exigência externa que os obrigue.
§
Princípio
da solidariedade: surge
da exigência de se tornar presente na necessidade do outro, de partilhá-la.
§
Princípio
da complementariedade:
assumem-se as tarefas de que a nossa sociedade é carente, enriquecendo-a e promovendo
a justiça social.
§
Princípio
da integração pessoal:
planeia-se quase sempre para dar, embora muitas vezes possamos constatar que é
mais aquilo que se recebe.
§
Princípio
da preparação: exige
uma formação adequada, que lhe proporcione os conhecimentos históricos, a dimensão
apostólica e os valores da Instituição, e ainda a capacidade de saber estar em
cada circunstância.
§
Princípio
da coordenação:
trabalha-se de forma coordenada, em grupo, sem individualismos.
§
Princípio
evangélico: o nosso
voluntariado é a-confessio-nal e fundamenta-se no Evangelho e na forma como
João de Deus viveu a sua dedicação aos pobres, doentes e necessitados.
Os lugares onde se exerce o voluntariado são Estabelecimentos
confessionais; a gratuitidade no
serviço e a identificação com o carisma da Ordem resumem os fundamentos do
nosso voluntariado.(22)
4.6. Evangelização, inculturação e
missão
4.6.1. Visão de conjunto
52. Evangelizar constitui a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda. Ela existe para evangelizar, isto é, para testemunhar, ensinar e pregar a Boa Nova de Jesus Cristo. Como núcleo e Centro da sua Boa Nova, Jesus anuncia a salvação, o grande dom de Deus que é a libertação de tudo o que oprime o homem; no entanto, é sobretudo libertação do pecado.(23)
A evangelização parte do mandato missionário de Jesus Cristo:
«Ide pois, ensinai todas as nações. E Eu
estarei sempre convosco até ao fim do mundo».
(Mt 28, 18-20; cf. Mc 16, 15-18; Lc 24, 46-49; Jo 20,
21-23).
______________________________
(22) PILES F. Pascual, Origen y
Trayectoria del Voluntariado en la Orden Hospitalaria de S. Juan de Dios,
Congreso Nacional de Voluntarios de S.
Juan de Dios, 18-20 de Outubro de 1995.
(23) Cfr. PAULO VI, Evangelii Nuntiandi (EN) 9, 14.
Para
cumprir este mandato, o Evangelho deve-se encarnar, «traduzir-se» (sem
trair-se) nas diferentes culturas.(24)
A evangelização não
é possível sem a inculturação.
A ruptura entre o evangelho e a cultura é, sem dúvida alguma, o drama
do nosso tempo, como o foi também noutras épocas.(25)
Por outro lado, a
secularização desembocou, de facto, no estabelecimento de uma cultura da
não-crença, que reduz o mundo à imanência, na qual as afirmações relativas à
transcendência se tornam cultural e socialmente irrelevantes.
Nesta situação, quem
se dispõe a ser cristão sem renunciar ao seu tempo, sem ter que isolar-se da
cultura em que vive, precisam de realizar o esforço de inculturar o cristianismo
nas culturas surgidas da modernidade.
A inculturação
permite encarnar a Boa Noa a partir do interior de cada cultura, levando assim
a sua própria riqueza à encarnação histórica do Evangelho. Isto significa que o
Evangelho, ao encarnar-se concretamente, sofre fortes transformações em relação
às suas anteriores formas de inculturação.
_______________________________
(24) Cultura significa a
maneira como um grupo de pessoas vive, pensa, sente, se organiza, celebra e
partilha a vida. Em toda a cultura sobressai um sistema de valores, de
significados, de visões do mundo, que se expressam no exterior através da
linguagem, de gestos, símbolos, ritos e estilos de vida.
(25) PAULO VI, Ibid., 20; Gaudium et Spes 43.
Assim, a
inculturação permite «alcançar e
transformar com a força do Evangelho os critérios de avaliação, os valores
determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento das fontes
inspiradoras e dos modelos de vida da humanidade, que estão em contraste com a
Palavra de Deus e com o desígnio de salvação».(26)
No seu processo
linear, a inculturação deve ser dirigida por dois princípios: a compatibilidade
com o Evangelho das várias culturas a assumir, e a comunhão com a Igreja
Universal.(27)
4.6.2. Evangelização, Inculturação e Missão da Ordem
53.
Num mundo em que o homem contemporâneo crê mais nos testemunhos do que
nos mestres, em que acredita mais na experiência do que na doutrina, na vida e
nos factos do que em teorias,(28) a Ordem encontra-se numa situação
privilegiada para a evangelização e a inculturação da fé, pelo facto de estar
presente em muitas culturas, em 46 países, nos 5 continentes.
A cultura da
técnica, provavelmente a menos permeável aos valores cristãos, também é
sensível ao testemunho vivido através do compromisso concreto pelo homem.
___________________________________
(26) EN, 19.
(27) Cfr. JOÃO PAULO II, Redemptoris
Missio, 54.
(28) Ibidem, 42.
O carisma da Ordem
conduz-nos directamente a este compromisso, dado que a nossa missão consiste na
promoção do homem sob todos os aspectos: cuidar do homem doente, acolher afectuosamente
doentes crónicos, atender de modo especial os mais fracos e os mais pobres, ou
acompanhar os que vivem os seus últimos momentos de vida terrena.
Só a fidelidade ao
carisma tornará possível a evangelização e a inculturação do mundo da técnica:
nesse processo deverão confrontar-se a «cultura
da hostilidade» e a nova hospitalidade.
A pergunta à qual temos de responder no futuro é:
§ como transformar os
gestos de cura em autênticos gestos de evangelização;
§ como transformar os
lugares em que trabalhamos em lugares significativos de evangelização.
Humanização e
evangelização devem formar para nós uma unidade indivisível, porque «onde não há caridade não há Deus,
embora Ele esteja em todo o lugar».(29)
________________________________
(29) S. JOÃO DE DEUS, Carta a Luís Baptista, 15. Cfr. A Nova Evangelização e a Hospitalidade ..., 4.3.
Para a reflexão:
1) Descreve os sinais que evidenciem como se está a viver nas Obras Apostólicas e nas Comunidades da Ordem os princípios da hospitalidade nos âmbitos seguintes:
§ Dignidade da pessoa humana
§ Respeito pela vida humana
§ Promoção da saúde e luta contra a dor e o sofrimento
§ Eficácia e boa gestão
§ Nova Hospitalidade
§ Evangelização, inculturação e missão.
2) Descreve o que está a tornar difícil ou a ofuscar o pôr em prática estes princípios:
§ Dignidade da pessoa humana
§ Respeito pela vida humana
§ Promoção da saúde e luta contra a dor e o sofrimento
§ Eficácia e boa gestão
§ Nova Hospitalidade
§ Evangelização, inculturação e missão.
3) Como se está a promover a difusão dos princípios que iluminam a nossa hospitalidade e a respectiva formação entre Irmãos, Colaboradores e assistidos?
4) Que é necessário fazer para garantir uma melhor difusão e formação em relação aos princípios que iluminam a nossa hospitalidade?
5 |
APLICAÇÃO A SITUAÇÕES CONCRETAS |
5.1 Assistência integral e Direitos
do Doente
54.
O nosso
contributo à sociedade será credível na medida em que nele soubermos incorporar
os progressos da técnica e a evolução das ciências.
Daí a importância de que a nossa resposta
assistencial mantenha a inquietação de estar continuamente actualizada, quer no
aspecto técnico, quer no profissional.
Disto decorre que deveremos dar uma
assistência que considere todas as dimensões da pessoa humana – sob o aspecto
biológico, psíquico, social e espiritual.
Só uma atenção que cuide de todas estas
dimensões, pelo menos como critério de trabalho e como objectivo a alcançar,
poderá considerar-se uma assistência integral.
Talvez tenha sido este o campo em que as
obras da Ordem cultivaram uma maior tradição; o seu nível assistencial foi uma
característica que as distinguiu ao longo dos anos.
As primeiras Constituições já insistiam na
forma de tratar os doentes e assim se fez depois, sublinhando sempre este
aspecto através da história.
5.1.1. A aproximação ao doente, ao
necessitado e ao seu ambiente familiar
55. A atenção às necessidades da pessoa –
incluindo as necessidades do espírito e de carácter transcendental e religioso
– é um elemento fundamental em todo o serviço médico e social.
O ser humano é um ser relacional.
Na medida em que entramos em contacto com os
outros vamo-nos consolidando como pessoas. Quando conseguimos que esse contacto
se transforme em encontro, estamos então a atingir a plenitude da nossa
dimensão relacional.
Daí a importância do encontro, da escuta,
da aceitação, do acolhimento, do saber canalizar os aspectos positivos e
negativos que estão presentes em cada pessoa que vive e adverte que precisa dos
outros.
A doença, seja qual for a sua manifestação
exterior, é uma expressão da limitação, da debilidade do homem, e é nessa
circunstância especial que as pessoas fazem um pedido explícito ou implícito de
apoio.
Toda a pessoa, nas suas limitações e no
sofrimento, procura alguém com quem partilhar o seu estado, em quem descarregar
o peso que leva consigo.
Daí que todos quantos constituímos a Ordem
Hospitaleira, Irmãos e Colaboradores, adquiramos e desenvolvamos as qualidades indicadas
nas alíneas seguintes.
5.1.1.1. Abertura
56. A abertura entende-se em relação
§
às novas
contribuições da sociedade,
§
aos novos
critérios de actuação,
§
às novas
inquietações do homem,
§
às outras
culturas,
§
a outros
mundos.
É aberta a
pessoa que sabe acolher o que a sociedade e o mundo lhe vão oferecendo, e
sabe discernir o que considera ser positivo nessa oferta, para o tornar seu.
É aberta
a Instituição que sabe adoptar uma idêntica postura; porém, neste caso, é
necessário o diálogo entre as pessoas, para se poder discernir de forma
conjunta o que é positivo para todos.
5.1.1.2. Acolhimento
57.
Receber quem aparece, com um gesto de afecto e de
esperança, que lhe permita confiar na pessoa e na Instituição que o tomam a seu
cargo.
O primeiro contacto é muito importante: pode abrir
ou fechar as portas.
Numa situação de necessidade para o doente, esse
primeiro contacto tem ainda mais importância.
Na dificuldade, sentir-se aceite e
acolhido é o elemento essencial para viver um estado de segurança e confiança
nas pessoas que cuidam de alguém.
5.1.1.3. Capacidade de escuta e de diálogo
58.
Deixar
que a pessoa manifeste a sua situação, as suas ansiedades, os seus temores e
receios, e que possa sentir em nós um eco de confiança e de serenidade; tanto
nos momentos de alegria como nas situações mais difíceis.
Que o doente se aperceba de que as suas
manifestações não caem em saco roto, que são acolhidas, consideradas, tidas em
consideração.
Estará a dizer a única coisa que se sente
capaz de dizer nesse momento; muito provavelmente, até, estará a revelar-nos o
seu interior.
Haverá situações nas quais aquilo que o
doente pede ou pretende, não seja o mais conveniente para ele. Partindo da
nossa reflexão, deveremos ser capazes de nos fazer entender e de fazer
compreender ao doente a nossa actuação, mesmo naqueles casos em que ele discorde
dos nossos critérios de actuação.
5.1.1.4. Atitude de serviço
59.
Sempre à
disposição do doente e dos seus amigos e familiares, sempre dispostos a colocar
ao serviço do seu bem integral os nossos saberes técnicos, a nossa ciência e a
nossa pessoa.
Por vezes não poderemos fazer aquilo que o
doente quer ou pede, mas a atitude com que fizermos as coisas revelar-lhe-á se
estamos a procurar o seu bem ou a nossa comodidade.
5.1.1.5. Simplicidade
60.
A
humildade de quem sabe que está a dar uma ajuda a quem está em necessidade e
que se propõe como objectivo fundamental evitar uma situação de dependência.
Simplicidade de quem caminha procurando
encontrar a verdade, o bem para todos, inclusivamente em estruturas tão
complexas como as dos hospitais.
5.1.2. Direitos do doente
61.
Os
direitos do doente inscrevem-se no vasto campo dos direitos fundamentais do homem.
Do ponto de vista dos direitos humanos, o
direito à saúde coloca-se entre os chamados de segunda geração, isto é, os
direitos de tipo económico e social.
Com o desenvolvimento da consciência
relativamente a este tema, nos anos sessenta foi-se ampliando o interesse pelos
direitos dos doentes, tendo em conta que, como pessoa, o doente é titular dos
mesmos direitos universais, que nele adquirem, porém, algumas particularidades,
devido à sua situação que requer uma maior sensibilidade e solidariedade.
A este respeito foram elaboradas
declarações nacionais, regionais e locais.
A Ordem assume os direitos reconhecidos ou
proclamados e, na perspectiva de uma assistência integral, sublinha os
seguintes:
5.1.2.1. Confidencialidade
62.
A
confidencialidade inclui três valores intimamente ligados à relação assistencial:
a intimidade, o segredo e a confiança.
O respeito pelas pessoas exige o respeito
pela intimidade(1) do doente,
isto é, por aquela esfera particular em que alguém se abre a si mesmo, se
reconhece, afirma e vincula à própria identidade.
O respeito pela intimidade de cada um
torna possível a convivência social na pluralidade dos indivíduos.
O véu do segredo tutela o respeito mútuo e
abre o caminho à confiança, via de acesso ao mais íntimo do outro.
O respeito mútuo e a confiança abrem a
porta ao direito de comunicar os próprios segredos com a garantia de que não
serão revelados.
Nisto consiste a obrigação do segredo profissional
em que se aceita e se torna implícito o compromisso de não revelar quanto se
vem a conhecer no exercício de uma profissão.
A obrigação do segredo coexiste com o
dever de o revelar quando não houver outra maneira de evitar que uma outra
pessoa, e/ou a sociedade, sejam vítimas de um dano injusto, por exemplo para evitar
o contágio, ou outro mal, que ameacem a colectividade.
A progressiva especialização e o carácter
cada vez mais técnico da Medicina multiplicam os casos em que esta se exerce em
equipa.
_______________________________________
(1) Alguns preferem usar o termo «privacidade»,
que constitui um conjunto mais amplo e global de aspectos da personalidade. Se
forem considerados isoladamente, podem carecer de significação intrínseca; no
entanto, se forem coerentemente ligados entre si, reflectem uma imagem da
personalidade do indivíduo que este tem direito a manter reservada.
Verifica-se então o segredo partilhado, o
qual exige um cuidado especial por parte de todos para que não fique
prejudicado o devido respeito à intimidade do doente.
O pessoal que trabalha em hospitais ou residências sócio-sani-tárias deve sensibilizar-se para perceber os diversos modos em que os direitos de confidencialidade e intimidade são violados, nomeadamente: conversar sobre os doentes em lugares públicos e o acesso fácil aos relatórios clínicos por pessoas não autorizadas.
Uma atenção especial
merecem todas as listas de doentes com diagnósticos e/ou tratamentos produzidos
pelos modernos sistemas informatizados.
Para facilitar o respeito pela intimidade dos doentes, os Estabelecimentos deverão dispor, na medida do possível, de uma estrutura fixa ou móvel, (como são, por um lado, os quartos individuais e os ambientes reservados, por outro, as cortinas e os biombos) que permitam o isolamento do doente de acordo com as suas necessidades.
É necessário ter em conta também a idade e gravidade das doenças dos que partilham um mesmo quarto.
O doente poderá pedir para estar só, ou com alguma pessoa determinada, quando é visitado pelo seu médico, ou quando recebe cuidados de enfermagem.
Deve-se ter em
conta, todavia, que qualquer hospital, e especialmente se é de tipo docente ou
universitário, é um lugar de formação e que a sua colaboração é imprescindível
neste aspecto.
5.1.2.2. Veracidade
63. O direito do doente a conhecer a verdade está em paralelo com o já referido direito ao segredo.
São direitos complementares e prestam o mais
firme apoio à necessária confiança no médico, mas ambos podem entrar em
conflito em relação ao motivo primordial da relação médico-doente: a recuperação
da saúde.
Em qualquer das hipóteses, a decisão concreta deve prestar atenção ao bem da pessoa do doente, considerada na sua integridade, sem descuidar por isso a causa da saúde como bem social.
O direito de cada homem a conhecer a verdade sobre as coisas que lhe dizem respeito e a correspondente obrigação de o informar, estão na base da convivência humana.
Não é só a mentira, mas também a falta de sinceridade, que destrói a confiança, tão necessária para a relação interpessoal, tendo em conta a ambiguidade (janela-máscara) da nossa exterioridade corporal.
A confiança é, porém, particularmente importante na relação do doente com o médico. Daí a importância que adquire a veracidade deste, veracidade sempre acompanhada de responsabilidades, pois que não se refere a factos meramente objectivos, mas a realidades com um grande impacte subjectivo, sobretudo quando o prognóstico se refere ao futuro aspecto físico do doente e à sua funcionalidade (liberdade e capacidade de movimento), à perda da vida, ou ainda a outras possíveis verdades difíceis de assimilar.
Em princípio deve considerar-se como prioritário o direito a conhecer a verdade sobre o estado da sua saúde por parte do doente, mas não à custa daquilo que lhe convém como pessoa.
Algumas vezes há motivos de verdadeiro amor para não revelar as coisas: provocar-lhe-íamos um dano inútil. No entanto, não é honesto ficar calado simplesmente para fugir da própria dificuldade.
Se há tacto no modo de dizer as coisas, a verdade pode quase sempre ajudar.
O médico não deve ater-se à obrigação geral de dizer a verdade sem, ao mesmo tempo, prestar atenção ao possível conflito com outros interesses particulares do doente e, de modo muito especial, com o da sua saúde, que é o motivo da relação estabelecida entre ambos.
Os princípios de solução não permitem estabelecer receitas estereotipadas de aplicação universal. O médico deve dizer a verdade, mas sem com isso prejudicar, inutilmente, a saúde ou outros valores do doente.
O seu objectivo último é o bem do doente, considerado na sua globalidade.
Influem naquilo que convém dizer: a estabilidade de ânimo do doente e a sua força de espírito, as suas convicções pessoais e o equilíbrio psíquico, assim como o tipo de relação existente entre o médico e o doente.
Não se devem também ignorar as circunstâncias económicas e familiares, ou sociais, que rodeariam o doente depois da consulta médica.
Adquirem, porém, um
relevo especial o diagnóstico e o prognóstico.
No caso de doenças objectiva e subjectivamente inócuas, é tranquilizador para o doente a certeza de que nada lhe é ocultado. Sempre que a doença tiver cura, impõe-se uma informação adequada para mobilizar a colaboração do doente, e é absolutamente indispensável quando, sem a sua colaboração, o decurso da doença pudesse ter um desenlace fatal.
O direito do doente a conhecer a verdade urge, sobretudo, quando ele tiver de tomar uma decisão responsável.
Compete ao médico facilitar-lhe tal decisão; não pode ser ele a decidir pelo doente e deve ter o cuidado de não projectar no doente os seus próprios complexos ou inibições. Deve socorrer-se do tempo necessário para encontrar o melhor modo de comunicar a verdade, de modo que o doente compreenda os factores mais significativos para tomar uma decisão acertada. Por vezes, também o doente precisa de tempo para interiorizar os dados.
O conhecimento certo de uma morte inevitável e
próxima deve ser comunicado ao doente, para que este possa estar consciente no
último acto da sua vida. Este dever pressupõe a capacidade do sujeito para
assumir e representar bem o seu papel nesse momento decisivo.
Deixar-lhe alguma esperança («uma nesga de céu aberto», como a denominam alguns) costuma ser útil, não esquecendo, porém, que, ajudando o doente a enfrentar a realidade sem falsidades, podemos abrir caminho a outro tipo de esperança, que lhe permite assumir a verdade com mais coragem, e realizar-se assim plenamente como pessoa humana.
Isto acontece também no caso de pessoas que não
acreditam na vida futura, mas que foram capazes de dar algum sentido à sua vida
e à relação com os outros.
A expressão ambígua «direito do doente a morrer» tem um sentido verdadeiro: nenhum ser humano deve ser privado do direito que lhe assiste de viver a sua própria morte, coroando assim a sua realização pessoal através dela.
Deixaremos, por
conseguinte, de comunicar a verdade somente quando nos conste que ela seria
insuportável para o doente.
O direito à verdade
cede quando a revelação daquela levasse ao desespero fatalista e à anulação do
ser pessoal.
Numa palavra, quando
fosse apenas recebida como uma condenação à morte, sem razão nem sentido.
O titular do direito a conhecer a verdade é o próprio doente, quando adulto e senhor de si.
Quando não for capaz de assumir a própria responsabilidade por não ter alcançado a maturidade necessária, ou devido a qualquer outra causa, a informação requerida deve ser comunicada a quem tiver o dever ou o poder de tomar decisões em seu nome, como seu representante de confiança e interessado no bem dele.
Só se deve dizer aos seus familiares e pessoas mais chegadas, segundo o nosso critério razoável, aquilo que ele desejaria comunicar-lhes, se fosse capaz.
Tanto ao satisfazer o
direito à verdade como ao cumprirmos o dever do segredo deveremos ter em conta
o devido respeito pela liberdade de consciência própria do doente, e também do
médico.
Teremos aqui em consideração apenas os imperativos derivados da liberdade de consciência do doente.
«A
consciência é o núcleo mais secreto
do homem, o santuário onde ele está a sós Deus, cuja voz ressoa no seu íntimo».(2)
Até mesmo o ateu se sente interpelado por ela em relação ao absoluto, quando quer compreendê-lo e explicá-lo.
Merece um respeito
absoluto.
Tal como o sacerdote, também o médico, no desempenho das suas funções,
pode mover-se nas imediações desse santuário e deve ter muito cuidado para não
o violar.
Mesmo em áreas de um pretenso bem comum, nem o Estado, nem sequer a Igreja podem atentar contra a liberdade de consciência.
O médico nunca deve coagir a consciência do doente.
É seu dever procurar com esmero a sua saúde, embora possa desaprovar a conduta que tenha causado a sua perda (no caso de doenças venéreas, infecções provocadas por um aborto mal praticado, etc.), e não é lícito aproveitar-se da situação de dependência para «moralizar» o doente.
Nada impede, contudo, – se isso favorecer o
processo de cura ou a humanização da fase final da vida – que o médico ajude o
doente a pôr em paz a sua consciência; mas deve fazer isso com o maior respeito
à liberdade do doente, mesmo que considere erradas as suas ideias.
Facilitará ao doente, além disso, o acesso dos ministros religiosos ou de outras pessoas que ele considere que o podem ajudar a viver com sentido a sua doença, e até mesmo a própria morte, seja qual for a ideologia ou confissão religiosa.
_____________________________
(2) CONCILIO VATICANO
II, Gaudium et Spes (GS), 16
5.1.2.3. Autonomia
64. A valorização e o respeito pela autonomia, sobretudo no âmbito sanitário, é uma conquista da modernidade.
De facto, até há poucos decénios atrás, existia
um grande paternalismo nas relações entre o médico e o doente, de modo que, em
geral, era o médico quem decidia e o doente confiava nele, consciente de não
possuir nem os conhecimentos nem as competências necessárias para poder
escolher o que melhor lhe convinha. Por outro lado, estava totalmente convencido
de que o médico agia sempre para o seu bem.
O «doente pós-moderno» já não pensa da mesma maneira.
Tem consciência dos seus direitos, entre os quais se encontra o direito à vida e à tutela da sua saúde, sendo estes prioritários.
Além disso, tem consciência de ser o único titular destes direitos, cuja defesa não pode delegar noutros, pelo menos enquanto tiver o uso da razão.
Esta mudança de perspectiva substituiu o paternalismo do passado por um contratualismo exasperado, que faz com que a relação entre o médico e o doente seja entendida como um simples «contrato», no qual ambos devem respeitar todas as cláusulas.
É evidente que a superação destas posições deverá conduzir a uma autêntica aliança terapêutica na qual o médico coopera com o doente, para realizar o seu maior bem, respeitando as escolhas de cada um.
Para
que tudo isto se possa levar a cabo da melhor forma possível, é fundamental
entender o que é a autonomia do doente.
Segundo a interpretação clássica, a escolha é considerada como autónoma quando se respeitam três condições.
A primeira é a intencionalidade. Deve tratar-se portanto de uma escolha totalmente «voluntária» e não apenas desejada.
Em segundo lugar deve existir um conhecimento daquilo que se decide.
Por fim, a escolha deve manifestar-se sem controlo externo.
Isso significa que não deve haver qualquer forma de coacção (nem sequer a que poderia derivar da influência que o médico exerce sobre o doente, ou a que provém do medo de uma possível interrupção do tratamento por parte dele), e muito menos de manipulação (como por exemplo o facto de se alterar ou distorcer a verdade, mesmo que isso seja feito pelo suposto bem do doente).
Frequentemente acrescenta-se a estes critérios ainda a ausência de «persuasão», embora acreditemos que, de uma forma mais prudente, uma tentativa de persuasão, equilibrada e respeitosa, deveria ser considerada como algo devido, se se faz pelo bem do doente.
É evidente que estes critérios, que dizem respeito à autonomia do doente, se realizam concretamente no consentimento dado ao acto médico, quer como diagnóstico, quer como terapêutico.
Disso se falará mais adiante.
5.1.2.4. Liberdade de consciência
65. O direito à liberdade de consciência, afirmado no artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, foi assumido pela maioria das Constituições dos Estados modernos e é exigido para a autocompreensão da sua existência como dom e como projecto a realizar.
Deste âmbito não se exclui a dimensão religiosa
da existência.
Neste caso devemos
recordar que a Declaração Dignitatis
Huma-nae, do Concílio Vaticano II, começa precisamente por afirmar que «a
pessoa tem direito à liberdade religiosa».
A realização desta liberdade está evidentemente condicionada pe-lo princípio geral da responsabilidade pessoal e social, isto é, pelo facto de que cada homem, ou grupo social, tem obrigação de respeitar os direitos dos outros e os deveres para com os outros, e tudo isso em razão do bem comum.
Estes limites concretizam-se na necessidade de uma regulamentação jurídica que salvaguarde concretamente esta liberdade religiosa e defenda de um injusto proselitismo.
Cada pessoa e todas
as Igrejas têm o direito de manifestar a sua fé.
O direito à liberdade religiosa inclui o direito a dar testemunho, respeitando a justiça e a dignidade da consciência dos outros.
O «proselitismo» é, sem dúvida, a corrupção deste testemunho, pois consiste numa conduta abusiva e impertinente que atenta contra a liberdade religiosa do próximo.
Segundo o Conselho
Mundial das Igrejas, e de acordo com o Secretariado para a Unidade dos
Cristãos, as principais atitudes reprováveis são as seguintes:
§ Qualquer espécie de pressão física, moral ou social que conduza à alienação ou privação do discernimento pessoal, da livre vontade e de uma plena autonomia e responsabilidade do indivíduo;
§ Qualquer benefício material ou temporal, oferecido abertamente ou de forma indirecta, em troca da aceitação da fé por parte de quem é sua testemunha;
§ Qualquer benefício que provenha do estado de necessidade no qual se poderia encontrar quem recebe o testemunho, ou da sua condição de debilidade social, ou da falta de instrução em vista do o converter ao próprio credo;
§ Seja o que for que possa suscitar suspeitas sobre a boa fé da pessoa;
§ Qualquer alusão que denote falta de justiça ou de caridade para com os crentes de outras comunidades cristãs ou de outras religiões não cristãs, com o fim de conseguir adeptos;
§
Ataques
ofensivos que firam os sentimentos de outros cristãos ou membros de outras religiões.
5.1.3. Programas de humanização e pastoral
5.1.3.1.
Programa de humanização
66.
Se é
certo que um hospital que não sabe acompanhar a evolução da ciência e da
técnica pode ficar marginalizado e, por conseguinte, sem capacidade de
intervenção, não é menos verdade que a ciência e a técnica implicam alguns perigos.
A constante evolução, o contínuo aparecimento de novas equipas e técnicas de trabalho, têm inerente o perigo de ir deixando de lado a pessoa humana, tanto a do profissional da saúde como a do doente.
De facto, em muitos processos de trabalho, podem passar de um papel fundamental que estavam a desempenhar para um secundário, ou até mesmo, conforme o tipo de técnicas, irrelevante.
Pensemos, por exemplo, em todos os serviços de diagnóstico, nos processos de informação, etc., onde outrora o profissional era imprescindível para uma correcta actuação e onde, actualmente, o seu papel passou a ser secundário ou inexistente.
Toda esta evolução não é neutra.
Não fica à margem da sensibilidade da pessoa e esta corre o risco de ser marginalizada. Quando se trata do doente, sujeito passivo de toda esta actuação profissional, com maior razão pode verificar-se esta evolução de isolamento, de segregação, de despotismo tecnológico: «Tudo pelo doente e para o doente, mas sem o doente».
Por isso, é imprescindível a incorporação de
programas de humanização nos Estabelecimentos Hospitalares e noutras Obras.
Estamos a referir-nos à incorporação de programas, não de serviços de humanização.
Temos de conseguir que todos os profissionais que tornam possível o serviço assistencial se sintam chamados a prestar serviço à pessoa, ao doente e a sua família.
Nisto consistirá a humanização das obras de S. João de Deus: em conseguir que todos os profissionais trabalhem pelo doente, para o doente e com o doente, aplicando os melhores meios técnicos ao serviço da pessoa atendida.
5.1.3.2.
Pastoral da saúde e social
67.
O doente
ou o necessitado têm a sua saúde debilitada, o que põe em crise a pessoa toda.
Estamos convencidos de que a fé em Jesus
Cristo é uma fonte de saúde e de vida. Disto decorre que é possível levar uma
pessoa em crise, porque doente, a encontrar-se com a sua dimensão de fé, se
existir, para que, desse encontro, surja uma fonte de saúde integral.
Um dos grandes
valores da nossa sociedade é a dimensão plural que ela adquiriu. Para trás
ficaram os tempos em que se impunham os regimes políticos, se impunham as
autoridades, e a fé e a religião também se impunham.
Hoje, reconhecemos
que a fé é um dom e, como tal, pode ser recebido ou recusado; pode-se por de
lado ou pode-se cultivá-lo, para que vá crescendo e amadurecendo.
Nas nossas Obras apostámos numa presença pluralista de profissionais; assim, temos pessoas que receberam o dom da fé e o foram amadurecendo, e outras que o não fizeram.
Da mesma forma, às nossas Obras vêm pessoas que receberam o dom da fé e o fizeram crescer e outras não. A todas queremos servir e a todas queremos ajudar. Com todas elas podemos percorrer um caminho que lhes permita recapitular a sua história pessoal, aproveitando esse momento de crise que a perda da saúde supõe.
Partindo da aceitação das limitações e da
dependência que a doença ou a marginalização pressupõem, poderemos
acompanhá-las a redescobrir a sua história, o seu ser e o sentido da sua vida.
Isto deverá ser feito com especial sensibilidade
e respeito, ao ritmo que o doente ou o necessitado for capaz de seguir – ou
melhor, ao ritmo que ele for imprimindo a isso. Com aquelas pessoas que
sentirem o dom da fé poderemos celebrar de forma explícita este processo; mas
sempre em função do grau de crescimento e maturidade que se for alcançando.
As nossas Obras, tanto sanitárias como de carácter social, são Obras da Igreja e, por isso, a sua missão consiste em evangelizar partindo do cuidado e da atenção integral aos doentes e aos necessitados, seguindo o estilo de S. João de Deus.
Falar de atenção integral implica atender e cuidar da dimensão espiritual da pessoa, como uma realidade essencial, organicamente relacionada com as outras dimensões do ser humano: a biológica, a psicológica e a social.
A dimensão espiritual vai mais além da esfera estritamente religiosa, embora também a inclua. Muitas pessoas encontram em Deus as respostas para as grandes questões da vida, mas outras não, devido ao facto de que o dado da fé em Deus não é significativo na sua vida e, por isso, procuram as respostas noutras realidades.
Deus não tem para todas as pessoas o mesmo significado, nem é o mesmo, nem a sua vivência se faz da mesma maneira.
Devemos aproximar-nos
de todos os doentes e necessitados, salvaguardando o respeito e a liberdade, e
atender as suas necessidades espirituais, deixando-lhes o protagonismo e
dando-lhes o que precisarem na medida das nossas possibilidades.
É bem verdade que a doença, a marginalização e a pobreza são ocasiões propícias para abordar muitas questões sobre o sentido da vida e da presença salvífica de Deus.
Por isso, e de formas diferentes, temos de acompanhar e responder, oportunamente, a todas essas situações. Só então tem sentido a nossa preocupação pela pastoral da saúde e da marginalização.
A
pastoral é a acção evangelizadora de acompanhar as pessoas que sofrem,
oferecendo com a palavra e o testemunho a Boa Nova da salvação, tal como fazia
Jesus Cristo, sempre respeitando as crenças e os valores das pessoas.
O Serviço de Pastoral tem como missão primordial atender as necessidades espirituais dos doentes e necessitados, as suas famílias e os próprios profissionais dos Centros. Isso requer uma estrutura adequada que inclui pessoal, meios e um programa que garanta o cumprimento da sua missão.
A Equipa de Pastoral é formada por pessoas preparadas e totalmente dedicadas ao trabalho pastoral da Obra Apostólica, as quais são apoiadas por outras pessoas comprometidas no projecto, seja a tempo parcial seja em regime de voluntariado. Deve existir um plano de acção pastoral e um programa concreto em função das necessidades do Obra e das pessoas nela assistidas.
Deverá haver linhas mestras de acção pastoral, tanto no seu conteúdo filosófico como teológico e pastoral. A partir dessas linhas deverá ser elaborado um programa de pastoral, procurando sempre responder às verdadeiras necessidades espirituais dos doentes, das suas famílias e dos próprios profissionais.
Deverão ser assinalados os seus objectivos, as suas acções e os critérios de avaliação, separando as diferentes áreas ou tipos de utentes da Obra Apostólica, programando para cada área a pastoral concreta e adequada.
A Equipa de pastoral deverá cuidar muito bem da sua formação, com o fim de estar actualizada, alimentar-se do ponto de vista profissional e espiritual, para poder servir melhor as pessoas.
Uma boa ajuda para a Equipa de Pastoral pode ser dada pelo Conselho de Pastoral composto, embora não exclusivamente, por profissionais do Centro, sensíveis à realidade pastoral: a sua função principal será a de reflectir e orientar o trabalho da equipa.
5.2. Problemas específicos da nossa acção assistencial
5.2.1. Sexualidade e procriação
5.2.1.1.
Procriação responsável
68. A procriação humana é o caminho mediante o qual Deus coopera com o homem que livremente se torna instrumento do seu acto criador através da geração.
Daí deriva o grande valor do acto humano de conceber que, por isso, é confiado à procriação responsável por parte do casal.(3)
Esta responsabilidade procriadora faz com que o casal esteja atento ao duplo significado, unitivo e procriador da sexualidade conjugal. Na realização desta tarefa tão importante, o casal orientar-se-á à luz da palavra de Deus e dos ensinamentos da Igreja adquiridos de forma responsável e segundo a própria consciência, única e pessoal.
Nas Obras Apostólicas da Ordem deverão ser fomentadas todas aquelas estruturas que, segundo as formas e as modalidades próprias das situações médicas e culturais dos diferentes países possam incentivar uma responsabilidade procriadora, mesmo mediante um adequado aconselhamento (conselling).
Estes mesmos critérios hão-de aplicar-se também aos serviços profissionais dos agentes de saúde, tanto a nível ambulatorial como nas intervenções em regime de hospitalização.
5.2.1.2.
Interrupção da gravidez
69. A vida humana é um valor universalmente reconhecido, embora seja entendido com diferentes sensibilidades históricas e culturais.
O respeito e a tutela da vida humana constitui o fundamento de todas as profissões e organizações de saúde.
__________________________________
Cfr. JOÃO PAULO II, Evangelium Vitae (EV), 44.
A tutela da vida é levada a cabo desde o princípio
até à extinção natural, independentemente
· das modalidades e circunstâncias da fecundação,
· do seu estado de saúde antes e depois do nascimento,
· das suas expressões relacionais,
·
da sua aceitação social.
Mais ainda: qualquer situação de mal-estar existencial, segundo o exemplo de S. João de Deus, constitui um motivo de compromisso, individual e comunitário, para a salvaguarda do dom que Deus confia ao homem.
Ao considerar a vida humana como inviolável, estabelece-se um princípio ético que se deve respeitar, independentemente das complexas questões teológicas sobre o momento da «animação» (quer tenha lugar no momento da concepção, quer num momento posterior).
Segundo as equilibradas e prudentes posições manifestadas na Donum vitae e na Evangelium vitae, o ser humano deve ser respeitado «como pessoa» desde o momento da sua concepção.(4)
O
carácter inviolável da vida humana exclui, por conseguinte, o facto de que nas
Obras da Ordem Hospitaleira se possa praticar o aborto voluntário ou qualquer
outra intervenção que, de facto, suprima a vida nas suas primeiras fases ou que
impeça o seu desenvolvimento natural.
__________________________________
(4) SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Instrução Donum
Vitæ, 22 de Fevereiro de 1997,
§ 2
Do mesmo modo, deverá ser feito tudo quanto for
possível para que os procedimentos de diagnóstico pré-natal não tenham como
única finalidade a interrupção da gravidez no caso de revelarem malformações no
feto.
Pelo contrário, o compromisso positivo a favor da vida e o acolhimento do mais frágil e necessitado, como no caso de uma pessoa deficiente, exigem por fidelidade ao carisma de S. João de Deus um acolhimento mais concreto e efectivo.
Isto é agora ainda mais necessário, dado que a cultura predominante e as políticas de muitos Estados tendem a negar a vida às pessoas que, de alguma forma, forem «imperfeitas».
O facto de se efectuarem nas obras da Ordem tais diagnósticos requer que sejam as mesmas Obras a instituírem Centros de Aconselhamento (counselling) qualificados para os casais e as famílias com problemas provocados pelo nascimento de um filho com malformação.
É
necessário que a reprovação do aborto voluntário, seguindo este mesmo critério,
não implique o desprezo para com aqueles que o praticam.
Ao contrário, com caridade cristã, as nossas Obras deverão converter-se em Centros de Acolhimento da vida e de «reconstrução» de uma existência que, frequentemente, está profundamente marcada pelo facto de se ter praticado uma interrupção da gravidez.
A condenação do erro não deve transformar-se em condenação de quem o comete mas deve sim, através do amor, transformar a pessoa que errou numa pessoa consciente do seu erro mas confiante no perdão de Deus.
A ilicitude da prática da interrupção voluntária da gravidez não exclui que se possam realizar intervenções farmacológicas ou cirúrgicas para salvaguardar a saúde da mãe e que arrastem consigo inclusivamente a morte do feto, contanto que esta não seja querida directamente, não seja obtida através da própria intervenção, e que esta última seja inadiável.(5)
5.2.1.3.
Reprodução assistida
70. São muitos os casais
estéreis que recorrem às técnicas de reprodução assistida, como recurso eficaz
para ultrapassar um problema que não depende da sua vontade.
Nenhuma Obra Apostólica da Ordem pode, de forma alguma, oferecer este serviço, sem estar altamente qualificado e reconhecido para isso.
Neste caso, consideramos eticamente aceitável a ajuda aos casais por meio de técnicas de reprodução assistida, que permitam ao casal procriar na sua intimidade sexual,(6) utilizando gâmetas do casal, e no respeito da vida do embrião.
Se circunstâncias da política de saúde exigirem outras intervenções, será necessário arbitrarem-se soluções aceitáveis ou procurar alternativas.
___________________________________
(5) Cfr. PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PASTORAL DOS AGENTES DA SAÚDE,
Carta dos Agentes da Saúde, Cidade do Vaticano, 1995, § 142
(6) Ibidem, 21c
As Comissões de Ética e Bioética podem ser nestes casos uma excelente ajuda.
5.2.2. Doação de órgãos e
transplantes
5.2.2.1. Tipos de transplante
71. As modernas
possibilidades proporcionadas pelos transplantes constituem um dos maiores
desafios éticos dos nossos tempos, visto que nos convidam a adquirir uma nova
visão da solidariedade interpessoal.
A Ordem Hospitaleira, neste sentido, une-se aos esforços de toda a colectividade para encarnar e difundir a «cultura da doação».
Para além dos aspectos legislativos que podem fazer com que o consentimento para o transplante depois da morte seja mais ou menos explícito, a importância da doação nunca se deve perder de vista.
É evidente que é preciso realizar um trabalho de tipo cultural para vencer algumas resistências que ainda se encontram relativamente ao transplante de órgãos de um cadáver, devido a uma errónea concepção do carácter sagrado do mesmo.(7)
___________________________________
(7) Ibidem, 87.
Neste sentido, a
dupla posição da Ordem, como expressão de um organismo eclesial, por um lado e,
por outro, como estrutura de saúde, poderia contribuir para vencer estas
resistências.
Na realidade não devemos transformar o culto que é justamente devido aos mortos, em que a piedade cristã é tão rica, num culto dos cadáveres.
Coloca-se um problema diferente para os transplantes entre seres vivos. Sendo um gesto de enorme e por vezes heróica oblação, e devido às suas características extraordinárias, não se pode considerar como um dever ético, como acontece no caso da doação post-mortem.
Faz parte dos actos extraordinários a que não se está obrigado, mas que revelam uma grande e admirável generosidade.
5.2.2.2.
A morte cerebral
72. Para que se possam retirar os órgãos de um cadáver apresenta-se o delicado problema da certificação da morte cerebral.
É
evidente que só a um sujeito que esteja efectivamente morto se pode retirar um
órgão.
Precisamente por isso, nos dias de hoje, existem critérios rigorosos para a sua verificação.
Uma pessoa está morta quando, com base nalguns parâmetros clínicos e/ou
instrumentais, já não houver nenhuma actividade, de forma irreversível, tanto
no córtex cerebral como no tronco encefálico.(8)
_______________________________
(8)
Ibidem, 129.
Estes critérios são suficientes e estão reconhecidos pela comunidade científica internacional e não devem ser contraditos pelas notícias mais ou menos sensacionalistas divulgadas pelos meios de comunicação.
De facto, a morte é um processo e não um acontecimento. Por isso, o momento final da existência terrena não constitui a morte da totalidade do organismo – que, nalgumas partes continua a viver, mesmo depois da interrupção da actividade cerebral –, mas a morte do organismo como uma totalidade.
5.2.2.3.
Utilização dos tecidos embrio-fetais
73. Nalguns casos, e de
modo particular nos casos de doenças hematológicas ou neurológicas, desde há
algum tempo utiliza-se o transplante de tecidos fetais (células hepáticas,
cerebrais, etc.).
Dado que geralmente os sujeitos aos quais se retiram
os tecidos são fetos abortados voluntariamente, isto apresenta um delicado
problema de carácter ético
· sobre a «utilização» destes sujeitos,
· sobre a possível «instrumentalização» do acto abortivo
· e sobre a validade do consentimento assinado pela mãe.
Em
si mesmo, o uso dos tecidos embrio-fetais, depois de ponderar os riscos e as
vantagens, não deveria representar um problema ético.
Não há dúvida de que se deverá evitar qualquer tácita instigação ao aborto ou ao facto de que se considerem estes fetos como «vidas desprezíveis» e sobre as quais se poderia, portanto, fazer o que se entendesse.
A sua dignidade de seres humanos deverá ser sempre respeitada e, do mesmo modo, esta utilização, embora possa salvar vidas humanas, não deverá servir para legitimar o aborto.(9)
5.2.3. Doentes crónicos e
terminais
5.3.2.1.
Eutanásia
74. O respeito pela vida, que começa desde o princípio, prolonga-se durante toda a duração da existência até ao seu fim natural.(10)
Com o termo eutanásia entendemos a morte provocada, ou procurada, tanto mediante procedimentos, que de maneira deliberada e voluntária, possam causá-la (eutanásia activa), como através da omissão de procedimentos que a possam evitar.
Esta segunda forma define-se impropriamente como «eutanásia passiva», uma expressão que é ambígua e imprópria: ou se trata de uma supressão deliberada da vida, – realizada quer cometendo-a quer abstendo-se –, ou se trata apenas de evitar um inútil encarniçamento terapêutica e, neste caso, não se trata de eutanásia.
___________________________
(9)
Ibidem, 146.
(10) Cfr. EV. 57
Aplicando o mesmo princípio do duplo efeito, já referido, ao aborto voluntário, não constitui um acto de eutanásia a intervenção que se proponha actuar para melhorar uma condição patológica do indivíduo (por exemplo, para eliminar a dor), mas que possa também implicar, de forma inevitável e não desejada, uma possível antecipação da morte.
O dever de garantir a todos uma morte digna do homem implica, em qualquer caso, o cuidado até ao último instante da vida.
A grande diferença que existe entre a cura (cure) e o cuidado (care), faz com que não haja doentes in-cuidáveis, embora haja alguns que são incuráveis.
A alimentação parenteral apropriada, a limpeza das feridas, a higiene corporal, as condições ambientais adequadas, são direitos iniludíveis dos quais não se pode privar nenhum doente até ao derradeiro instante da sua existência.
5.2.3.2.
Testamento vital
75. O «testamento vital» (living will) é um documento no qual uma pessoa exprime a sua vontade de que sejam respeitados os seus valores e as suas convicções no caso de algum dia, devido a qualquer lesão ou doença, ficar incapaz de manifestar a sua vontade.
Concretamente,
pede que, nestas circunstâncias, se respeite o direito,
· a não ser submetido a tratamentos desproporcionados ou inúteis;
· a que não se alargue o processo de morrer de forma insensata
· e a que se aliviem os sofrimentos com fármacos apropriados, mesmo se isso comportar uma vida mais breve.
Apresentado desta forma e como declaração de intenções, não há dúvida de que o testamento vital é bom e aconselhável. Manifesta, de facto, a vontade do doente sobre a forma como deseja ser tratado pelos médicos na fase final da sua vida.
Hoje em dia, o testamento vital não tem qualquer valor legal. Por isso, um amplo sector da sociedade, reclama de forma insistente e com razão, a sua tutela jurídica, de modo que, em caso de controvérsia, possa recorrer à justiça para resolver o litígio com base numa legislação específica.
A Igreja não pode aceitar de forma alguma que se provoque a morte de forma activa, mesmo que por vontade expressa livremente pelo interessado.
O limite de dispor da própria vida com a intervenção de terceiros, em caso de doença ou de invalidez incurável e permanente, até provocar directamente a morte, assinala a diferença entre o testamento vital aceitável para os católicos e os outros tipos de testamento.
Além do testamento vital, devemos tomar em consideração outras formas de garantir os direitos do doente quando, devido à sua incapacidade, têm que intervir terceiros.
Isto implica o reconhecimento jurídico da figura de um tutor encarregue de tomar as decisões médicas.
Esta pessoa, escolhida pelo doente, terá o poder
de decidir, como se fosse o próprio doente, as acções que melhor possam tutelar
o seu bem, considerado de forma integral.
5.2.3.3. Proporcionalidade dos cuidados e
encarniçamento terapêutico
76. Os nossos hospitais,
embora tenham como princípio fundamental a promoção da saúde, não podem
considerar a morte como um fenómeno estranho, que se deva marginalizar, mas
como uma parte integrante da vida, e fundamental para a realização plena e
transcendente do doente.
Por conseguinte, todo o doente deve ser respeitado no seu direito a que não se ponham entraves à sua decisão de assumir de forma responsável, segundo a sua religião e a sua concepção da vida, o acontecimento da sua própria morte; antes pelo contrário, deverá ser apoiado nessa decisão.(11)
A isso se oporia o facto de ocultar-lhe a verdade ou de privá-lo, sem uma necessidade urgente ou real, das suas habituais relações com a família, com os amigos, com a comunidade religiosa ou ideológica. Só assim se poderá realizar, inclusivamente nos momentos definitivos da existência, a humanização da Medicina.
É evidente que isto
comporta o facto de se viver com plena responsabilidade e dignidade o momento
da própria morte. Se, por um lado, esta não pode ser provocada directamente,
por outro lado, não se deve insistir com tratamentos que não tenham uma
influência eficaz sobre a duração da vida e sobre a sua qualidade, prolongando
simplesmente a agonia com um inútil encarniçamento terapêutico.
_______________________________
(11) SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A
DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre a Eutanásia, 5 de Maio de 1980, .p. 549. Cfr. Carta dos Agentes da Saúde, 119
Cada um tem o direito a morrer com dignidade e serenidade, sem tormentos inúteis, utilizando todos e apenas os tratamentos que sejam realmente proporcionados.(12)
5.2.3.4.
Cuidados paliativos
77. Podemos dizer que, desde sempre, o homem recorreu a cuidados paliativos quando se ocupou da fase «terminal» de um doente, apoiando-o com todos os remédios disponíveis e também ajudando-o, consolando-o, acompanhando-o até à morte.
Hoje
em dia temos uma ideia mais elaborada destes cuidados, que estão estruturados a
nível operativo (em lares e unidades de cuidados paliativos, etc.), que nos
ajudam a não abandonar ao seu destino o doente que sofre de uma doença
incurável.
Os cuidados paliativos apresentam-se, pois, como «cuidados totais», proporcionados à pessoa numa relação global de ajuda, encarregando-se de todas as necessidades assistenciais.(13)
Na
realidade, os cuidados paliativos são exactamente o que se deve fazer no
tratamento de um doente terminal. Não conduzirão à cura, visto que impossível,
mas trta-se de realizar uma série de tratamentos (por vezes até mesmo
tecnicamente complexos) para garantir uma boa qualidade de vida, durante o
tempo que lhe resta para viver.
____________________________
(12) Cfr. Carta
dos Agentes da Saúde, 119-120.
(13) Cfr. EV, 65
À
luz destas considerações, as instituições da Ordem Hospitaleira que se ocupam
do tratamento de doentes na fase terminal da sua doença, deverão adequar, na
medida do possível, unidades de cuidados paliativos destinadas a tornar mais
suportável ao doente a dita fase terminal e, ao mesmo tempo, deverão garantir
um adequado acompanhamento humano.
5.2.4. Problemas relacionados com a pesquisa científica
em seres humanos
5.2.4.1.
Experimentação clínica
78. A pesquisa científica sempre foi um dos principais motores com que se levou a cabo o progresso da Medicina. A esta, bem como a algumas descobertas fortuitas, como aconteceu com os antibióticos ou os raios X, devemos os êxitos actuais da ciência.
Nos
dias de hoje, a investigação já não se realiza num laboratório fechado ou sobre
animais, mas directamente no homem.
Este método experimental já não é só uma opção que alguns investigadores querem empregar, mas tornou-se hoje numa necessidade iniludível, sobretudo no que se refere aos novos medicamentos.
Depois do laboratório e do animal cobaia, todo o fármaco deve ser experimentado pela primeira vez no homem.
Não se trata evidentemente de utilizar o homem como cobaia, mas de aperfeiçoar uma terapia da qual o próprio sujeito, sobre o qual se experimenta, e/ou outros, poderão tirar proveito.
Isto só pode verificar-se respeitando algumas condições rigorosas que já foram definidas por várias Cartas e Declarações internacionais.(14)
E dado que este tipo de pesquisa se realiza sobretudo nas estruturas hospitalares, é importante que as nossas Obras Apostólicas estejam conscientes e atentas a estas condições.
A primeira condição é que qualquer tipo de experimentação parta de uma presunção de benefício: por exemplo, a introdução no mercado de um fármaco até então inexistente, ou de um melhor, em substituição de outro, por diversas razões –
· maior eficácia,
· riscos inferiores,
· custo mais baixo,
· maior facilidade de aplicação, etc.
Qualquer experiência deverá ser feita com o consentimento do interessado.
Para que o consentimento
seja válido deve ser manifestado
livremente.
Isto significa que não se deverá exercer nenhuma espécie de coacção, nem implícita nem de tipo «moral», como poderia acontecer no caso da influência da autoridade médica ou medo por parte do doente, receando não continuar a ser tratado de forma adequada.
_____________________________
(14) A este respeito pode-se consultar: Código de Nurimberga, Declaração de
Helsínquia, Declaração de Genebra, Good
Clinical Pratice, etc. Além disso, partindo dos critérios do Magistério,
ver Carta aos Operadores da Saúde,
75-82.
Além disso, o consentimento deverá ser «informado»: será necessário explicar ao doente que se trata de uma experiência clínica e esclarecê-lo sobre os riscos e as vantagens, as alternativas, as garantias de seguros, etc.
Como condição prévia para que o consentimento seja realmente informado, é indispensável que o doente saiba a verdade sobre o seu estado de doença. Isto não significa que a comunicação da verdade não se possa fazer progressivamente, diferida no tempo e partilhada com os seus familiares. Nem que se tenha de violar de forma obstinada a consciência do doente que tenha manifestado o desejo de não saber a verdade. Nem sequer que a verdade tenha de ser pormenorizada, incluindo todos os aspectos e os possíveis efeitos secundários: é suficiente que seja adequada.
Para
conseguir uma uniformidade no momento de receber o consentimento seria oportuno
que as diferentes Obras Apostólicas ou Províncias elaborassem um protocolo
apropriado para ser utilizado nos casos clínicos das diferentes Obras. É
fundamental que todos os agentes de saúde compreendam que a exigência do consentimento
não é um procedimento legal para salvaguardar o médico, mas sim um direito do
doente e, enquanto tal, comporta um dever ético específico por parte dos mesmos
agentes.
5.2.4.2.
Investigação com pessoas deficientes e grupos vulneráveis
79. Quanto acima fica dito
refere-se evidentemente à experimentação clínica realizada em sujeitos jurídica
e eticamente competentes, isto é, em condições de compreenderem perfeitamente o
que se lhes diz e faz, e capazes de exprimir um consentimento plenamente
consciente.
Mas a experimentação não
abrange apenas estes sujeitos nem se pode restringir a eles. Desse modo
ficariam excluídos alguns doentes, como por exemplo as crianças, os doentes
mentais ou as pessoas em estado de coma, que também necessitam de novas
descobertas terapêuticas.
Precisamente por este motivo
será necessário pensar em formas oportunas de «tutela» confiadas a pessoas que, pelos seus vínculos afectivos com
o doente ou pelas funções institucionais que desempenham, presumivelmente se
preocuparão sempre com o bem do doente. Nestas condições e depois de avaliar os
riscos que o doente corre, comparando-os com as potenciais vantagens, a
experimentação poderá ser levada a cabo de forma lícita.
Um problema particular se apresenta ainda nas possíveis experiências realizadas em sujeitos sãos. Dificilmente qualquer um deles estaria disposto a submeter-se a este tipo de experimentação sem obter alguma coisa em troca.
Na maioria dos casos, de facto, estes sujeitos são presos a quem se oferece em troca uma redução da pena.
Por vezes justifica-se esta prática apresentando-a como uma espécie de «tributo» que, desta forma, os presos pagam à sociedade.
Noutros casos, estes sujeitos são estudantes que, de alguma forma, são remunerados pelo serviço prestado e, em muitos outros casos, trata-se de autênticas «cobaias humanas», recrutadas nos países do Terceiro Mundo em troca de uma retribuição insignificante.
Nestes casos, falta o requisito fundamental da liberdade no momento de aceitar submeter-se à experimentação, além de que tais comportamentos são lesivos da dignidade humana.
Nas nossas Obras Apostólicas, em razão disto, deverá haver sempre vigilância para que inclusivamente uma possível experimentação em sujeitos sãos seja realizada só depois do seu consentimento expresso de forma absolutamente livre e com uma adequada garantia de ausência de riscos significativos.
5.2.4.3.
Fetos e embriões
80. Pelo que se refere à experimentação pré-natal, podem verificar-se dois casos fundamentais.
O primeiro é o da experimentação com embriões excedentários que sejam fruto de métodos de fecundação in vitro.
Com frequência é realizada com considerações de tipo pseudo-humanitário, alegando-se que é preferível «utilizar» o embrião desta forma do que suprimi-lo ou congelá-lo.
O segundo caso é o da experimentação realizada em mulheres grávidas que tenham pedido a interrupção da gravidez.
Também neste caso se poderia, assim, «utilizar» o feto que, de qualquer forma está destinado a morrer.
Na realidade, estas considerações, por muito útil que a investigação se torne para outros seres humanos, fazem com que se instrumentalize a pessoa humana, mesmo que seja para uma boa causa, visto que já não um fim, mas um simples meio.(15)
É diferente, pelo contrário, o caso de uma
terapia experimental, mesmo com todos os riscos que comporta, levada a cabo
para um possível benefício do feto no qual se faz a experimentação.
É evidente que este benefício deverá ser potencialmente maior do que o facto de não realizar a mesma experimentação, ou do que a utilização de outra terapia.
5.2.4.4. Comissões de Investigação
clínica e Comissões de Ética
81. Com o fim de promover
a investigação, os hospitais organizam Comissões de Investigação Clínica,
como órgãos que promovem os diferentes campos da investigação clínica e
farmacológica.
Estas
Comissões são também uma instância formativa que inspira e promove momentos
· de reflexão,
· de informação,
· de inovação
· e de sensibilização nas áreas assistencial, científica, didáctica e administrativa.
Por
outro lado, as Comissões de Ética, que é oportuno constituir e promover em
todas as Províncias da nossa Ordem, apresentam-se nos dias de hoje como órgãos
para a defesa da autonomia do doente e do respeito dos seus direitos.
____________________________________
(15) Cfr. EV. 63
Tais Comissões deverão ter uma estrutura adequadamente representativa e sobretudo deverão ser integradas por pessoas competentes no campo da ética.
Nem todos os países têm legislação sobre este tema e, frequentemente, a fisionomia das Comissões é diferente.
Nalguns países existem Comissões «nacionais», enquanto noutros são apenas hospitalares. Algumas ocupam-se só de investigação e outras apenas de problemas clínicos. Algumas são totalmente independentes, ao passo que outras estão vinculados a uma instituição, etc.
Como quer que seja, pode-se dizer que, em
geral, as funções que as Comissões de
Ética realizam são três.
A primeira é a
função de autorizar.
Compete-lhes, de facto, o exame dos ensaios experimentais, tanto de carácter médico como cirúrgico. Neste âmbito, as Comissões deverão exprimir um parecer ponderado que tenha em conta todas as condições de licitude que permitam a própria experimentação (razão do estudo, proporção entre riscos e vantagens, tutela do doente, consentimento esclarecido, etc.)
Em segundo lugar, as Comissões têm uma função consultiva, no caso de serem expressamente consultadas por terceiros (pessoal de saúde, doentes, instituições externas) para exprimir um parecer sobre questões de grande significado ético ou para esclarecer situações de conflito para as consciências dos agentes de saúde.
Finalmente, as Comissões desempenham uma função cultural, pois podem traçar directrizes sobre comportamentos éticos ou promover com diversas iniciativas (congressos, publicações, etc.) um alargamento da competência ética do pessoal e das instituições de saúde.
Além disso, as
Comissões podem ser consideradas como verdadeiros instrumentos de formação para
promover a sensibilidade ética dos religiosos e dos colaboradores.
5.2.5. Problemas éticos relacionados
com a medicina preditiva
5.2.5.1.
A comunicação do diagnóstico
82. As modernas possibilidades proporcionadas pela medicina preditiva, realizada e muitas das nossas Obras Apostólicas, levanta problemas éticos que até agora não existiam.
O
primeiro destes problemas é o da comunicação do diagnóstico.
A
quem se deve comunicar:
·
ao interessado,
·
aos familiares,
·
aos dois?
O
critério ético geral quanto ao facto de comunicar a verdade ao doente diz-nos
que o titular prioritário, ou até mesmo exclusivo, deste direito, é o próprio
doente, independentemente da gravidade da doença.
É
precisamente nos casos de prognóstico mais grave que o problema se apresenta
com mais urgência.
A situação das doenças genéticas não deveria representar uma excepção a esta regra.
Não há dúvida de que a particularidade de muitas destas doenças, cuja expressão clínica poderia envolver os membros da família, faz com que se apresentem as perguntas acima referidas.
Neste documento é impossível aprofundar o problema: aconselhamos
simplesmente um exame atento das diferentes situações, que tenha em conta os «direitos» de todas as pessoas
implicadas, dando prioridade absoluta ao doente (que não deverá ser defraudado
de uma realidade que tão profundamente lhe diz respeito), mas tendo também em
conta, se for caso disso, as justas exigências dos familiares.
5.2.5.2.
Património genético e tutela do segredo
83. No futuro desenvolvimento das ciências médicas está-se a esboçar no horizonte um conhecimento total do património genético do homem, não só no que diz respeito à sua estrutura fisiológica, mas também – e é isso o que mais conta – para identificar as suas possíveis patologias.
Por um lado, esta realidade é uma premissa indispensável para a sua futura correcção (engenharia genética); por outro, esta possibilidade levanta novos problemas de carácter ético.
O primeiro diz respeito ao segredo destes dados que, ao serem guardados em «bancos genéticos», poderiam representar um perigoso elemento de distorção ou de simples invasão na vida do indivíduo.
Na realidade, o problema não é diferente do que poderia derivar da violação de um arquivo clínico ou informático.
Apresenta-se simplesmente um velho problema em termos diferentes, que é o do carácter secreto dos dados pessoais.
Talvez o que mais chame a atenção neste caso seja a profundidade e a «intimidade» deste tipo de possível violação, que penetra nas fibras mais secretas da estrutura humana.
Mas os critérios que se aplicam em outras situações deveriam aplicar-se também a esta.
Com este problema está intimamente relacionado o problema de uma espécie de «carta de identidade genética» do indivíduo, a última meta da tão desejada medicina preditiva de que tanto se fala.
· Quais são os problemas que este instrumento causará?
· De que forma vai afectar a psique do indivíduo o facto de se saber que ele é portador de várias doenças genéticas que, embora não se manifestem clinicamente, permanecem como potenciais?
· Que consequências terá no momento de escolher o cônjuge?
Afinal, até agora sempre se disse que devemos prevenir as doenças genéticas com exames pré-matrimoniais.
Este poderia ser o último e insuperável instrumento.
Poderá condicionar as
escolhas afectivas do indivíduo?
Trata-se, sem dúvida alguma, de uma visão ainda distante, mas para a qual nos devemos começar a preparar.
Há ainda outro aspecto, o último, mais pragmático, embora não menos importante, diz respeito às implicações de tipo profissional e dos seguros.
Não se exclui que, no futuro, quem quiser contratar uma pessoa possa pedir (como acontece nos dias de hoje com o certificado médico) a sua «carta de identidade genética», podendo mesmo chegar a não contratar as pessoas classificadas como não idóneas – no momento, ou no futuro.
Estaríamos perante uma grave forma de discriminação laboral e, face a esta possibilidade, a filosofia das nossas Obras Apostólicas deveria prever medidas que tutelem estes trabalhadores, que poderão vir a representar uma das «novas formas de pobreza» do futuro.
5.2.6. Problemas éticos nas situações de marginalização
5.2.6.1.
Toxicodependentes
84. Não obstante em todos os povos e em todos os tempos terem existido formas de dependência física e/ou psíquica de diversas substâncias, frequentemente com um fundo mágico-religioso, só nos nossos dias é que este problema adquiriu dimensões ético-sociais de grande envergadura.
Os
principais motivos são a vastidão do problema, a sua presença junto das camadas
mais novas da população, e os danos individuais e sociais implicados no consumo
de tais substâncias.
O problema, que é muito complexo, interpela a intervenção da Ordem Hospitaleira a vários níveis.
Antes de mais, nos níveis tipicamente de saúde
que o facto comporta:
· primeiros socorros,
· procedimentos clínicos da desabituação,
· tratamento médico das complicações.
Além
disso, há os tratamentos psicológicos e educativos para a superação definitiva
da dependência psíquica.
Se
é relativamente fácil ultrapassar a dependência física, o mesmo não se pode
dizer da dependência psíquica.
Efectivamente,
se não se apresentar uma proposta audaz, capaz de colmatar o vazio de valores
que arrasta a juventude para o consumo de drogas, o sujeito nunca conseguirá
vencer a sua batalha contra o uso de estupefacientes.
Este
é o motivo que faz com que a Igreja esteja presente no mundo da droga com
diversas estruturas (Centros de acolhimento, comunidades terapêuticas) tendo em
vista a reabilitação e a reinserção social dos toxicodependentes.
Além disso, não podemos menosprezar a dimensão social deste compromisso da Ordem Hospitaleira que está plenamente em sintonia com o seu carisma.
Sem dúvida alguma, a toxicodependência faz parte das «novas» formas de pobreza de que tanto se fala e com as quais a Ordem se deve sentir comprometida.(16)
_______________________________________
(16) Cfr. MARCHESI, Pierluigi, A
Hospitalidade dos Irmãos de S. João de Deus rumo ao ano 2000, Roma, 1986, Apênce III
Como é óbvio, as referidas actividades não se deverão realizar como oposição aos serviços e intervenções das instituições públicas, mas sim de forma complementar.
Isto não significa que devam necessariamente partilhar as medidas legislativas e sociais que não se harmonizem com a missão carismática das nossas Obras.
Nalguns aspectos, as diversas formas de toxicodependência podem-se comparar com outras, como por exemplo o alcoolismo.
De facto, o problema do alcoolismo, em diversos países do mundo, atinge dimensões muito superiores às da droga. E, além disso, as camadas sociais afectadas são muito diferentes, o que representa mais um estímulo para que a Ordem se empenhe de forma eficaz neste sector de actividade.
5.2.6.2.
Doentes de SIDA
85. A difusão actual desta
patologia e as peculiaridades sociais que ela comporta, exigem uma resposta
válida por parte da nossa Ordem, que podemos assumir em diversas formas de
actuação.
A primeira deverá ser de ordem cultural, evitando atitudes interiores e, por conseguinte, os comportamentos discriminatórios, especialmente naquelas situações de carácter sanitário, em que o sujeito seropositivo, ou com SIDA declarada, se encontra em hospitais gerais por diversos motivos (urgências, necessidade de operação cirúrgica, etc.), partilhando com outros doentes e visitantes a sua hospitalização.
A atitude de acolhimento deverá manifestar-se de forma mais apropriada e como uma forma de actuação do carisma, em estruturas predispostas para estes doentes ou de acompanhamento dos doentes que estejam na fase terminal da sua doença.
Além disso, no plano da nossa herança histórica, não nos devemos esquecer de que é precisamente na assistência às pessoas afectadas por várias doenças infecciosas que se distinguiram no passado, inclusivamente de forma heróica, muitos dos nossos religiosos hospitaleiros.
Além do facto de tomar a cargo estes doentes, a Ordem deverá também colaborar na prevenção da patologia, que deverá ser feita sobretudo a partir de um apropriado ensino dos valores.
No caso de estas estratégias se revelarem ineficazes ou insuficientes, qualquer possível diminuição do dano se deverá realizar com uma consciência real de que estas medidas, por serem falíveis, não representam uma garantia absoluta da prevenção do contágio.
Além disso, na medida que nos for possível, seria oportuno que a Ordem colaborasse também nas actividades de pesquisa levadas a cabo por outros organismos ou instituições médicas, tendo em vista encontrar novos remédios ao nível da terapia ou da prevenção para acabar definitivamente com este flagelo.
Finalmente, devemos ter cuidado para que a profunda compreensão humana, o acolhimento, a rejeição de todas as formas de marginalização e de qualquer suposta «condenação divina» expressa em relação a esta doença, não se traduza numa legitimação dos comportamentos que estão na sua origem.
5.2.6.3.
Deficientes físicos e psíquicos
86. Embora pareça que a sociedade contemporânea voltou a descobrir a atenção pelos deficientes, tanto em termos de aceitação da pessoa «diferente» como através da aplicação de medidas, como por exemplo a eliminação das «barreiras arquitectónicas», ao nível cultural continua a haver alguma rejeição desta realidade, cujas manifestações vão desde
§
a promoção de uma eugenesia pré-natal,
§ à supressão do embrião afectado por qualquer anomalia,
§ até à petição da eutanásia para eliminar um recém-nascido malformado ou um adulto incapacitado.
Mas
não terá sentido criticarmos tudo isto se, ao mesmo tempo, não agirmos para
enfatizar os valores do acolhimento e do amor que a sociedade deve manifestar
em relação aos seus membros mais frágeis.
Uma sociedade realmente feita à medida do homem, não pode basear-se nos «fortes», mas sim nos «fracos».
Por isso, além de ter Obras específicas para os deficientes, a Ordem deveria desempenhar um papel de testemunho.
A frequente combinação da deficiência (handicap) física e psíquica reforça as considerações citadas no parágrafo anterior.
Por outro lado, se a deficiência for apenas física, com mais razão se deverá intervir para assegurar a reabilitação integral do deficiente.
Neste sentido, é a própria sociedade que precisa de uma reabilitação, dado que frequentemente se revela incapaz de ver no deficiente uma pessoa, embora com problemas particulares.
5.2.6.4. Doentes mentais e deficientes psíquicos
87.
Constituem
desde sempre uma categoria de doentes particularmente atendidos nas nossas
Obras, dada a experiência biográfica do nosso Fundador.
Sobre eles
adquirimos uma bagagem de experiências e competências muito importante que,
amiúde, foi precursora de ideias e soluções que se aplicam nos dias de hoje nos
sectores de saúde pública.
Não há dúvida de
que continuam a existir alguns problemas éticos, além dos problemas específicos
que derivam das medidas legislativas de diversos países.
O primeiro problema é, de alguma forma, o denominador comum de todos os outros e refere-se à capacidade de consentimento.
A superação do paternalismo do passado e a actual valorização da autonomia do doente, abrangem naturalmente também o doente mental.
E implica-o ainda mais devido às limitações de actuação da sua autonomia de decisão.
Poderia pois surgir a tentação de se voltar, embora apenas neste caso e com uma finalidade positiva, ao antigo paternalismo.
Isso não se deve verificar, excepto quando, devido a um estado de necessidade ou por falta de outras pessoas (familiares, tutores, Comisões de Ética), com as quais partilhar a escolha, não houver realmente outra alternativa possível.
Em todos os outros casos, o doente deverá participar nas decisões, na medida em que as suas condições o permitirem, ou deverão ser convidadas a intervir as pessoas antes mencionadas, as quais, pelas suas relações ou pelo papel que representam, deverão presumivelmente velar sempre pelo bem do doente.
Este problema apresenta-se nalguns casos de forma
evidente:
§ na aplicação dos psicofármacos,
§ na terapia electroconvulsiva (TEC),
§ na contenção física
§ e na privação da liberdade.
Neste
trabalho deverá ser considerado como suficiente o consentimento geral,
frequentemente implícito, expresso por quem estiver autorizado, quando for
necessária uma hospitalização.
Um problema particularmente delicado é o que se apresenta relativamente ao exercício da sexualidade.
A condição indispensável para esta prática é a de ela ser livremente desejada.
Tanto no doente mental como no deficiente psíquico, existem diversos graus de limitação desta liberdade de decisão, enquanto permanecem os estímulos sexuais.
Se, por um lado, parece pouco respeitosa da dignidade humana qualquer intervenção que mutile uma das suas funções (neste caso concreto, a reprodutora), por outro lado, além de o sujeito não estar em condições de exercer, livremente, esta faculdade, ao exercê-la poderia provocar uma gravidez, visto que se mantém inalterado o seu potencial biológico.
Precisamente por isso, procurando ter sempre o máximo e devido respeito pelo ser humano na sua plena identidade corporal, deverá ser evitado de forma responsável que o doente mental ou o deficiente psíquico, devido às condições particulares de existência em que se encontra, possa provocar dano a si mesmo ou a outrem.
De
qualquer forma, e para além destes problemas particulares, as estruturas
psiquiátricas ou sociais da Ordem deverão caracterizar-se sempre por um
tratamento dos doentes mentais e dos deficientes psíquicos que se caracterize
por um profundo humanismo.
Por um lado, isso reflecte uma permanente actuação carismática daquela particular sensibilidade manifestada por S. João de Deus; por outro lado, é uma profecia renovada num sector que necessita de uma humanização contínua.
Esta, na verdade, não deve limitar-se ao facto de garantir ao doente mental e ao deficiente psíquico
§ um espaço vital,
§ um ambiente higienicamente satisfatório,
§ uma boa qualidade de comida,
§ uma justa liberdade de movimento,
§ a possibilidade de manter relações afectivas com a família, etc.,
mas deve alargar-se em termos positivos à sua «realização pessoal».
Para
isso deverão ser utilizadas todas as capacidades e todos os recursos. Trata-se
de um processo que deve conduzir a uma valorização de uma personalidade que,
apesar das suas carências, sempre revela o rosto da pessoa humana, feita à
imagem e semelhança de Deus.
5.2.6.5.
Idosos
88. O número de idosos, que aumenta constantemente na sociedade actual, implica um aumento das doenças, com os consequentes encargos no sector da saúde, e comporta igualmente problemas específicos de carácter socio-assistencial.
As
dificuldades objectivas de algumas famílias no momento de acolher um idoso ou a
rejeição egoísta por parte de outras, obrigam frequentemente a pessoa idosa a
viver num lar da terceira idade. A Ordem dispõe já de muitas estruturas deste
tipo em várias partes do mundo.
Há muitos percursos existenciais que podem levar um idoso a uma residência de idosos.
Apesar de não termos direito nenhum de julgar as famílias que tomam esta decisão, a Ordem deverá fazer todo o possível para favorecer as relações afectivas entre a pessoa de idade avançada e a sua família de origem, inclusivamente prestando a sua ajuda para eliminar dificuldades que possam surgir.
A permanência de uma pessoa idosa numa Obra Apostólica administrada pela Ordem não deve ser encarada apenas como a solução de um problema de habitação, mas deve caracterizar-se profundamente pelo sentido carismático.
Isto implicará a valorização da «terceira idade», que não deve estar camuflada pela ilusão de uma juventude eterna, mas que se deve viver como uma etapa da vida particular e diferente, com todas as riquezas e os problemas que ela comporta, do mesmo modo que as outras etapas da vida.
É evidente que esta idade se vive com um sentido de perda (da força física, do papel social, das pessoas queridas, do trabalho, da casa, etc.), devendo este sentimento assimilar-se e compensar-se com um sentimento de enriquecimento (da experiência, das recordações, do bem realizado, etc.).
Além disso, numa perspectiva de fé, esta etapa da vida pode adquirir o sentido de uma longa vigília de preparação para o encontro com a eternidade.
5.2.6.6. Problemas emergentes
89. Com este termo indicam-se diversas formas de marginalização ou «novas pobrezas», algumas já presentes e com respostas da Ordem a nível assistencial; outras, só agora estão a surgir e desafiam a nossa imaginação e o nosso compromisso ético.
A primeira está representada pelos migrantes e pelos refugiados, fenómenos em forte expansão.
Se, por um lado, os
problemas que apresentam são sobretudo de ordem social (integração cultural e
religiosa, problemas de emprego, etc.), por outro, estes fenómenos constituem
um âmbito no qual o carisma da hospitalidade se pode exprimir de forma concreta.
As respostas neste sentido podem ser muito diferentes, propostas por uma
criatividade que é capaz de escutar as sugestões do Espírito e suscitadas
também pelas necessidades de cada país ou situação social.
Paralelamente ao acolhimento, poderá também ser exigida a atenção do sector da saúde para aquelas pessoas que não beneficiam de qualquer tipo de assistência pública. A Ordem deverá actuar também nestes casos de necessidade, criando novas estruturas ou encontrando as soluções mais adequadas noutras estruturas assistenciais.
Numa situação semelhante encontram-se outras pessoas que é costume designar por «pessoas sem-abrigo», vagabundos, ocupantes abusivos de propriedades alheias, etc.
Estas pessoas têm em comum uma pobreza tão absoluta que não possuem qualquer tipo de habitação estável e vêem-se obrigadas a viver nas ruas, nos vãos de entradas de prédios das cidades, nas salas de espera de estações ferroviárias.
Provavelmente, não obstante os séculos que passaram, o cenário de vida destas pessoas que sofrem é muito semelhante ao que se apresentava aos olhos de S. João de Deus ou de S. João Grande.
Por isso, qualquer tipo de intervenção assistencial em seu favor (material, alojamento, cuidados médicos, etc.) apresenta-se numa linha de continuidade carismática absoluta.
Juntamente com estas situações não se exclui que nos próximos anos a Ordem seja chamada a ter uma maior intervenção nos problemas e doenças que a sociedade actual produz: alterações na alimentação – anorexias e bulimias, alterações no comportamento, mulheres maltratadas, crianças que sofrem abusos, pessoas com tentativas de suicídio, solidão, etc.
Uma atenção adequada às necessidades da pessoa que sofre não pode esquecer-se dos «novos sofrimentos» que, com o tempo, podem aparecer e que devem encontrar a Ordem preparada para lhes dar resposta, com criatividade e amor.
5.3. Gestão e direcção
5.3.1. Gestão
5.3.1.1.
Organização e aplicação de recursos
90. O nosso Fundador soube antecipar-se ao modelo de assistência hospitalar que era praticada no tempo em que viveu, e fê-lo a partir de critérios de organização e aplicação de recursos. Como ele, também nós somos hoje chamados a dar um contributo pioneiro à nossa sociedade. Na nossa época, mais do que outrora, a organização e a gestão deverão ser espaços singulares deste contributo.
Este poderia ser um lema para os nossos Centros: sermos capazes de fazer uma correcta afectação dos recursos de que dispomos, sabendo aprimorar aqueles aspectos mais específicos da Instituição. Ao nível do Centro, para garantir a viabilidade do mesmo; ao nível dos serviços e sectores, com o objectivo de dar uma assistência integral ao doente e necessitado.
A retribuição e formação dos profissionais, a obtenção dos produtos necessários para o correcto funcionamento, a adequação tecnológica e a devida promoção da humanização deverão caminhar de maneira equilibrada; se alguma destas partes se desequilibrar estaremos a criar uma situação de divisão, de ruptura, de crise.
A busca da equidade, partindo de uma dimensão local, regional e, sem perder de vista a nossa vocação universal, deverá estar presente na tomada de decisões, ainda que nalguns momentos e circunstâncias isso possa ser difícil.
Uma tarefa
primordial dos gestores é a obtenção destes recursos. Por isso, uma parte
importante do seu tempo e do seu trabalho deverá ser dedicada a desempenhar
esta função.
Deverão ser eles a descobrir onde e como estar presentes para defender o trabalho que o Centro desenvolve, ao mesmo tempo que procuram promover a obra e os seus projectos.
5.3.1.2.
Profissionalismo
91. Porque aspiramos a uma assistência integral e nos sentimos chamados a dar uma resposta vocacional nas nossas obras, é imprescindível que o nosso profissionalismo esteja fora de questão.
Partindo de uma resposta profissional, coerente com os princípios éticos da profissão e animada pela filosofia da Instituição, poderemos tornar possível a identidade que desejamos para as nossas obras. A capacidade técnica e humana são as bases imprescindíveis para tornar possível esta resposta profissional.
5.3.1.3.
Competência técnica
92. Do mesmo modo, o Centro deverá velar para que a sua dotação técnica e tecnológica seja adequada ao seu nível assistencial. Só com uma competência técnica adequada poderemos dar o contributo específico que pretendemos.
As contínuas mudanças tecnológicas exigem esforços adicionais para que não fiquemos desactualizados. Os profissionais terão o compromisso de adquirir uma formação técnica suficiente e hão-de trabalhar para a actualizar de acordo com os novos progressos científicos.
5.3.2. Organização
5.3.2.1. Expressão correcta da missão da obra nos instrumentos organizativos
93. A nossa missão em cada um dos Centros é muito rica e plural; por conseguinte, a nossa forma de organização deverá orientar-se para a pluralidade. Nem todos os campos da missão podem ser compatíveis com um único sistema de organização.
Na medida em que a nossa organização estiver impregnada pela filosofia da nossa missão, estaremos a facilitar que todos os Centros e todos os profissionais comunguem dela.
A fórmula já adoptada de separar as funções do superior das responsabilidades do gerente, demonstrou-se muito apropriada e eficaz e, nestes momentos, é imprescindível na gestão de muitas das nossas obras. O Superior da Comunidade e o gestor de uma Obra são chamados a trabalhar em equipa, juntamente com os outros membros do órgão de Direcção.
É uma função primordial desta equipa de direcção trabalhar de forma interdisciplinar e motivar para esta maneira de trabalhar as outras equipas que existirem no Centro.
5.3.2.2.
Defesa da pluralidade
94. A diversidade de opiniões e de culturas são um caminho adequado para reconhecer a humanidade plural que somos.
Devemos estabelecer espaços e elementos organizativos que permitam a expressão dessa pluralidade e promover atitudes pessoais que tornem possível a comum união nessa pluralidade.
Os nossos valores e a cultura de cada uma das Obras serão o espaço onde será possível articular esta dimensão de pluralidade.
5.3.2.3.
Delegação. Participação. Assunção de funções
95. Trabalhemos com o
objectivo de que cada sector possa assumir todas as funções para as quais está
habilitado, desde o mais inferior até ao de maior responsabilidade.
Deixemos espaços que permitam assumir as funções e introduzam-se elementos organizativos que facilitem isso.
Velemos para que esta delegação se consolide numa assunção de funções por parte de todos quantos tornam possível o Centro.
5.3.2.4.
Descentralização ßà Centralização
96. Procedamos de modo que
a pessoa que exerce a autoridade tutele as iniciativas e as ansiedades dos
Colaboradores.
Devemos pôr em funcionamento programas de trabalho que permitam que os colaboradores possam ir crescendo na assunção de funções, que com frequência reservamos apenas a instâncias superiores.
Que o profissional possa crescer nas suas competências, que a equipa de trabalho veja aumentado o seu espaço de actuação, que as funções intermédias da autoridade tenham mais capacidade de iniciativa, que o dirigente possa ir crescendo em responsabilidade.
Que a subsidiaridade, um valor muito vinculado à tradição cristã, seja um elemento fundamental no assumir de funções nas nossas Obras.
A Ordem quer favorecer uma adequada descentralização, integrada com uma correcta centralização, segundo os princípios e valores que procuramos promover.
5.3.2.5.
Novas fórmulas jurídicas
97. O nosso ponto de
referência foi sempre o Direito Canónico. Apesar disso, e juntamente com ele, é
possível encontrar fórmulas que permitam novos modos de direcção, de delegação
e de participação.
Tradicionalmente, as nossas obras enquadraram-se na fórmula jurídica de Centro como propriedade da Ordem Hospitaleira.
Os
novos tempos em que vivemos, a dimensão que as obras vão assumindo, o
dinamismo, a evolução constante que caracterizam o sector da Saúde e os
Serviços Sociais tornam aconselhável que, sob este aspecto, não nos agarremos a
fórmulas do passado.
A Fundação, a Associação, a Instituição sem fins lucrativos ou as Organizações Não-Governamentais são fórmulas jurídicas que podem tornar-se mais adequadas, conforme as realidades, e porventura revelar-se mais convenientes.
Algumas experiências concretas vividas por algumas Obras, assim o demonstram.
Será bom estarmos atentos para discernir quais as fórmulas mais apropriadas em cada tempo e lugar.
5.3.2.6.
Trabalho em equipa
98. Se quisermos atender a pessoa e as suas necessidades, só o poderemos conseguir de forma conjunta:
§ Na direcção. Quando os máximos responsáveis pelo Centro forem capazes de organizar uma equipe de trabalho estarão em condições de poder inspirar e animar as outras partes do Centro para que eles façam o mesmo. A tentação da eficácia personalista é muito grande e o mesmo se pode dizer quanto aos efeitos em cadeia desta tentação.
§ Ao nível dos funções intermédias de comando. Também estas se devem caracterizar por uma linha de trabalho conjunto, que lhes permita assumir os problemas dos subalternos, de modo a fazê-los chegar às instâncias superiores. Do mesmo modo, deverão fazer chegar aos subalternos os planos de trabalho da direcção.
§ Nos serviços assistenciais e não assistenciais. Quando todos os que atendemos um mesmo doente ou necessitado formos capazes de trabalhar de forma conjunta, nessa altura estaremos a dar-lhe uma resposta integral.
Nos Centros mais complexos não poderemos todos integrar uma mesma equipe, mas poderemos sem dúvida formar parte de uma equipe que se sente chamada a dar uma resposta integral às necessidades do doente, e que seja integradora para todos os que a tornam possível.
5.3.3. Política de pessoal
5.3.3.1.
Critérios gerais
99. A Ordem Hospitaleira de S. João de Deus como organização:
· É essencialmente uma obra humana, na medida em que é fruto do esforço humano e se compõe de pessoas, as quais constituem o elemento fundamental da mesma.
·
Está
consciente de que as suas obras são empresas com um carácter especial, pois que, sendo uma Instituição sem fins
de lucro, tem de conjugar os seus objectivos empresariais com a sua
responsabilidade social, económica e de instituição eclesial.
· É receptiva às correntes actuais que provêm do mundo da empresa – sociologia, relações humanas, psicologia – tendo-se adaptado aos tempos actuais, introduzindo as necessárias alterações de ordem organizacional, devendo administrar as suas obras com critérios empresariais de eficácia e eficiência, mas sabendo manter uma filosofia, um estilo e uma cultura que lhe são próprios.
· Tem em conta as pessoas que trabalham nas suas obras e, por isso, propõe-se conseguir uma relação entre organização e trabalhadores que satisfaça as necessidades e os direitos de ambas as partes, estabelecendo mecanismos que facilitem a acção conjunta de todos para alcançar os seus fins e aspirações.
Por
tudo isto, torna-se necessário mostrar expressamente uma disposição sincera de
esclarecer as relações com os trabalhadores, sempre à luz da legislação em
vigor, da Doutrina Social da Igreja e salvaguardando os direitos do doente e do
necessitado, que é o fim principal das suas obras.
5.3.3.2.
Relações com os trabalhadores
100. Tendo em conta que a pessoa é o elemento fundamental de qualquer organização, deve fazer-se de modo que a gestão dos recursos humanos esteja orientada para motivar, atrair, promover e integrar os trabalhadores de forma coerente com as suas necessidades e os fins da Ordem, sempre segundo critérios de justiça social.
A acção directiva pressupõe um trabalho de gestão de pessoal, pois que sem isso é impossível levar a cabo qualquer obra ou acção. Em razão disso, a gestão dos recursos humanos exige actualmente quadros directivos com um nível adequado de competência profissional, juntamente com uma capacidade equilibrada no campo das relações humanas.
Um aspecto que se deve reforçar em todas as Obras Apostólicas da Ordem são os canais de comunicação.
Deve estabelecer-se uma comunicação estruturada, desenvolvendo canais adequados para chegar a todos os níveis da organização e a todos os funcionários e trabalhadores.
Devemos pelo menos procurar que haja canais específicos de comunicação e facilitar uma informação verdadeira e inteligível.
Outro ponto importante na Ordem e nas suas Obras deve ser o acolhimento e a inserção de toda a pessoa que nelas começa a trabalhar, assim como o seu acompanhamento nas primeiras etapas do seu trabalho.
5.3.3.3.
A acção sindical
101. O sindicalismo é uma realidade social de âmbito mundial. A Doutrina Social da Igreja, desde há muito anos, tem vindo a reconhecer o direito do trabalhador a formar associações para a defesa dos seus direitos comuns ou profissionais.
Neste sentido a Ordem reconhece e respeita o exercício desse direito.
A Doutrina Social da Igreja assume e apoia esta realidade e considera-a um elemento indispensável na vida social contemporânea, como força construtiva de ordem social e de solidariedade, capaz de conseguir não só que o trabalhador tenha mais, mas seja mais, e que o papel dos sindicatos seja não apenas um instrumento de negociação, mas também um lugar onde se exprime a personalidade dos trabalhadores: os seus serviços constituem o desenvolvimento de uma autêntica cultura do trabalho e ajudam a participar de maneira plenamente humana na vida da empresa.
A aceitação desta realidade deve levar-nos a procurar canais de informação e comunicação entre a direcção e os sindicatos com uma atitude honesta e realista, salvaguardando sempre os direitos dos doentes e dos necessitados.
5.3.3.4.
Selecção e contratação do pessoal
102. As pessoas serão seleccionadas tendo em conta a sua qualificação técnica e humana, assegurando que as suas motivações, atitudes e comportamento respeitam os princípios da Ordem.
É conveniente que cada Centro tenha algumas normas de acção claras sobre a selecção do pessoal, sendo desejável que o modo como se desenvolve o processo de selecção seja do conhecimento público: posto de trabalho vago, datas, normas, etc.
Deve-se prestar uma atenção especial aos seguintes
critérios de contratação:
· Técnicos – Para que uma pessoa seja aceite para ocupar um determinado posto de trabalho ser-lhe-á exigido que possua uma qualificação profissional certificada nos termos das leis em vigor.
Independentemente do diploma será necessário verificar se o candidato possui uma adequada capacidade e competência profissional para exercer e realizar o trabalho pretendido.
· Perfil humano – Devem valorizar-se as qualidades humanas, tais como as aptidões e atitudes para as relações humanas, o equilíbrio emocional, o sentido da responsabilidade e a capacidade para tomar decisões, bem como a vocação para os serviços de saúde ou sociais.
· Perfil ético – É necessário que as pessoas que trabalham nas Obras da Ordem promovam os princípios deontológicos da sua profissão e respeitem e promovam os princípios da Instituição.
· Dimensão religiosa – procurar-se-á fazer com que a atitude das pessoas contribua para que a atenção religiosa na Obra seja fortalecida.
5.3.3.5.
Segurança no emprego
103. Partimos do princípio de que todas as nossas actuações no campo do trabalho devem adaptar-se à legislação em vigor em cada país, sempre que esta não viole os princípios da Ordem.
Não obstante isso, embora o nosso comportamento específico neste campo seja influenciado primeiro e principalmente pelo bem da Instituição das pessoas assistidas, deverão evitar-se situações de instabilidade e desmotivação nas pessoas contratadas, oferecendo-lhes, pelo contrário, aquelas condições de segurança e estabilidade no emprego que são necessárias para um melhor desempenho do trabalho pessoal.
Também é certo que a dinâmica de funcionamento das Obras Apostólicas de saúde e sociais, com um horário de permanente abertura, obriga a uma complexa rede de suplências e substituições que torna difícil garantir uma estabilidade no emprego às pessoas que ocupam estes lugares de maneira transitória.
Não será exagerado pedir que, também neste campo, se estudem sistemas que possam pôr limites à instabilidade laboral.
5.3.3.6.
Sistema salarial
104. A justa remuneração do trabalho realizado é um problema fundamental de toda a ética social. O salário é a reivindicação mais insistência dos trabalhadores.
A
Doutrina Social da Igreja considera o salário como a verificação concreta,
embora não única, da justiça social.
Não é fácil quantificar o salário justo, pois que o mesmo é influenciado por factores como a situação económica dos países, as expectativas dos diferentes mercados de trabalho – incluindo o mundo da saúde e social –, a situação de cada Obra Apostólica, as expectativas e as necessidades de cada trabalhador, etc.
Tudo isto nos obriga a remunerar os trabalhadores com os salários possíveis, mesmo tendo consciência de que, por vezes, eles não correspondem à satisfação das suas expectativas.
No entanto, para além das remunerações existentes, devemos assumir uma atitude real de compromisso para melhorar tanto as condições económicas como as sociais dos trabalhadores, porque o seu conforto e bem-estar será sempre um factor positivo no bem-estar e no conforto do doente e do necessitado.
5.3.3.7.
Motivação
105. A motivação de uma
pessoa que trabalha dependerá do grau de satisfação das suas necessidades
básicas e da percepção dos atractivos que uma empresa ou organização oferecem
para tornar possível o seu desenvolvimento humano e profissional.
A motivação das pessoas é um meio fundamental para alcançar um dos objectivos de qualquer organização – o desenvolvimento humano e profissional dos trabalhadores.
Têm uma incidência fundamental no grau de satisfação e motivação no trabalho os sistemas de retribuição (ordenados, incentivos, gratificações, etc.), as condições de trabalho (ambiente, segurança, clima, trabalho em equipa, etc.), e os estímulos individuais (segurança, estabilidade no emprego, consideração, realização, etc.). Devem ser realizados os esforços necessários para conseguir um nível adequado destes três aspectos fundamentais que abrangem as necessidades do trabalhador.
Como meio de motivação, a Ordem reserva um interesse especial à promoção pessoal. É este o campo específico de intervenção das equipas de direcção e de maneira especial da direcção dos recursos humanos. Devemos fazer com que as pessoas possam vislumbrar uma perspectiva de futuro a nível profissional e vocacional nos nossos Centros. Para isso deverão ser facilitados os meios necessários: para uns será a formação; noutros casos, será a investigação; noutros ainda, será a docência, etc.
5.3.3.8.
Convergência de valores de quantos trabalham numa Obra Apostólica
106. Uma das características da nossa sociedade é a pluralidade; é caso para dizer que a época de imposição de uma cultura sobre outra chegou ao fim.
Desde
há bastante tempo que em muitas das nossas Obras têm sido adoptadas formas de
gestão, direcção e de trabalho assistencial que procuram agrupar e integrar
esta realidade multicultural.
É urgente continuar a seguir nesta direcção e que todos nos comprometamos neste projecto de unir esforços e culturas; devemos ser capazes de integrar os elementos culturais conjuntos nos nossos Centros.
Todo o projecto de convergência implica unificação; os valores nunca se alcançam através de imposições. Provavelmente será necessário definir valores mínimos, irrenunciáveis; mas, a partir daí, devemos trabalhar para alcançar uma cultura com valores específicos, promovidos e assumidos por todos.
Na medida em que os colaboradores dispuserem de espaços para exprimir os seus critérios, os seus valores, estarão a comprometer-se na consecução de um projecto partilhado. Também é necessário que se possam sentir responsáveis por temas, áreas e espaços em que exercem a sua autoridade delegada.
5.3.3.9. Promover uma cultura de pertença à Obra, à
Província, à Ordem
107. As actuais
investigações nas ciências administrativas descobriram a importância que as
instituições têm no desenvolvimento de uma “Cultura organizacional” que seja
coerente com a sua missão e os seus valores. Como Instituição, a Ordem Hospitaleira
tem vindo a aprofundar esta exigência desde a sua própria fundação.
Talvez no passado tenhamos mantido atitudes paternalistas ou protectoras para com os profissionais, como reflexo inconsciente de uma atitude defensiva daquilo que era nosso, da nossa cultura. Sem perder todos os valores que esta cultura possui, devemos ultrapassar as atitudes de defesa e, para isso, um meio adequado será a articulação de um departamento de recursos humanos profissionalizado, que saiba dirigir e orientar a consecução desta cultura comum.
Um elemento imprescindível deste processo é o respeito e a aplicação da legislação laboral vigente, de maneira especial relativamente à segurança no trabalho e à saúde no mundo do trabalho.
Como elemento dinamizador, temos a defesa dos direitos dos trabalhadores.
A satisfação pessoal, o prazer que deriva de uma tarefa bem realizada, a tranquilidade que se sente ao ver que os objectivos estão a ser alcançados – em suma, a serenidade, a paz interior que inunda a pessoa quando se sente integrada na sua profissão, na sua obra, e ainda a percepção que, dessas forma, está a contribuir para a construção do nosso mundo, para uma saúde de mais qualidade, para serviços sociais que funcionam melhor, são realidades que devem ser reforçados entre nós.
Devemos estar atentos para evitar que se verifiquem entre nós situações laborais que sejam um obstáculo à integração dos profissionais. É certo que, com o passar do tempo, as pessoas tendem a instalar-se e a perder a motivação inicial; por isso, a direcção tem a responsabilidade de acompanhar e animar as pessoas para que esta situação não se verifique; em casos extremos, pode ser necessário tomar medidas neste campo.
Pois bem: uma obra em que não houver algumas garantias de uma certa estabilidade nunca será um espaço adequado para convidar os Colaboradores a comprometerem-se num projecto conjunto.
A Ordem mantém o apoio e a defesa dos trabalhadores quando existir uma intervenção judicial, excepto nos casos de manifesta negligência profissional. Antes das queixas judiciárias, que infelizmente chegam aos nossos Centros, exige-se um princípio de honestidade sobre a prática institucional e um manifesto apoio às pessoas implicadas.
Do mesmo modo, se quisermos conseguir uma cultura própria nas nossas obras, será necessário ir criando formas específicas de actuação nos momentos difíceis e de tensão, que se podem verificar nas relações de trabalho; mesmo no conflito pode haver uma forma própria de encontrar a solução.
5.3.4. A política económica e
financeira
5.3.4.1.
Entidade sem fins de lucro
108. A instituição sempre se definiu como uma entidade sem fins de lucro, isto é, não tendo como objectivo a acumulação de riqueza.
Os recursos que se podem obter destinam-se ao próprio Centro para que, em qualquer momento, as sua instalações, os seus equipamentos e os seus métodos de trabalho sejam coerentes e adequados à sua situação territorial e à sua classificação.
5.3.4.2.
Carácter de beneficência social
109. A origem da Instituição está na beneficência, na generosa colaboração de muitas e variadas pessoas para que a obra cumpra a sua missão. Bom será que promovamos esta dimensão de caridade para darmos continuidade à inspiração original da Instituição.
Chegou o momento de conferir uma dimensão mais universal à nossa solidariedade.
No mundo actual as desigualdades vão-se acentuando e as diferenças são cada vez maiores.
A dimensão de beneficência social das nossas obras poderia encontrar um espaço actual na colaboração entre Obras Apostólicas, ou entre países, no campo da saúde ou das necessidades sociais.
5.3.4.3.
Equilíbrio financeiro
110. A arte da gestão é a arte de atribuir recursos a diferentes necessidades.
No
caso das nossas Obras, é a atribuição de recursos aos diferentes sectores que
torna possível o serviço.
Será necessário decidir sobre a atribuição de fundos a cada uma das partes, garantindo, no entanto, a viabilidade do Centro ou, o que é o mesmo, o seu equilíbrio financeiro.
Se, por incorrecta afectação de recursos, colocarmos a Obra Apostólica numa situação de inviabilidade económica, estaremos a pôr em perigo o futuro da mesma e de todas as pessoas que dela fazem parte.
5.3.4.4.
Transparência na gestão
111. Se o conjunto de
valores que pretendemos promover nas nossas Obras, e que dão sentido à nossa
missão, forem postos em prática, não haverá inconveniente em que os profissionais
de cada Obra, os utentes, a sociedade e a Administração Pública possam conhecer
a realidade das nossas Obras Apostólicas.
A razão disto encontra-se exactamente na transparência da nossa gestão: se os princípios forem claros e se os pretendemos põr em prática, mais uma razão para os dar a conhecer.
A quantificação numérica da Obra – actividade, receitas, despesas, resultados, investimentos, disponibilidades financeiras – são apenas uma parte de toda a sua realidade e, por conseguinte, também podem ser conhecidos.
Um modo adequado para dar a conhecer a realidade das nossas Obras, favorecer a transparência e estimular a co-responsabilidade, pode ser a elaboração do Relatório anual de actividades de cada Obra.
5.3.5. Responsabilidade social
5.3.5.1. Serviço à sociedade
como elemento justificativo das obras
112. Qualquer Instituição e obra corre o risco de se fechar em si mesma e entrar numa dinâmica de justificação da sua existência à margem da realidade.
Não
é raro encontrar instituições que, neste isolamento, acabam por projectar uma
obra que já não é necessária ou que ninguém procura.
Não deverá acontecer assim connosco, porque a razão de ser das nossas obras está no serviço que prestam e, por conseguinte, elas hão-de estar abertas à mudança e à evolução, para estarem actualizadas no seu serviço.
Nesta linha, as Constituições especificam que nos devemos sentir administradores dos bens e não seus proprietários, com a missão específica de procurar uma correcta utilização dos recursos nas Obras.
5.3.5.2.
Respeito e aplicação da legislação
113. No nosso esforço para darmos um contributo específico à sociedade, é imprescindível que o respeito e a aplicação da legislação estejam garantidos.
Se
entendermos a lei como o mínimo denominador comum que regula quantos formamos a
sociedade, somos obrigados a cumpri-la escrupulosamente. Mais ainda, na medida
das nossas possibilidades, temos de superar este mínimo denominador comum e procurar
promover os nossos próprios critérios para além do que a lei propõe.
Uma situação especial pode verificar-se no caso de a lei poder ser contrária à identidade e aos valores que a Instituição promove; neste caso, amparando-nos no pluralismo que queremos promover na nossa sociedade, recorremos à nossa objecção de consciência quanto à aplicação da lei na nossa Obra.
5.3.5.3. Compromisso de
justiça social na distribuição das riquezas
114. Não é fácil na nova sociedade garantir uma distribuição equitativa dos recursos.
Os
grupos de pressão, por um lado, e as grandes desigualdades, por outro, podem
inclinar a balança de forma pouco equitativa.
Será necessário fazer um esforço de gestão e de educação segundo os valores para que nem sempre se imponha a lei do mais forte.
Há que considerar as particularidades e ter em conta as diferentes realidades, mas respeitando sempre o princípio de uma distribuição justa dos recursos.
De maneira especial devemos estar atentos à dimensão universal da nossa vida e das nossas Obras. Temos de admitir que há graves injustiças na distribuição mundial dos re- cursos; não nos tornemos também nós partícipes desta distribuição injusta. Procuremos trabalhar por uma acção solidária, partindo de uma missão que é universal e de uma visão global dos problemas.
Este deve ser um espaço para aplicar a Doutrina Social da Igreja e, na medida em que a pudermos desenvolver, a promovermos, estaremos a contribuir para que, de uma maneira prática, a Doutrina social se difunda como um compêndio de valores cristãos na nossa sociedade.
5.3.5.4.
Função de denúncia nas situações que o exigirem
115. Levemos a nossa reflexão e a nossa denúncia àquelas situações que virmos de forma clara que são deficientes.
Não nos limitemos à reclamação: além de assinalar a deficiência, apresentemos sugestões e orientações.
Se formos capazes de dar soluções concretas e, além disso, se conseguirmos levá-las à prática, a nossa função de denúncia terá alcançado a sua máxima expressão.
5.3.6. Presença da sociedade na Obra Apostólica
5.3.6.1.
Os utentes. As Associações de utentes e de familiares
116. Tradicionalmente, temos designado o utente dos serviços de saúde e de carácter social como doente, mas chegou o momento em que ele deseja desempenhar um papel activo e bom será que assuma este papel.
Dois tipos de associações de utentes se apresentam
nos nossos dias:
§ As associações genéricas de utentes, com um conteúdo reivindicativo importante e frequentemente com uma certa predisposição para recorrer às autoridades judiciárias.
§ As associações específicas, que surgem ligadas a uma determinada doença, tanto manifestações crónicas, como processos muito graves.
Ambas devem ter lugar nas nossas Obras.
Quanto
às primeiras, é muito provável que se revelem com a apresentação de alguma
queixa ou reclamação; a nós compete garantir-lhes espaço de expressão no qual
possam sentir-se interlocutores sociais válidos para que, de forma constante,
possam colaborar com a nossa maneira de trabalhar e nós possamos torná-los
partícipes do trabalho que estamos a realizar.
Relativamente às segundas, deverão encontrar nas nossas Obras um apoio privilegiado, de maneira especial no início da sua actividade.
Na nossa dinâmica social, somente através de agrupamentos de pessoas será possível alcançar determinadas metas e, por vezes, é difícil constituir esses grupos.
A Obra pode sempre funcionar como plataforma para superar essas dificuldades iniciais.
Em ambos os casos, o diálogo e uma postura aberta permitem que as partes – a Instituição e as Associações – sejam conhecedoras da situação que se vive, das possibilidades, das limitações e, inclusive, dos erros.
Infelizmente, não conseguiremos evitar a dinâmica da queixa e da reclamação judicial – em muitos casos com fins lucrativos.
Podemos, no entanto, desenvolver formas diferentes de relacionamento que tenham por base a confiança mútua.
A organização de serviços de atenção ao utente, através de diferentes formas, para que ele possa exprimir a sua opinião, é um meio muito adequado para orientar a presença do cidadão nas nossas Obras.
5.3.6.2.
Os trabalhadores
117. Os trabalhadores têm órgãos de representação que estão ao abrigo da lei e é a partir deles que se deverá articular a relação laboral colaboradores-Instituição.
Assim, na medida em que consideramos que a Instituição é uma realidade construída e comparticipada por todos, bom será que se articulem modos, formas e estilos de ligação à Ordem que, sem esquecer quanto acima foi referido, dêem lugar a este novo projecto que queremos levar a cabo em cada obra de S. João de Deus.
A vinculação estará para alguns no ponto de referência à relação laboral, de forma exclusiva.
Estes encontrarão o meio para essa vinculação, no quadro da referência legislativa.
Outros sentir-se-ão motivados por uma resposta vocacional, que ultrapassa a resposta profissional.
Será bom que se estabeleçam vias formais e informais para que possam fazer crescer o seu compromisso solidário com o doente e o necessitado.
Por último alguns verão a sua presença na Obra como expressão do seu compromisso de fé.
Também estes deverão dispor do seu espaço para poderem manifestar em grupo aquilo que os motiva na sua vida de serviço ao doente e ao necessitado e para estarem presentes numa obra de S. João de Deus.
Com excepção do primeiro caso, que será determinado pelas normas legais, as outras situações serão uma realidade a construir em cada Centro, pois será a forma mais apropriada para manifestar a ligação que torna possível as obras de S. João de Deus.
5.3.6.3.
Os benfeitores
118. Foram os benfeitores
que tornaram possível ao nosso Fundador levar para a frente a sua obra.
Eles
foram capazes de ser uma retaguarda de apoio para um sem número de compromissos
que João de Deus ia assumindo no seu serviço aos doentes e aos necessitados.
Ao longo dos séculos, eles continuaram a apoiar as nossas obras, em alguns países mais do que noutros, mas até à articulação do Estado do Bem-estar, a maioria das nossas obras viveu de doações generosas de pessoas que depositaram a sua confiança na Ordem Hospitaleira e no serviço que ela prestava à pessoa que sofre.
Hoje a maioria das Obras não está dependente das ofertas dos benfeitores, como acontecia no passado.
No entanto, estas continuam a ser fundamentais no que se refere à solidariedade e à caridade.
O fundamento persiste e é o de um ser humano que decide ser solidário com outro ser humano e faz isso através da Ordem Hospitaleira.
A forma poderá mudar: de facto, já mudou e continuará a mudar; cabe a nós, porém, a responsabilidade de tornar efectiva esta solidariedade da maneira mais justa que pudermos e, se possível, aumentá-la.
Chegou o momento de, tendo em vista uma maior eficácia da solidariedade, lhe darmos um carácter mais colectivo, que nos permita ajudar mais onde for mais necessário.
Este é um tema aberto à reflexão, ao debate e à criatividade na busca de novas formas de obtenção de fundos e de novas formas de tornar mais eficaz a acção solidária.
Trata-se de um tema muito arreigado na cultura de muitas obras, e inclusive Províncias, e deverá ser um compromisso de todos fazer com se continue a promovê-lo.
Provavelmente, os novos meios de comunicação serão um instrumento a ter em consideração para este trabalho, sobretudo com o objectivo de fortalecer os elos de ligação destas pessoas à Obra.
5.3.6.4.
Os voluntários
119. A Ordem soube sempre mover-se no mundo da colaboração altruísta, nalguns casos como expressão de solidariedade e, noutros, como expressão de caridade cristã.
O nosso Fundador pôde levar por diante a sua obra, graças à generosa colaboração de muitas pessoas; umas, através do seu apoio económico (benfeitores); outras, mediante o seu trabalho gratuito e o seu esforço (voluntários).
A Ordem soube dar uma resposta aos novos movimentos do voluntariado; concretamente, nalguns países foi mesmo pioneira na incorporação de voluntários nas nossas Obras.
Apesar disso, deveremos continuamente fazer esforços para nos adaptarmos e actualizarmos, para não ficarmos parados em ideias e estruturas do passado.
Cada Obra é diferente e deveria promover a sua criatividade e originalidade no seu voluntariado. A diversidade, neste caso, seria uma manifestação de enriquecimento.
O processo de orientação e selecção dos candidatos, o perfil do voluntário, a sua missão na Obra, o tempo de dedicação, a formação de que necessita, etc., são temas a definir na Ordem e em cada Centro.
\De igual modo, talvez tenha chegado o momento de as Associações de Voluntários e os seus membros terem a possibilidade de canalizar as suas percepções até aos órgãos de governo da Obra Apostólica.
Eles podem captar uma realidade diferente da que nós nos apercebemos em relação à Obra; bom seria que se pudesse conhecer a visão que eles têm, através de um meio apropriado.
5.3.6.5.
A Igreja local
120. Somos uma Instituição isenta do Ordinário do lugar; este é um ponto de partida que deveremos ter em conta, mas também é verdade que se a Ordem quiser dar um contributo significativo no próximo século, terá de o fazer no âmbito de um trabalho coordenado e conjunto com a Igreja.
Dado que a Igreja é o povo de Deus, e todos somos chamados a formar este povo, teremos que reflectir sobre a maneira como tornamos possível esta acção de povo de Deus. O lugar onde mais facilmente se pode fazer esta articulação será a partir da Diocese e da comunidade paroquial.
Talvez ainda falte muito para que possamos cooperar no mesmo projecto pastores, religiosos e leigos.
Não se trata de renunciar à própria identidade, nem a projectos pastorais; cada um, no seu lugar, deverá trabalhar para construir um projecto pastoral de conjunto; caso contrário, ou não será de conjunto, ou não será projecto.
5.3.6.6.
A Administração Pública
121. As nossas obras têm uma
orientação pública na sua actividade e, em muitos lugares, conseguiu-se que
elas ficassem integradas nas estruturas públicas de saúde ou de serviços
sociais.
Esta situação implica que mantenhamos um nível de relações com a Administração Pública tão flexível que nos permita estar informados sobre a realidade do presente, os projectos e planos para o futuro, e podermos informar sobre a nossa situação e a nossa projecção.
É necessário
continuar a desenvolver esta linha de relações e de ligação com a Administração
Pública que, da nossa parte, se baseará na honestidade, clareza e
transparência.
§ Honestidade como expressão de coerência com os princípios que defendemos;
§ clareza no nosso posicionamento e nas nossas pretensões;
§ por fim, transparência nos nossos critérios no momento de aplicar os recursos que recebemos.
Em tudo o que se refere às relações institucionais, a Ordem deve reflectir sobre o papel que lhe compete desempenhar.
Existem dois perigos extremos: por um lado, ficarmos apegados a estas relações e, pela sua dinâmica, deixar que, com o tempo, se dilua a essência da nossa identidade; por outro lado, afastarmo-nos delas e deixar que sejam a Obra Apostólica e o seu projecto assistencial que se vão diluindo na desconexão com a realidade.
Uma coisa é evidente: assumir esta função de relações institucionais exige uma formação profissional, humana e religiosa suficientemente ampla, pois, caso contrário, a nossa presença será contraproducente.
Uma vez mais se torna evidente que, se quisermos ter algo a dizer, devemos dizê-lo com uma linguagem adequada à da nossa sociedade.
5.3.7. A Avaliação
122. Para sermos fiéis à
missão, para que a mesma se vá actualizando e recriando, é imprescindível que,
de forma periódica, vejamos em que medida estamos a pôr em prática os nossos
planos de acção.
Devemos ver como estamos a aplicar na gestão, na direcção e na assistência, os princípios filosóficos da Ordem e os seus critérios gerais.
5.3.7.1.
Atenção ao sinais dos tempos
123.A nossa sociedade é uma realidade muito
dinâmica. A ciência está em constante evolução e todos os dias aparecem novos
métodos de trabalho, novas técnicas profissionais e novos equipamentos técnicos.
Uma mensagem, um
princípio filosófico são actuais na medida em que se transmitem através de
meios, métodos e técnicas actualizadas; de outra forma, a nossa proposta pode
reduzir-se a um discurso inútil.
Neste processo, será necessário avaliar a idoneidade dos meios que a sociedade nos proporciona, pois pode acontecer que, ao tentarmos alcançar uma maior eficácia, nos sirvamos de instrumentos contrários à filosofia da Instituição.
5.3.7.2.
Resposta às necessidade do homem e da sociedade
124. Nesta avaliação constante da sociedade, as pessoas também estão a mudar, e não somos capazes de distinguir se é a mudança da sociedade que arrasta as pessoas para a mudança, ou se é a mudança das pessoas que provoca a mudança na sociedade.
O certo é que nesta mudança conjunta da sociedade e do homem, vão surgindo:
· novas doenças, que é necessário curar;
· novas manifestações na maneira como as pessoas adoecem, que exigem de nós novos métodos de prestar assistência;
· novos problemas familiares: temos de saber ajudar, apoiar, iluminar, acompanhar;
· novos necessitados que exigem criatividade e solidariedade da nossa parte, se quisermos dar-lhes respostas coerentes;
· novas formas de isolamento, que nos interpelam para encontrar novas formas de resposta solidária a nível institucional.
Responder às necessidades das pessoas, com meios e
formas actuais, mantendo o estilo e os valores da Ordem, é ser fiéis à Nova
Hospitalidade, como síntese do nosso projecto apostólico.
___________________________________________________________________________________
Para a
reflexão:
1)
Identifica os sucessos e as dificuldades «na aplicação a situações concretas», no confronto com a realidade
das Obras Apostólicas e das nossas Comunidades, nos âmbitos seguintes:
§
Assistência
integral e direitos do doente
§
Problemas
específicos da nossa acção assistencial
§
Gestão e
direcção.
2)
Define
quais as prioridades para a Ordem, a partir do diagnóstico anterior, nos
âmbitos seguintes:
§
Assistência
integral e direitos do doente
§
Problemas
específicos da nossa acção assistencial
§
Gestão e
direcção.
6 |
FORMAÇÃO, DOCÊNCIA E INVESTIGAÇÃO |
6.1. Formação
6.1.1. Formação técnica, humana e carismática
125. Além de quanto se disse noutros capítulos do presente documento,
queremos evidenciar aqui alguns aspectos específicos da responsabilidade na
formação actualizada dos membros da Ordem e dos seus Colaboradores.
Não
vamos insistir na necessidade da formação humana, no sentido de orientar para o
estímulo do autoconhecimento e do aprofundamento de tudo quanto se relaciona
com a pessoa e a sociedade, imprescindível para podermos ser agentes de humanização
nas obras da Ordem.
Algumas características do nosso tempo são
determinadas pela velocidade do progresso das ciências, em geral, e da biomedicina
em particular:
§
a velocidade e
facilidade das comunicações;
§
a globalização dos
problemas: a mentalidade técnico-científica na focalização da
realidade e concepção do homem – reduccionismo científico;
§
os fundamentalismos
religiosos – reducionismo espiritualista;
§ a
constatação de que o único critério ético
que podemos considerar como globalmente partilhado, pelo menos no plano
teórico, é o do respeito pela
dignidade da pessoa, o que implica que ela não seja instrumentalizada
como meio para um fim, por mais elevado que este seja, ou possa parecer.
Este facto, que não é
novo, adquire uma faceta de importância particular nas relações dos
profissionais da saúde com a pessoa doente.
De facto, temos vindo a assistir, desde os anos
setenta, à mais profunda transformação da relação médico-doente que se produziu
nos últimos séculos. O fulcro desta transformação foi a tomada de consciência
de que o doente capaz deve ser reconhecido como agente moral autónomo nas
decisões que afectam a saúde.
Informar correctamente o doente passa para
primeiro plano. O papel do médico na assistência perdeu também, pelo menos no
mundo ocidental, o seu papel único e preponderante.
Hoje temos de falar de relação entre
§
a equipa de assistência,
§
o doente
§
e o ambiente social que o rodeia.
No que respeita ao progresso humano, o
carácter ambíguo de certas tecnologias, cuja aplicação mais correcta não impede
a manifestação de tremendos conflitos entre valores vitais e valores espirituais.
A importância cada vez maior dos
enfermeiros na prestação de cuidados, e dos técnicos de laboratório nos
processos de diagnóstico, exigem uma formação mais rigorosa do que no passado.
O nível de assistência integral quer nos
hospitais, quer nos serviços de cuidados primários ou nos Estabelecimentos socio-sanitários,
depende notavelmente do grau de formação dos trabalhadores do mundo da saúde.
A formação técnica e profissional, por um
lado e, por outro, a formação humanista e ética devem caminhar em paralelo ao
longo da formação contínua que exigirá por vezes que o fiel da balança se
incline para o primeiro aspecto e, outras vezes, terá que enfatizar o segundo,
numa actualização de conhecimentos que tornem possível a correcta assistência
sanitária integral, segundo os critérios actuais.
Cada Obra Apostólica deve empenhar-se em
promover programas de formação a todos os níveis, prevendo para os mesmos as adequadas dotações orçamentais.
Enquanto a actualização dos conhecimentos
científicos não requererá, em geral, um esforço excessivo de motivação, já parece
necessário um esforço suplementar de motivação para a formação na filosofia e
nos critérios carismáticos da Ordem Hospitaleira.
Esta formação deve ser entendida como uma
excelente ocasião para fomentar o sentido de pertença e como um instrumento para
actualizar os valores que determinam a cultura e a identidade da Ordem, a qual
deve ser promovida pela direcção das Obras Apostólicas e plenamente integrada
no plano de formação da Obra.
É importante que, na medida do possível,
alguém possa estar a par dos programas e das experiências realizadas numa ou
outra região do globo, para ver a possibilidade de as adaptar ao próprio lugar
e Obra.
Dado que são raros os formadores que
conseguem compreender os problemas do mundo da saúde e, ao mesmo tempo, possuir
um domínio pedagógico nos âmbitos do pensamento contemporâneo filosófico,
teológico, pastoral e espiritual, deverão ser feitos esforços para constituir
equipas e reforçar as qualidades de várias pessoas que trabalham num programa
comum.
Esse programa deverá ser realista, eficaz
e eficiente.
As Comissão de Ética hospitaleiras podem
perfeitamente desempenhar esta função.
Neste tempo em que a Igreja vive com
particular intensidade a necessidade do «diálogo
inter-religioso», para que, na sequência do Concílio Vaticano II, se «reconheçam, conservem e promovam os
valores espirituais e morais existentes noutras religiões, assim como os
valores socio-culturais em ordem a colaborar na busca de um mundo de paz,
liberdade, justiça e dos valores morais»,(1) torna-se
imprescindível que, além da pertinente formação profissional e técnica, se
procure a mais sólida formação no âmbito do carisma da Ordem, na filosofia e na
teologia, especialmente centrada na pessoa e no mistério de Cristo Jesus.
As grandes correntes do pensamento
filosófico(2) e teológico deverão constituir os pilares fundamentais
da formação, na qual o carisma da Ordem e o seu conhecimento profundo deverão
inspirar as atitudes e os comportamentos a favor dos pobres e dos necessitados.
________________________________
(1) CONCÍLIO
VATICANO II, Declaração Nostra
Ætate, 2 ss.
(2) Cfr. JOÃO PAULO II, Encíclica Fé e Razão, 1999, Capítulo I.
Desta forma estaremos em condições de entabular em
quatro frentes o diálogo necessário num mundo caracterizado pelo pluralismo
religioso:(3)
·
Diálogo da vida, no qual as pessoas se
esforçam por viver num espírito de abertura e de boa vizinhança, partilhando as
suas alegrias e sofrimentos, os seus problemas e as preocupações humanas;
·
Diálogo da acção, no qual os cristãos e
as outras pessoas colaboram tendo em vista o desenvolvimento integral e a liberdade
das pessoas;
·
Diálogo da experiência
religiosa, no qual as pessoas, enraizadas nas suas próprias tradições religiosas,
partilham as suas riquezas espirituais, por exemplo, no que se refere à oração
e à contemplação, à fé e aos caminhos da procura de Deus e do Absoluto;
·
Diálogo do intercâmbio
teológico, no qual os peritos procuram compreender mais profundamente as suas
respectivas heranças religiosas e apreciam os seus respectivos valores espirituais.
__________________________________
(3) PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O
DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO e CONGREGAÇÃO PARA A EVANGELIZAÇÃO DOS POVOS: Diálogo
e Anúncio, BCDR (1991), 210-250.
6.1.2. As Comissões de Ética como instrumento de formação
126. Embora este tema já
tenha sido abordado no Capítulo V deste documento, vamos retomá-lo aqui na
perspectiva de investigação e formação próprias destas Comissões.
No campo da clínica, a palavra bioética
esteve ligada ao conceito de diálogo interdisciplinar, como metodologia de
trabalho e, desde 1978, ligou-se aos princípios comuns da bioética
contemporânea:
·
autonomia,
·
benefício/não
nocividade
·
e justiça.
Estes princípios, partindo do modelo
antropológico do personalismo de inspiração cristã, são a tradução do princípio do
respeito pela dignidade da pessoa, do serviço ao bem do doente integralmente
considerado e da solidariedade.
A necessidade de
assegurar a protecção dos sujeitos humanos que participam num ensaio ou
investigação clínicos, e a relevância e correcção científica do protocolo de
investigação, deram origem à institucionalização de comissões competentes para
desempenhar tais tarefas.
São as Comissões
de Ética de Investigação Clínica e as Comissões de Bioética.
Os nomes equivalentes
na literatura anglo-saxónica são: Institutional
Review Boards e Institutional Ethics
Committees. Estes últimos também são designados por Clinical Ethics Committees.
As Comissões de Ética de
Investigação Clínica apresentam estruturas, funcionamento e
reconhecimento legal diferentes, segundo os países. No entanto, todos eles
hão-de respeitar e velar pelo cumprimento das denominadas Normas de Boa Prática Clínica.
As decisões destas
Comissões são legalmente vinculativas. Os membros da Comissão de Ética de
Investigação Clínica devem estar qualificados para rever projectos de
investigação, verificando em primeiro lugar se existem dados científicos
suficientes, bem como ensaios farmacológicos e toxicológicos sobre animais que
garantam que os riscos que poderão advir para as pessoas na pesquisa em questão sejam admissíveis, e ainda que as
pessoas tenham sido devidamente informadas e participem livremente no ensaio.
Há ainda outros aspectos a considerar que
são:
§
ponderar se
o problema que se pretende investigar é importante ou banal;
§
se o plano
experimental proposto é adequado aos objectivos previstos;
§
se existe um
seguro que cubra os eventuais danos e prejuízos que, como consequência do
ensaio clínico, possam advir à pessoa em que aquele tiver de realizar-se.
Não há dúvida de que a participação nestas
Comissões tem um valor pedagógico e enriquecedor.
De qualquer modo, onde o diálogo bioético
nos hospitais adquire uma importante função pedagógica é na discussão de casos
concretos nas Comissões de Ética assistencial.
Tais Comissões são em si mesmas
formativas, pela sua composição interdisciplinar, pela metodologia de
informação-formação, pelo respeito recíproco, pela importância dos casos a
discutir, pela necessidade de encontrar soluções para os conflitos de valores
que se apresentam, e pela necessidade de regulamentar, de alguma forma, a
actuação em casos semelhantes.
A função docente é muito importante. Em
primeiro lugar, é o «locus» de
formação dos próprios membros da Comissão. Depois, mas sempre importante, é a
programação da docência da bioética na Província, nas Obras Apostólicas e a sua
implementação.
O diálogo interdisciplinar é necessário
como metodologia de trabalho. Geralmente, a tomada de decisões deverá
verificar-se mediante consenso ético e não meramente estratégico. Os
consultores de casos concretos – médicos, enfermeiros, psicólogos... – deverão
ser membros ad hoc nas deliberações
da Comissão, para que as decisões tenham força vinculativa moral.
A composição dos membros da Comissão pode
variar segundo o tipo de hospital ou Obra residencial ou sócio-sanitária.
Em última análise, as Comissões de Ética
assistencial representam uma coisa tão antiga como a nova consulta colegial e
algo tão relativamente recente como o reconhecimento da equipa de saúde e da
medicina orientada para o doente, considerado como agente moral autónomo que
não perde os seus direitos pelo facto de estar internado num hospital.
As Comissões que funcionam correctamente
podem ser instrumentos eficazes para definir a «lex artis» do hospital, com as respectivas implicações jurídicas.
A Comissão deverá estabelecer qual é o
sistema de valores de referência em caso de conflito:
§
inspiração
cristã,
§
direitos
humanos,
§
códigos
deontológicos profissionais, de âmbito nacional ou internacional, etc.
A Comissão de Ética assistencial deverá
passar no teste de coerência das suas decisões.
É imprescindível
assegurar a funcionalidade da Comissão através das diversas medidas entre as
quais assume um relevo particular a Comissão para a resolução de casos
urgentes.
Chegados a este ponto,
desejaríamos esclarecer alguns aspectos.
Julgamos ser
importante, em primeiro lugar, analisar os pré-requisitos necessários para
abordar correctamente a decisão ética:
a)
o relatório clínico correcto;
b)
a competência profissional para a discussão científica do caso clínico;
c)
o controlo de qualidade.
Depois de se ter
definido o problema clínico e as alternativas possíveis de tratamento, passa-se
a considerar as dimensões éticas referentes a problemas relacionados com a
qualidade de vida, sob a perspectiva profissional e sob a perspectiva do doente
e da sua família, cujos sistemas de valores deverão ser respeitados.
Os factores não
clínicos, especialmente os económico-sociais, deverão merecer uma atenção
especial numa Medicina que se preze de ser integral.
O consentimento por
parte de terceiros, por incapacidade do doente, apresenta problemas muito
difíceis de resolver em neo-natologia, psiquiatria, doentes em coma, deficientes
mentais, etc.
Nestes casos, em que
frequentemente se verificam situações-limite, revela-se em pleno a utilidade da
existência da Comissão de Ética assistencial ao serviço de uma Medicina de
qualidade científico-técnica e humana.
A formação para a resolução de
conflitos na investigação e na clínica requer como elementos fundamentais:
1)
a capacidade e competência profissional para compreender o problema
apresentado na perspectiva em que a pessoa trabalha;
2)
que se tenha reflectido sobre a própria atitude ética e um mínimo de
fundamentação racional da mesma. Aqui é necessário distinguir o facto em si
mesmo (atitude coerente na vida entre o ser e o agir), e a possibilidade de
conceptualização. Esta deve basear-se num programa de formação antropológica e
ética, filosófica e/ou teológica;
3)
a metodologia para a resolução de conflitos num clima de diálogo que não
exclui a confrontação.
Referimo-nos aqui
apenas a este último aspecto. Não há dúvida de que os chamados princípios
bioéticos, antes enunciados, são instrumentos pedagógicos que se revelam úteis
nos diálogos das Comissões de Ética assistencial.
A resolução de
problemas pode focalizar-se partindo da discussão de princípios que entram em
conflito entre si e a sua hierarquia num caso concreto (por exemplo, prioridade
do princípio de autonomia ou do princípio de benefício/ajuda), ou então da
análise casuística. Consideramos que este é o mais adequado na discussão de
casos clínicos.
6.2. A Docência
6.2.1. A docência, uma constante na
Ordem
127.
A
docência na Ordem começa com o próprio Fundador, S. João de Deus, que, antes de ensinar se deixou ensinar:
aconteceu em Guadalupe, definida no ditado que se conhece desde finais do séc.
XV, em toda a Espanha: «nem que tivesses
andado toda a tua vida a praticar anatomia em Guadalupe...».
«Guadalupe dá-lhe uma visão ao mesmo tempo científica e
caritativa; com o apoio da «Escola» de Medicina, cuja qualidade os mais
recentes historiadores consideram digna de grande louvor... Viu equipamentos
desconhecidos em qualquer outro hospital espanhol e participou nas aulas teóricas e práticas dadas aos
principiantes».(4)
O primeiro seguidor
de S. João de Deus, Antão Martim, teve uma sensibilidade especial para a
docência. Na Madrid dos Áustrias, por volta de 1553, tem a ideia de criar uma «Escola de Cirurgiões menores» para o
seu hospital do «Amor de Deus».
Levá-la-ia à prática o seu sucessor, Pedro Delgado.(5)
«Esta Escola de Cirurgia obteve um grande êxito e cedo
acorreram a ela, pedindo para fazer experiência nas suas clínicas e receber
ensinamentos..., pessoas que desejavam
preparar-se para serem examinadas perante o Tribunal de protomédicos, como
cirurgiões românticos. O Hospital da Praça de Antão Martim foi portanto o
primeiro em Madrid que teve condições de docência e onde foram implantadas
especialidades médicas».(6)
À medida que a Ordem começa a expandir-se, primeiro pela Espanha e, logo depois, pela Europa e pela América Latina, até chegar aos cinco continentes, não abandonou a sua vocação para a pedagogia hospitaleira.
É verdade que o seu ensino foi predominantemente verbal, mais do que por escrito, com uma linguagem evidentemente prática, acessível a todos.
____________________________________
(4) JAVIERRE, José Maria, Juan de Dios, loco en Granada,
Sigueme, Salamanca, 1996
(5) PLUMED
MORENO, Calixto, Jornadas Internacionales de Enfermeria de San Juan de Dios,
1999.
(6) ALVAREZ SIERRA, José, Antón Martin y el Madrid de los Áustrias,
1961.
Elaborou, no entanto, importantes manuais para várias especialidades.
A Ordem plasmou esta preocupação docente em diversas Escolas com vários níveis de formação que continua a fomentar e a implantar.
6.2.2. A docência, um imperativo nos dias de hoje
128. Em 1956 a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o hospital, entre outras coisas, como um «centro de formação de pessoal médico sanitário e de investigação».
A
partir dessa data, todos os países, na sua legislação para a saúde contemplam a
docência como um imperativo: não existe um modelo assistencial que não lhe
dedique um amplo espaço.
Ensinar o que se faz no dia-a-dia e transmiti-lo à comunidade – através de qualquer um dos mais diversos meios de que dispomos – é uma tarefa semelhante a curar, prevenir ou investigar.
A docência transforma-se todos os dias em garantia de qualidade na estrutura assistencial.
Vai-se até ao ponto de não existirmos com a vitalidade que os outros exigem, se não mostrarmos à sociedade o que fazemos sob a forma de ensino.
Daí decorre o compromisso de contemplar nos orçamentos anuais das Obras Apostólicas uma verba para a docência, e a vontade de fazer acordos com Entidades públicas e/ou particulares numa abertura a uma «vocação docente» que se mantém desde as origens da Instituição.
Numa
dimensão de futuro, a docência é uma responsabilidade de toda a Obra Apostólica.
§ É uma credencial que justifica a nossa capacidade de estarmos presentes na sociedade.
§ É um elemento básico da qualidade assistencial que exige esforço.
§ É um compromisso de ensinar a todos a pensar e a fazer as coisas de uma maneira nova, para o bem da pessoa que sofre.
6.3 A Investigação
6.3.1. A Comunicação na perspectiva da Ordem
129. A actividade assistencial, técnica e científica da Ordem Hospitaleira produziu ao longo destes cinco séculos variadas e preciosas contribuições em benefício da saúde e da vida.
O próprio S. João de Deus iniciou a sua «aventura hospitaleira» ao ir formar-se a Baeza e Guadalupe, aconselhado pelo Mestre João de Ávila.
Como alguns sustentam, o padre Mestre, de reconhecida curiosidade científica, conhecia muito bem a categoria dos hospitais dirigidos pelos frades Jerónimos, em Guadalupe, e mandou para lá João de Deus como peregrino e aprendiz hospitalar, para que visse como funcionava um hospital.(7)
Depois de regressar a Granada pôs em prática o seu projecto de serviço aos doentes.
Pelo contributo que deu à assistência, organizando dois hospitais, segundo métodos avançados para a época, a história reconhece-lhe o título de Fundador do hospital moderno.
Durante o processo
de expansão da dinâmica herança de S. João de Deus através do tempo e do
espaço, Irmãos e Colaboradores hospitaleiros foram aperfeiçoando os seus
métodos, acumulando experiência e aumentando os seus conhecimentos.
«Pode dizer-se, em termos
gerais, que a evolução da Ordem reflectiu a evolução da psiquiatria e da neurologia».(8)
Foram os Irmãos Hospitaleiros que fundaram o primeiro hospital para epilépticos em toda a Europa.(9)
_______________________________
(7) JAVIERRE, Ibidem, p. 413
(8) RUMBAUD,
Ruben D., John of God: his place in the
history of Psychiatry and Medicine, 1978, edição bilingue
(Inglês/Espanhol). p. 115
(9) ALVAREZ SIERRA, José, Ifluencia de San Juan de Dios y
de su Orden en el progreso de la Medicina y de la Cirugia, Talleres
Arges, Madrid, 1950, p. 148.
Igualmente, partindo dos primeiros hospitais, completavam o seu trabalho de cura com actividades formativas: desde o séc. XVI que há notícia das primeiras escolas para cirurgiões fundadas em hospitais da Ordem.(10)
Tudo isto, para além de outras escolas, de química, de farmácia, de medicina e de enfermagem, algumas das quais foram criadas em épocas mais recentes e ainda continuam a funcionar.
Por outro lado,
houve Irmãos muito conhecidos e outros menos que foram médicos, cirurgiões,
dentistas, enfermeiros, alguns deles verdadeiros exemplos da relação entre
Carisma da hospitalidade e espírito científico e investigador.(11)
__________________________________
(10) RUSSOTTO, Gabriele OH., San Givanni di Dio e il suo Ordine
Ospedaliero, Roma, 1969, volume segundo, p. 124.
(11) Na obra citada de
Gabriel Russotto há 73 páginas de nomes com uma ampla documentação. Entre as
figuras mais conhecidas de Médicos e Cirurgiões destacam-se: Ir. Gabriel Ferrara (Itália), Ir. Alonso Pabón (Espanha), Ir. Bernardo Fyrtram (Áustria), Ir. José Lopez de la Madera (Espanha), Pe. Constantino Scholz (Silésia,
Áustria), Ir. Ambrósio Guivebille
(Áustria), Pe. Lázaro Nobel (Alemanha),
Ir. Matias del Carmen Verdugo
(Chile), Ir. Miguel Isla (Colômbia), Pe. Probo Martini (Alemanha, Rep.
Checa, Silésia), Pe. Bertrando Schroeder
(Áustria), Pe. Norberto Boccius (Hungria,
Rep. Checa), Pe. Manuel Chaparro
(Chile), Pe. Ludovico Perzima
(Polónia), Ir. Eliseu Talochon
(França), Pe. Odilone Wolf (Rep.
Checa), Ir. Justo Sarmiento (América), Pe. Fausto Gradischeg (Áustria), Pe. Juan Luís Portalupi (Itália), Pe. Benedetto Nappi (Itália), Pe. Celestino Opitz (Rep. Checa), Pe. Prosdocimo Salerio (Itália), Pe. Celso Broglio (Itália), Pe. João de Deus Sobel (Silésia), Pe. Francisco de Sales Whitaker
(Irlanda e Inglaterra). A lista termina com S. Ricardo Pampuri.
Entre os Farmacêuticos e Botânicos mais famosos da história da Ordem,
recordamos o Pe. Agustin Stromayer
(Rep. Checa), Pe. Inocêncio Monguzzi
(Itália), Pe. Ottavio Ferrario
(Itália), Pe. Gallicanio Bertazzi
(Itália), Pe. Anastácio Peliccia
(Itália) e Pe. António Matias dell’Orto
(Itália).
Entre os Dentistas, os mais famosos são dois, ambos italianos: Ir. João de Deus Pelizzoni e Pe. Giovani Battista Orsenigo, que foi
muito conhecido em Roma.
A Ordem Hospitaleira é uma instituição com vários séculos de presença no mundo da saúde e dos serviços sociais.
Por isso, pode e deve favorecer a busca contínua de melhorias na assistência através da promoção da investigação.
Sem renunciar a
campo algum da investigação, talvez os mais específicos sejam:
§ a assistência integral,
§ a humanização,
§ a bioética nas suas vertentes clínicas, epidemiológicas, de gestão e docência, tanto em medicina como na enfermagem,
§ a pastoral,
· o diálogo inter-religioso no encontro de serviços aos pobres e necessitados,
§ os valores da instituição em geral, etc.
O aprofundamento criativo deste documento, a qualidade dos recursos humanos disponíveis em cada situação e a motivação dos colaboradores em fortalecer a dimensão inovadora da Ordem Hospitaleira, que tem sido uma marca característica da mesma através da História, deverão marcar as linhas de trabalho de colaboração que pareçam mais oportunas.
____________________________________
Na Colômbia, o Ir. Miguel de Isla (séc. XVIII) foi médico, catedrático de Medicina
e restaurador da Faculdade de Medicina da Universidade do Rosário. No Chile, o Ir. Manuel Chaparro introduziu o método
de inoculação (vacina), que nunca tinha sido utilizado antes e ainda era
ignorado na Europa – para controlar uma devastadora epidemia de varíola, que
grassou entre 1765 e 1772.
Vale a pena destacar por fim que, em 1821, o
Ir. Farmacêutico Ottavio Ferrario descobriu o iodoformo, embora a descoberta
seja atribuída a um francês, que fez a mesma descoberta naquele ano. Em 1822 o
Ir. Ferrario foi a primeira pessoa na Itália que extraiu a quinina, isolando os
constituintes activos da quina.
6.3.2. A promoção da investigação na perspectiva do
Terceiro Milénio
130. O progresso constante da ciência e o compromisso dos profissionais da saúde, não apenas na sua actividade de carácter assistencial, mas também nos seus esforços de carácter experimental, tornam hoje indispensável esta promoção adequada da investigação.
Não
existe progresso da medicina que não tenha sido precedido por uma apropriada e
notável actividade de investigação (teórica,
de laboratório, em animais e no homem).
Por
isso, a assistência integral ao doente e ao necessitado passa necessariamente
por estas fases preliminares.
Embora
tradicionalmente a actividade da Ordem se tenha desenvolvido predominantemente
no cuidado directo dos doentes e necessitados, perante os novos factos sociais
e sanitários, a investigação apresenta-se como uma premissa indispensável que
não visa “outros” profissionais, mas que entra de pleno direito nas actividades
que podem ser realizadas e promovidas nas nossas Obras Apostólicas.
Isto já se faz há alguns anos, com grande benefício para os doentes e gratificação de uma parte dos colaboradores, plenamente inseridos nos circuitos de investigação internacionais e, portanto, participantes daquele «progresso da saúde» no qual toda a comunidade científica está interessada.
Os
principais meios para realizar tal actividade serão:
§ a experimentação clínica,
§ os protocolos com institutos de investigação,
§ a adesão a programas internacionais de investigação,
§ a qualificação específica e exclusiva de alguns colaboradores neste sector.
Para uma promoção mais proveitosa da investigação, poderão ser também criadas associações que tenham com o objectivo realizá-la de forma mais orgânica, coordenada e interdisciplinar, também com o contributo de peritos qualificados, «externos» à própria Obra Apostólica.
Um problema particular tem a ver com o destino dos meios financeiros.
Não se trata de recursos «subtraídos» ao doente mas, pelo contrário, utilizados para a sua melhor cura, inclusivamente quando não se vê imediatamente o «retorno», já que, às vezes, num primeiro momento, parece que os recursos empregues não deram os resultados esperados.
Precisamente por isso, a Ordem não só aprecia e
favorece a investigação experimental nas suas Obras Apostólicas, mas também
poderá mesmo tornar-se a sua promotora perante as entidades que legitimamente a
perseguem como campo institucional próprio.
Isto também deverá ser tido em conta, se a tipologia de uma determinada Obra o permitir, no momento de estipular os respectivos protocolos com os Governos que destinam precisamente à investigação uma parte (ainda que modesta) dos seus próprios orçamentos.
Para a reflexão:
1. Quais são os programas de formação,
ensino e investigação que existem no seu Estabelecimento ou na sua Província?
Dê
uma avaliação da prática e da sua eficácia.
2. Quais deveriam ser as prioridades para
a Ordem no campo
§ da formação,
§ do ensino,
§ da investigação?
7 |
A INTEGRIDADE PESSOAL COMO BASE PARA A ACÇÃO |
7.1.
A integridade como projecto de existência
7.1.1. Viver segundo os valores que configuram a
pessoa
131. Entendemos por integridade pessoal a qualidade moral de uma pessoa cuja acção concorda com os princípios e valores que ela professa: «operari sequitur esse» (o agir vem depois do ser).
Esta
integridade exige um coração indiviso, rectidão na acção e fidelidade no meio
das provações e das dificuldades.
Em última análise,
devemos dizer que o homem íntegro é aquele que vive de acordo com o mandamento
do amor que Jesus nos deixou: «Amai-vos
uns aos outros como eu vos amei».
A unidade de mente e de coração, de coerência entre o sentir e o agir, requer um processo mais ou menos prolongado de amadurecimento humano, psicológico e espiritual, conforme as pessoas, o grau da sua vocação de serviço e a generosidade na resposta.
Integrar a acção na união com Deus, segundo o carisma de S. João de Deus, é uma tarefa de toda a vida.
Se no nosso agir tendemos apenas, ou predominantemente, para a utilidade social, para a eficácia, eliminando a dimensão de sermos testemunhas do amor de Cristo, segundo o carisma de S. João de Deus, atentamos contra a nossa integridade como projecto de existência e as nossas obras não terão a força evangelizadora que devem ter.
Se uma pessoa é íntegra, sê-lo-á por aquilo que é, que diz e que faz.
7.1.2. O homem, testemunha da Transcendência e do
Amor
132. O destino do homem é a vida eterna: «inquietum est cor nostrum donec requiescat in Te» («O nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Vós»).
O
seguimento de Jesus Cristo, plenitude da revelação de Deus, é o caminho do
homem para a plenitude da sua realização. O seguimento de Jesus Cristo segundo
o estilo de S. João de Deus, identificando-se com os pobres e os necessitados,
é o modelo exemplar da Ordem Hospitaleira.
A entrega incondicional aos outros como
sinal do amor de Deus exige um certo grau de maturidade humana e espiritual: a
experiência íntima de Deus, o ter consciência de que se é amado por Deus e o
conhecer-se a si mesmo, aceitando-se tal como se é, são condições para
conseguir o grau de identidade, confiança e liberdade, necessários para o
apostolado.
A oração é necessária para vitalizar,
unificar e integrar a vida espiritual e a actividade.
A experiência da misericórdia de Deus para connosco e do seu amor incondicional, dá-nos a medida do amor e da relação que devemos ter com a pessoa necessitada, ajudando-a a construir a sua própria vida, a valorizar a sua dignidade e a revelar-lhe o seu poder de amar.
A experiência do amor incondicional ajuda as pessoas a descobrirem a sua vocação de filhos de Deus.
O Evangelho de
Cristo ao revelar ao ser humano a sua qualidade de pessoa livre, chamada a
entrar em comunhão com Deus, suscita a tomada de consciência das profundidades
da liberdade humana:
· libertação de toda a escravidão,
· libertação do pecado,
· libertação para proclamar o Evangelho,
· libertação para crescer na liberdade, segundo o Espírito.
7.2. A consciência como motor da
nossa acção
133. No mais profundo da sua consciência o homem descobre a existência de uma lei que ele não dá a si mesmo, mas à qual deve obedecer e cuja voz ecoa, quando é necessário, aos ouvidos do seu coração, advertindo-o que deve amar e praticar o bem e que deve evitar o mal: «faz isto, evita isso»...
De facto, o homem tem uma lei inscrita por Deus no seu coração, em cuja obediência consiste a dignidade humana e pela qual será pessoalmente julgado.(1)
«A dignidade da pessoa humana implica e exige a rectidão
da consciência moral.
______________________________
(1) CONCÍLIO VATICANO II, Constituição
Pastoral sobre a Igreja no Mundo Contemporâneo – Gaudium et Spes, 16.
A consciência moral compreende a percepção dos princípios da moralidade (sindérese), a sua aplicação às circunstâncias concretas mediante um discernimento prático das razões e dos bens e, em definitivo, o juízo formado sobre os actos concretos que vão ser ou já foram realizados. A verdade sobre o bem moral, declarada na lei da razão, é reconhecida como prática e concretamente pela voz prudente da consciência. Chama-se prudente ao homem que procede de acordo com os ditames, ou juízos, da sua consciência».(2)
O homem tem o
direito de agir em consciência e em liberdade, a fim de tomar pessoalmente as
decisões morais.
«Não deve ser obrigado a agir contra a sua consciência. Não se lhe deve impedir que actue segundo a sua consciência, sobretudo em matéria religiosa».(3)
Na formação da consciência, a Palavra de Deus é a luz do nosso caminhar; é preciso que a assimilemos através da fé e da oração, e a prolonguemos na prática. É preciso também que examinemos a nossa consciência à luz da cruz do Senhor. Estamos assistidos pelos dons do Espírito Santo, ajudados pelo testemunho ou pelos conselhos dos outros, e guiados pelo ensino certo da Igreja.
A reflexão pessoal e comunitária, da qual as Comissões de Ética são uma manifestação, podem esclarecer os problemas difíceis nos casos concretos que escapam à normativa ética dos pronunciamentos do Magistério.
_________________________________
(2) Catecismo da Igreja Católica (CIC), Roma,
1992, § 1780.
(3) Catecismo da Igreja Católica, § 1782.
Competência profissional; docilidade ao Magistério e respeito por ele, e espírito de diálogo, são requisitos essenciais para discernir comportamentos concretos em casos particularmente conflituosos, onde é necessária uma hierarquização de valores que entram em conflito.
Dado que os problemas éticos mais importantes do direito natural não têm uma resposta explícita na Bíblia, devemos insistir mais numa fundamentação convincente e racional, que não se baseie no argumento de autoridade.
Sem esta condição, será talvez cada vez mais difícil que o homem de hoje, consciente da sua autonomia e responsabilidade, dê livremente o seu assentimento.
7.3. Consciência e rectidão moral
7.3.1. O serviço ao
homem doente e necessitado, «conditio
sine qua non»
134. O termo «servo», da primeira comunidade eclesial, formaliza e define a condição do crente que, por amor, se coloca à disposição dos seus irmãos. Esta atitude evidencia-se ainda mais no cuidado que a comunidade eclesial tem para com os doentes e necessitados.
Na realidade, os testemunhos de maior autoridade do passado (Juramento de Asaph, oração de Maimónides, Juramento de Hipócrates, etc.), tinham sublinhado o compromisso ético do serviço do agente da saúde e a própria ideia de ministério socio-sanitário é comum a muitas outras doutrinas ideológico-culturais.
Mas é sem dúvida no Cristianismo que esta ideia assume uma importância muito particular, pela referência ao ministério de Cristo, «diácono» do Pai para os homens, o servo de Deus para ser servo dos irmãos.
Policarpo (em finais do séc. I), chamar-lhe-á «diácono, servo de todos».
Precisamente por isso, na Ordem religiosa que tomou a hospitalidade como seu carisma específico, a dimensão do serviço torna-se algo a que não se pode renunciar, e exprime a razão de ser das próprias obras, bem como a atitude interior dos colaboradores mais envolvidos.
Nesta perspectiva, a diferença de vocações converte a pluralidade em motivo de riqueza carismática. Deste modo, os factos existenciais, os estados de vida e o âmbito do trabalho, transformam-se em ocasiões e compromissos «ministeriais».
Nas situações em que o compromisso profissional e existencial implica uma participação directa nas necessidades existenciais do outro, como acontece no caso da Ordem Hospitaleira, o serviço transforma-se numa verdadeira linha-mestra do seu agir.
7.3.2. Graus de envolvimento pessoal na missão da Ordem
7.3.2.1.
Os Irmãos
135. Em virtude da sua
profissão religiosa, os Irmãos são, como é óbvio, as pessoas mais radicalmente
comprometidas com a Ordem.
O termo «profissão» é
idêntico ao que se emprega para designar uma actividade de trabalho.
Ambas as
situações caracterizam-se por três dimensões:
·
crer, declarando-o de maneira
aberta e formal, na realidade existencial que se assume;
·
pertencer a um grupo social particular que
transforma esta realidade na sua razão de ser;
· comprometer-se em manifestar na vida concreta a realidade professada.
A primeira dimensão – crer –
diz respeito à esfera intelectual e realiza-se, se assim nos podemos exprimir,
em «crer na hospitalidade».
Não se pode viver
nem agir segundo o estilo de S. João de Deus, ou seja, encarnando concretamente
o carisma da hospitalidade, se não se acreditar nesta hospitalidade.
Trata-se, pois, de renovar um testemunho que brote da profundeza da fonte vocacional, renovando-se quotidianamente e reformulando todos os dias o próprio «sim» à hospitalidade.
A segunda dimensão – pertencer – refere-se ao âmbito relacional, isto é, ao sentido de pertença e, mais concretamente, à dimensão comunitária da própria vida.
A vida é antes de mais o espelho de uma vocação que, sem eliminar a dimensão personalista de um Deus que «nos chama pelo nosso nome», se actualiza numa comunidade.
Além disso, na sua resposta está implicada uma pertença específica comunitária, que se realiza em dois âmbitos específicos: no que se refere ao seu ser, na estrutura orgânica da Ordem; no que se refere ao seu agir, na vida fraterna e no compromisso hospitaleiro comum.
Por fim, a dimensão da vontade – compromisso – exprime-se de forma selectiva na profissão dos votos.
A este respeito, é necessário sublinhar mais uma vez a sua dimensão oblativa, mais do que ascética, considerando os votos mais na sua realidade de «dom» do que de «renúncia».
Nesta óptica, o seu significado pode constituir um exemplo de imitação dos valores também por parte dos colaboradores, encontrando uma dimensão de comunhão que ultrapassa o âmbito do simples trabalho realizado juntos.
O Irmão poderá assim partilhar com o leigo
· a obediência como adesão às circunstâncias existenciais, através de cuja trama se pode vislumbrar a vontade de Deus;
· a pobreza como dom dos bens interiores, do tempo, da inteligência, do coração;
· a castidade como dádiva do próprio corpo e dos recursos específicos do homem e da mulher;
· e a hospitalidade como expressão de acolhimento e serviço à pessoa doente e necessitada.
7.3.2.2.
Os Colaboradores
136. Neste âmbito podemos
incluir todos aqueles que, trabalhando nas Obras da Ordem, e participando, a
partir da sua própria identidade, nas iniciativas e obras por ela promovidas,
colaboram para um mesmo objectivo.
«Os níveis desta participação variam: haverá quem se sinta mais vinculado à Ordem atraído pela sua espiritualidade; outros, em contrapartida, pelo desempenho da missão. Mas o importante é que o dom da hospitalidade recebido por João de Deus crie laços de comunhão entre os Irmãos e os Colaboradores que os estimulem a desenvolver a sua vocação cristã e a ser para o pobre e o necessitado manifestação do amor misericordioso de Deus para com os homens».(4)
Independentemente da fé, os Colaboradores das nossas Obras contribuem para levar a cabo, de forma determinante a actividade da Obra Apostólica, participando assim da sua missão.
Eles ajustam com a Ordem uma relação essencialmente laboral, dado que na sua maioria são responsáveis por serviços que a Obra presta à colectividade.
Pelo seu número e pela objectiva promoção da estrutura que eles realizam, dão um contributo significativo às obras da Ordem, mesmo sem procurar partilhar profundamente o carisma, seguindo estilos e modalidades que, possivelmente, não consideram que corresponda à sua situação existencial.
___________________________________
(4) CÚRIA
GERAL, Irmãos e Colaboradores unidos para servir e promover a vida,
Roma, 1991.
Respeitando os seus valores e sem forçar as suas consciências, será oportuno, sem dúvida, proporcionar-lhes todos os instrumentos necessários para que possam seguir um caminho que, com o tempo, os possa levar a assumir livremente uma identificação mais directa com a missão da Ordem.
Os colaboradores mais sensíveis e comprometidos que desejam viver identificados com a missão da Ordem participam plenamente no carisma de S. João de Deus que neles vive e se difunde não menos do que nos Irmãos.
Precisamente por isso, no âmbito destes colaboradores, realizaram-se (e é desejável que continuem a realizar-se) formas associativas particulares que mais directamente exprimem, no estilo de vida secular, a missão da Ordem.
Nesta perspectiva, a colaboração entre Irmãos e Colaboradores deixa de ser um facto ocasional e espontâneo para pertencer essencialmente a vida da Ordem, a partir de uma plena integração.
Trata-se de uma perspectiva muito apreciada pela Igreja universal: «por imposição das novas situações, não
poucos institutos chegaram à conclusão de que o seu carisma pode ser partilhado
com os leigos. E assim estes são convidados a participar mais intensamente na
espiritualidade e na missão do próprio Instituto. Pode-se dizer que, no rasto
das experiências históricas como a das diversas Ordens seculares ou Ordens
Terceiras, se iniciou um novo capítulo, rico de esperanças na história das
relações entre as pessoas consagradas e o laicado».(5)
_________________________________
(5) JOÃO PAULO II, Exortação
Apostólica pós-sinodal ‘Vita
Consecrata’, 1997, 54.
Para a reflexão:
1)
Que recursos se estão a empregar para promover a integridade pessoal de
que se fala neste capítulo?
2) Que outros recursos seria necessário
utilizar?
8 |
CRIAR O FUTURO COM ESPERANÇA |
8.1. Desafios do presente
137. Na reflexão sobre o
futuro, mais propriamente sobre a relação entre criatividade e temporalidade,
devemos notar e superar uma contradição: o tempo, sobre o qual queremos
investigar, não é um espaço mental abstracto e longínquo, mas uma determinação
do nosso presente.
É
a época em que se vive prepara o futuro: os valores que são fundamento do nosso
testemunho encerram a semente do futuro. Também porque o compromisso e o
testemunho não se devem transferir continuamente para um futuro hipotético que
nos impediria de assumir as nossas responsabilidades presentes.
É necessário entrar no terceiro milénio com a coragem vocacional e profética de papéis e testemunhos novos.(1)
No mundo da Hospitalidade, a esperança como anúncio de salvação apenas cria um futuro possível se gerar estruturas de saúde capazes de acolher o homem de hoje que sofre.
Criar quer dizer instituir e promover processos
capazes de fecundar o tempo de maneira que se verifiquem iniciativas que
estejam em sintonia com a vontade de Deus e com os sinais através dos quais a
sua vontade se manifesta no tempo.
____________________________________
(1) Uma primeira pista encontra-se no documento Hospitalidade dos Irmãos de S. João e Deus rumo
ao ano 2000, apresentado aos Irmãos em Abril de 1987.
Criar, em hospitalidade, significa gerar e testemunhar, constantemente, um amor vivo – que opera, que constrói – a favor do irmão que vive no sofrimento.
Deter-se constantemente a projectar – a pensar – o futuro sem criar e produzir a novidade pode colocar a Ordem fora da história.
A mudança de época que estamos a viver leva-nos à necessidade de avaliar e, por conseguinte, de escolher e dar concretização às respostas mais idóneas no contexto
§ do crescente pluralismo cultural,
§ do movimento dos direitos humanos,
§ do desafio da ecologia,
§ do envelhecimento da população,
§ do aumento das velhas e novas formas de pobreza,
§ do desejo de paz
§ e da diminuição dos recursos económicos para a defesa do estado social.
Como se diz noutros capítulos deste documento, a Bioética impõe-se como parâmetro do nosso agir religioso e profissional correcto, precisamente porque impõe um ponto de vista universal ao nosso comportamento e às nossas opções, que apontam sempre para a promoção da humanidade do ser humano.
Este, como nos ensina S. João de Deus, não é um objecto insignificante no panorama da natureza, mas um ponto de vista original sobre toda a criação.(2)
____________________________________________
(2) Cf. 2ª Carta de S. João de
Deus à Duquesa de Sesa.
Para testemunhar o horizonte futuro da nossa hospitalidade, devemos considerar mais a fundo as exigências do homem necessitado, entrelaçando a ética e a espiritualidade com uma antropologia coerente.
Hoje, os Irmãos e os Colaboradores têm a tarefa de serem profetas
§ da esperança,
§ da dignidade da pessoa que sofre,
§ do amor, que por vezes fica ofuscado pela técnica e pelas leis de mercado, que invadiram o mundo da saúde e da assistência.
No passado, em muitas circunstâncias, substituímos ou antecipámos o espaço do Estado.
Hoje, devemos entrar neste espaço e nas organizações de mercado, com a cultura e o espírito de S. João de Deus em defesa dos doentes e necessitados.
A Ordem deve percorrer um caminho que traduza o ensinamento social da Igreja, servindo-se de técnicos competentes que deixem espaço à criatividade do amor e à espiritualidade da Ordem.
Tudo isto poderia levar também a repensar a presença da Ordem nalgumas obras concretas, mas permitirá, pelo menos, uma refundação ao iniciar o novo Milénio.
Criar o futuro quer dizer entrar como fermento na massa da humanidade, renunciando a deter-nos como observadores mudos, por detrás das nossas janelas limitadas que, por vezes, consideramos como a totalidade do mundo.
Enviados a evangelizar o mundo da saúde, anunciamos que a salvação está no meio de nós e se manifesta no acolhimento de Cristo na pessoa do irmão.
Toda a obra de hospitalidade é sinal de esperança para alcançar a verdadeira saúde.
8.2. Força profética da
hospitalidade
138. Para viver na nova hospitalidade, precisamos de voltar a repensar a nossa presença no mundo da saúde que muda, envolvendo-nos num movimento vertiginoso que ameaça destruir-nos, e de não definir os nossos projectos e as estratégias para os realizar.
Não se trata de «salvar as obras», mas de tornar possível o anúncio do Evangelho mediante a prática do Carisma da Hospitalidade, como serviço a Deus nos necessitados.
Depois
de termos ouvido tantos apelos à mudança, somos hoje chamados a ultrapassar a
mudança: devemos empreender um processo destinado a reinventar-nos e a reinventar
a Hospitalidade.
Esperar ou querer ser «perfeitos» na mudança significa não ouvir a Deus que fala através da nossa história pessoal e não só por meio da história das nossas obras.
O tempo, o porvir, não jogam a nosso favor, se não vivermos com ousadia e plenitude o nosso hoje.
A força profética não se exprime simplesmente na capacidade de interpretar os sinais dos tempos, mas também, e sobretudo, em saber vencer o presente e «ler o futuro», segundo o olhar de Deus.
«Embora a renovação não tenha desaparecido do léxico da Ordem
e dos seus projectos, e seja desejada e procurada por todos a vários níveis,
apelamos vivamente para que se entenda a sua necessidade e se procurem os meios
para a sua realização».(3)
Reflectir
sobre a renovação com espírito profético faz-nos pensar em muitas coisas que
necessitam de discernimento.
Renovar a hospitalidade significa
§
oferecer serviços de qualidade às necessidades humanas,
§
avaliar correctamente os recursos económicos,
§
considerar as exigências de justiça social,
§
cuidar da formação dos Irmãos e Colaboradores,
§
adequar as estruturas organizativas.
Impõe-se
um verdadeiro esforço de «formação nova» para os Irmãos e
para os Colaboradores, como opção prioritária.
Não
nos podemos limitar a uma formação localista, restrita: é necessária uma abertura
mundial.
Impõe-se,
pois, uma avaliação das experiências das diversas Províncias da Ordem, com
intercâmbios culturais e pastorais, para um novo impulso, um entusiasmo novo,
capazes de inspirar uma nova evangelização e uma nova hospitalidade.
_________________________________
(3) LXIII
CAPÍTULO GERAL, A Nova Evangelização e a Hospitalidade no limiar do Terceiro Milénio, Bogotá 1994, nº 3.3, § final.
Mas tudo isto pode não ser suficiente para produzir um verdadeiro movimento de inovações que perdurem.
Por conseguinte, inspirados num verdadeiro amor pelo nosso serviço carismático, não nos devemos limitar a fazer simples propostas correctivas de situações que verificámos terem sido insuficientes ou inadequadas.
Devemos
ir à raiz dos problemas, questionar de novo aquilo que mais nos custa
questionar, isto é, a nós mesmos como pessoas, como Irmãos ou como
Colaboradores, a nossa mentalidade, a nossa maneira de encarar a comunidade
hospitaleira e as Obras Apostólicas.
Os Irmãos devem construir um tecido comunitário novo, no qual o papel de «proprietários» das obras fique equilibrado com a função de «animadores», abrindo-se a uma partilha mais convicta e coerente com quantos querem unir-se a eles com laços mais estreitos.
A renovação exigida pela Nova Hospitalidade, a re-invenção da nossa existência no campo da saúde, consiste mais em voltar a repensar e a rever não apenas as estruturas visíveis, mas também as invisíveis e as culturais.
Devemos pensar numa transformação que permita manter no tempo os melhoramentos, independentemente das variações do contexto económico-sanitário externo.(4)
________________________________
(4) Toda a
carga propositiva destas palavras está encerrada na página final do documento A
Nova Evangelização e a Hospitalidade...,
op. cit., 5. 6.
O fim último dos
membros da Ordem Hospitaleira, no seu apostolado de caridade, consiste em
tornar presente a Cristo que os convida a comprometer a sua existência na
evangelização dos pobres e dos doentes.(5)
A Igreja hoje, tendo em vista a
nova Evangelização, convida-os a verificar:
§ Se o seu apostolado
tem um autêntico perfil evangelizador em todas as suas expressões;
§ Em que medida as
comunidades, na sua acção apostólica, têm consciência do seu papel
evangelizador;
§ Até que ponto as
pessoas assumem e valorizam a sua dimensão de testemunhas do Evangelho;
§ Em que medida sabem
ser animadores motivados e enraizados no Evangelho e, ao mesmo tempo, sensíveis
às ciências humanas e organizativas;
§ Até que ponto conseguiram harmonizar a dimensão apostólica com a dimensão contemplativa.
Por fim, é importante
que redescubram o sentido de alegria que inunda o profeta quando se entusiasma
por ter descoberto o sentido da sua vocação:
«seduziste-me, Senhor, e eu me deixei seduzir» (Jr 20, 7).
____________________________
(5) Cf. Constituições, 41
A participação
partilhada da gestão, do testemunho, da missão ou da espiritualidade revela-se
como passo obrigatório para realizar o ministério de saúde e salvação que
anunciamos profeticamente à humanidade que sofre.
Devemos convencer-nos
de que, na prática das coisas concretas, a solução de participação envolve as
pessoas e impõe a revisão do sistema hierárquico que frequentemente condicionou
as relações entre Colaboradores e Irmãos e entre os Irmãos entre si.
A participação deve
traçar um itinerário próprio que abranja tanto os aspectos culturais e de
comunicação, como os relativos à organização e aponte para o amadurecimento de
relações mais modernas na empresa-hospital e na comunidade hospitaleira.
Isto significa que nos
devemos submeter, todos, a um confronto constante sobre os problemas concretos,
tais como
§ a produtividade,
§ o melhor uso das
estruturas técnicas,
§ a qualidade do trabalho
e do serviço,
§
o reconhecimento da centralidade do homem doente.
Há que procurar a
satisfação do doente, de todos os modos, com a mesma inteligência e constância
com que se procura a criação de um ambiente de trabalho satisfatório.
A participação pode
aumentar a satisfação dos agentes e dos utentes se for corroborada pelo
desenvolvimento profissional, por um sistema económico mais próximo das
modalidades de participação, por uma cuidadosa atenção à formação espiritual de
todos na fidelidade ao carisma da hospitalidade.
Mas, para além disso e
a outro nível, a participação implica uma informação mais difundida e uma
comunicação mais interactiva relativamente ao que se tem feito até agora.
8.3. Vitalidade humano-divina do carisma da hospitalidade
139. Nada nos pode garantir
o êxito perante os desafios futuros ou manter as eventuais conquistas, se não
estivermos enraizados na confiança no Pai.
Na resposta convicta e
integral ao chamamento de Deus comprometemos todo o nosso ser e todos os nossos
recursos ao serviço da humanidade.
Nisto, o carisma da
hospitalidade é graça derramada por nosso intermédio sobre os homens que sofrem
e compromete-nos a tornarmo-nos guias morais para o mundo da saúde.
Ser guias morais impõe
uma coerência de vida nos comportamentos quotidianos, no cumprimento dos nossos
compromissos, na nossa obra de evangelizadores positivos e propositivos no
mundo da saúde.
Enraizados na
fidelidade a Cristo homem-Deus, salvador do homem, devemos construir as
oportunidades para que se respeite a dignidade humana, se reconheça o sentido e
o destino transcendente de todo o ser humano.
Emerge aqui a dimensão
espiritual, mais propriamente teológica do carisma da hospitalidade.
A vitalidade humana do
carisma, a parte visível do nosso estilo, tem de ser uma manifestação da parte
invisível da nossa união com Deus.
A partir do modo como
reconhecemos a figura de Deus e o «sentido»
da sua função na história, na natureza, na existência dos homens, determinamos
o seu papel na nossa vida pessoal.
O modelo de acção
apostólica que devemos formular e actuar tem de encontrar o seu fundamento na
teologia do serviço. De facto, se a nossa opção vocacional se orientar para o
alívio do sofrimento, devemos definir qual é o nosso modo de conceber esta tarefa
como um precioso serviço a Deus. Porque está escrito:
«Quando o Filho do Homem vier na sua glória, (...) o rei dirá então aos da
sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos
está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer,
tive sede e destes-me de beber, era peregrino e reconhecestes-me, estava nu e
destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter
comigo». Então os justos vão responder-lhe: «Senhor, (...) quando te vimos
doente ou na prisão e fomos visitar-te?» E o rei vai dizer-lhes, em resposta:
«Em verdade vos digo: sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a mim mesmo o fizestes’» (Mt
25, 31-40).
Mas isto, que segundo o
Evangelho estava tão intimamente ligado com a mentalidade da Igreja primitiva –
o espírito de comunhão e o sentido vivo do testemunho – é mais difícil de
realizar na era moderna.
Isto porque a nossa
visão do mundo e a cultura moderna, levaram-nos a excluir da realidade do mundo
a dependência divina e transcendente como vital das coisas desta terra.
Portanto, é necessário
rever a nossa maneira de agir e de pensar, para podermos transformar a nossa
existência de Irmãos ou de Colaboradores e sermos realmente «transparentes», testemunhas vivas do
amor misericordioso.(6)
Sendo assim, a fundação
de um modelo de teologia do serviço que seja nosso não pode esperar mais: a
ideia de serviço está no âmago da tradição cristã.
Na enorme complexidade
da sociedade contemporânea, a busca de um modelo de teologia do serviço deve
fazer-se mediante um salto arriscado que nos conduza à invenção de algo novo.
Somos chamados a pensar
de maneira nova a relação, fundamental e fundante, sempre particular, entre a
fé cristã e as formas de serviço religioso, político ou intelectual, prestadas
ao mundo pela práxis social cristã.
É necessária uma
ousadia nova para arriscar-se a uma abertura que abranja num único movimento a
Deus, o totalmente outro, e o homem totalmente semelhante a nós.
_______________________________
(6) Constituições, n. 41
Uma teologia, por conseguinte, centrada na
hospitalidade de Deus no homem e do homem no homem. Somente nesta arriscada
abertura, como esplêndida aventura, poderá basear-se o nosso serviço.
Assim, o doente, a
pessoa que sofre e o ser em necessidade, transformam-se pela fé em Deus, em
fonte de vida. Exercer o carisma da hospitalidade significará, portanto, de
certo modo, ceder espaço ao outro e fazê-lo viver – connosco e em nós.
Traduzir em acção estes
princípios ou estes riscos de aventura mudaria e revolucionaria o nosso ser,
daríamos um testemunho capaz de encantar os jovens da nossa época, e daria às
nossas Obras Apostólicas uma característica própria, que o nosso Fundador quis
para o seu hospital.
Será a atitude de simples
disponibilidade, mas também de luta por encontrar um lugar «para os outros»:
§
na nossa oração,
§
nas nossas palavras,
§
no exercício concreto das nossas profissões,
§
no acolhimento,
§
na assistência
§
e no acompanhamento dos doentes e necessitados.
Desta forma, a
hospitalidade torna-se o lugar teológico em que Deus, que desde sempre nos
acolheu, inspira gestos de hospitalidade que o fazem sentir acolhido entre os
homens e o tornam presente no mundo.
Para a reflexão:
1)
Que sinais
actuais nos fazem olhar para o futuro com receio?
2)
Que sinais
actuais nos fazem olhar para o futuro com esperança?
ÍNDICE
3 5 7 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 |
APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . .
1. PRINCÍPIOS, CARISMA E MISSÃO DA
ORDEM
HOSPITALEIRA
DE S. JOÃO DE DEUS . . . . .
1.1.
Projectar o futuro com base nos nossos princípios .
1.2.
O Carisma da Ordem . . . . . . . . .
1.3.
A Missão da Ordem . . . . . . . . . .
Reflexão sobre este capítulo . . . . . . . .
2. OS FUNDAMENTOS BÍBLICO-TEOLÓGICOS DA
HOSPITALIDADE . . . . . . . . . . .
2.1 A aproximação filosófica e religiosa ao
sofrimento .
2.1.1. O homem perante a dor . . . . . . .
2.1.2. O sofrimento e os sofredores no Cristianismo .
2.1.3. A mensagem evangélica da libertação . . .
2.2. A Hospitalidade no Antigo Testamento . . . .
2.2.1. O Deus hospitaliadde . . . . . . . .
2.2.2. O conceito de hospitalidade . . . . . .
2.2.3. As razões da hospitalidade . . . . . . .
2.2.4. As referências maios importantes . . . . .
2.2.5. A hospitalidade institucional . . . . . .
2.3. A
Hospitalidade no Novo Testamento . . . . .
2.3.1. A perspectiva evangélica . . . . . . . .
2.3.2. A filoxenia . . . . . . . . . . . .
2.3.3. Hospitalidade e evangelização . . . . . .
2.3.4. O
Bom Samaritano . . . . . . . . . .
Reflexão
sobre este capítulo . . . . . . .
3. O CARISMA DA HOSPITALIDADE EM S. JOÃO DE
DEUS E
NA ORDEM HOSPITALEIRA . . . . . .
3.1. O carisma da hospitalidade em S. João de Deus . .
3.1.1. A Hospitalidade misericordiosa . . . . . .
3.1.2. A Hospitalidade solidária . . . . . . . .
3.1.3. A Hospitalidade de comunhão . . . . . . .
3.1.4. A Hospitalidade criativa . . . . . . . . .
3.1.5. A Hospitalidade integral (holística) . . . . . .
3.1.6. A Hospitalidade reconciliante . . . . . . .
3.1.7. A Hospitalidade geradora de voluntários e de
Co-
laboradores . . . . . . . . . . . .
3.1.8. A Hospitalidade profética . . . . . . . .
3.2. A hospitalidade ao longo da história da Ordem . .
3.2.1. A hospitalidade joandeína
desde os primeiros compa-
nheiros e através dos séculos . . . . . . .
3.2.2. A presença actual . . . . . . . . . . .
3.2.3. As novas formas de
presença . . . . . . .
Reflexão
sobre este capítulo . . . . . . .
4. PRINCÍPIOS QUE ILUMINAM A NOSSA
HOSPITALIDADE
71 71 72 73 75 75 76 77 78 79 80 81 81 82 82 83 84 |
4.1. A
dignidade da Pessoa humana . . . . . . . . .
4.1.1. O respeito pela dignidade da
pessoa humana como
característica essencial da atitude verdadeiramente
cristã. . . . . . . . . . . . . . . .
4.1.2. O respeito tem de ser universal . . . . . . .
4.1.3. Atitude profunda e conduta
eficaz de acolhimento para
com os doentes e os necessitados . . . . . . .
4.2. O
respeito pela vida humana . . . . . . . . .
4.2.1. A vida
como bem fundamental da pessoa
e condição prévia para o desfrutar de todos os bens . .
4.2.2. Protecção
e promoção das pessoas com deficiências
físicas, mentais e psicológicas . . . . . . . .
4.2.3. Promover a
vida, criando ou colaborando na criação de
instâncias que ajudem a superar a miséria, a fome e a
doença . . . . . . . . . . . . . .
4.2.4. A
obrigação e limites na conservação da própria vida .
4.2.5. A
obrigação de não atentar contra a vida dos outros . .
4.2.6. A
obrigação em ordem aos recursos da biosfera . . .
4.3. A
promoção da saúde e a luta contra a dor e o sofrimento
4.3.1. O dever de velar pela promoção
da saúde da população
4.3.2. O dever ético de velar pelos
melhores interesses dos
doentes . . . . . . . . . . . . .
4.3.3. Colocar-se ao lado dos
pobres, marginalizados e sofre-
dores como imperativo evangélico de justiça . . .
4.3.4. O tratamento correcto do
doente perante o encarniça-
mento terapêutico . . . . . . . . . . .
4.3.5. Os cuidados paliativos . . . . . . . . . .
|
4.4. A
eficácia e a boa gestão . . . . . . . . . .
4.4.1. Dever de consciencializar a
população de que os re-
cursos da saúde não podem ser considerados como
um mero consumo . . . . . . . . . .
4.4.2. Administração e gestão eficaz e eficiente dos
recursos . . . . . . . . . . . . .
4.4.3. A instituição hospitaleira
empresarial deve orientar-se
para a recuperação da pessoa integralmente conside-
rada . . . . . . . . . . . . . .
4.4.4. O investimento para criar um
clima humano e humaniza-
dor como ajuda à rendibilidade dos recursos . . .
4.4.5. Direitos e deveres dos
trabalhadores . . . . .
4.5. A Nova hospitalidade e as novas exigências:
III e IV Mundos . . . . . . . . . . . .
4.5.1. Solidariedade
e cooperação . . . . . . . .
4.5.2.
Cooperação e Colaboradores: direitos e deveres . .
4.5.3.
O voluntariado. Gratuitidade e identificação . . .
4.6. A
evangelização, a inculturação e a missão . . . .
4.6.1.
Visão de conjunto . . . . . . . . . . .
4.6.2. A evangelização, a inculturação
e a missão
da Ordem . . . . . . . . . . . . .
Reflexão sobre este capítulo . . . . . . . .
5. A
APLICAÇÃO A SITUAÇÕES CONCRETAS . . . .
5.1. A assistência integral e Direitos do doente . . . . .
5.1.1. O encontro com o doente, o necessitado e o seu
am-
biente familiar . . . . . . . . . . .
5.1.1.1. Abertura . . . . . . . . . . .
5.1.1.2. Acolhimento . . . . . . . . . .
5.1.1.3. Capacidade de escuta e de
diálogo . . . .
5.1.1.4. Atitude de serviço . . . . . . . .
5.1.1.5. Simplicidade . . . . . . . . . .
5.1.2 Os Direitos do doente . . . . . . . . . .
5.1.2.1. Confidencialidade . . . . . . . .
5.1.2.2. Veracidade . . . . . . . . . . .
5.1.2.3. Autonomia . . . . . . . . . . .
5.1.2.4. Liberdade de consciência . . . . . .
5.1.3. Os
programas de humanização e de pastoral . .
5.1.3.1. Programa de humanização . . . . . .
5.1.3.2. Pastoral da saúde e social . . . . . .
5.2.
Os problemas específicos da nossa acção assistencial . .
5.2.1. A sexualidade e a procriação . . . . . . .
5.2.1.1. A procriação responsável . . . . . .
5.2.1.2. A interrupção da gravidez . . . . . .
5.2.1.3. A reprodução assistida . . . . . . .
5.2.2. A doação
de órgãos e os transplantes . . . . .
102 103 103 104 104 105 105 106 108 113 114 116 116 118 121 121 121 122 125 126 126 127 |
5.2.2.1. Tipos de transplante . . . . . . . .
5.2.2.2. A morte cerebral . . . . . . . . .
128 129 129 130 132 133 134 134 136 138 139 141 141 142 144 144 146 148 149 152 153 |
5.2.2.3. Utilização dos tecidos embrio-fetais . . .
5.2.3. Os doentes crónicos e terminais . . . . . . .
5.3.2.1. A Eutanásia . . . . . . . . . .
5.2.3.2. O Testamento
vital . . . . . . . .
5.2.3.3. A proporcionalidade dos cuidados e o encarni-
çamento terapêutico . . . . . . .
5.2.3.4. Os cuidados
paliativos . . . . . . .
5.2.4. Os problemas relacionados com a pesquisa
científi-
ca em seres humanos . . . . . . . . .
5.2.4.1. A
Experimentação clínica . . . . . .
5.2.4.2. A Investigação com pessoas deficientes e gru-.
pos vulneráveis . . . . . . . . .
5.2.4.3. Os fetos e os
embriões . . . . . . .
5.2.4.4. As Comissões de Investigação
Clínica e as Co-
missões de Ética . . . . . . . . .
5.2.5. Problemas éticos relacionados com a medicina preditiva .
5.2.5.1. A comunicação do diagnóstico . . . .
5.2.5.2.
O património e a tutela do segredo . . . .
5.2.6. Problemas éticos nas situações de marginalização . . .
5.2.6.1.
Toxicodependentes . . . . . . . .
5.2.6.2. Doentes de SIDA . . . . . . . . .
5.2.6.3. Deficientes
físicos e psíquicos . . . . .
5.2.6.4. Doentes mentais
e deficientes psíquicos . .
5.2.6.5. Idosos . . . . . . . . . . . .
5.2.6.6. Problemas emergentes . . . . . . .
155 155 155 156 156 157 157 158 158 159 159 |
5.3. A Gestão e a direcção . . . . . . . . . .
5.3.1.
A gestão . . . . . . . . . . . .
5.3.1.1. Organização e aplicação de recursos . .
5.3.1.2. Profissionalismo . . . . . . . .
5.3.1.3.
Competência técnica . . . . . . .
5.3.2. A organização . . . . . . . . . . .
5.3.2.1. A expressão correcta da
missão da obra nos
instrumentos organizativos . . . . .
5.3.2.2. A defesa da pluralidade . . . . . .
5.3.2.3. Delegação. Participação. O
assumir funções
5.3.2.4. A descentralização /
centralização . . .
5.3.2.5. As novas fórmulas jurídicas . . . . .
5.3.2.6. O trabalho em equipe . . . . . . .
5.3.3. A política de pessoal . . . . . . . . .
5.3.3.1. Critérios gerais . . . . . . . . .
5.3.3.2. Relações com os
trabalhadores . . . . .
5.3.3.3. A acção sindical . . . . . . . . .
5.3.3.4. A selecção e contratação do
pessoal . . .
5.3.3.5. A segurança no emprego . . . . . .
5.3.3.6. O sistema salarial . . . . . . . . .
5.3.3.7. A motivação . . . . . . . . . .
5.3.3.8. A convergência de valores de
quantos trabalham
numa Obra Apostólica . . . . . . .
5.3.3.9. Promover uma cultura de
pertença à Obra A-
postólica, à Província, à Ordem . . .
5.3.4. A Política Económica e Financeira . . . .
|
5.3.4.1. A Entidade sem
fins lucrativos . . . . .
5.3.4.2. O carácter de
beneficência social . . . .
5.3.4.3. O equilíbrio
financeiro . . . . . . .
5.3.4.4. A transparência
na gestão . . . . . .
5.3.5.
A responsabilidade Social . . . . . . . .
5.3.5.1. Serviço à sociedade como elemento justifica-
tivo das Obras Apostólicas . . . . . .
5.3.5.2. O respeito e aplicação da legislação . . .
5.3.5.3. O compromisso de justiça
social na angariação
de recursos . . . . . . . . . .
5.3.5.4. A função de denúncia nas situações que o exi-
girem . . . . . . . . . . .
5.3.6.
A presença da sociedade no Centro . . . . .
5.3.6.1. Os utentes. Associações de utentes e familiares .
5.3.6.2. Os
trabalhadores . . . . . . . . .
5.3.6.3. Os benfeitores . . . . . . . . . .
5.3.6.4. Os voluntários . . . . . . . . .
5.3.6.5. A Igreja local . . . . . . . . . .
5.3.6.6. A Administração
Pública . . . . . .
5.3.7. Avaliação . . . . . . . . . . . .
5.3.7.1. A atenção ao sinais dos tempos . . . . .
5.3.7.2. A resposta às necessidade do homem e da so-
ciedade . . . . . . . . . . .
|
6. A FORMAÇÃO, A DOCÊNCIA E A INVESTIGAÇÃO
6.1. A
formação . . . . . . . . . . . . .
6.1.1. A formação
técnica, humana e carismática .
6.1.2. As Comissões de Ética como
instrumento de
informação . . . . . . . . . .
6.2. A docência . . . . . . . . . . . . .
6.2.1. A docência, uma constante na
Ordem . .
6.2.2. A
docência, um imperativo nos dias de hoje
6.3. A investigação . . . . . . . . . . . .
6.3.1. A
comunicação na perspectiva da Ordem .
6.3.2.1.
A promoção da investigação em direcção
ao Terceiro Mundo . . . . . . .
6.
A
INTEGRIDADE PESSOAL COMO BASE PARA
A ACÇÃO . . . . . . . . . . . . . . .
7.1. A
integridade como projecto de existência . . . .
7.1.1.Viver segundo os valores que configuram a
pessoa
7.2. A consciência como motor da nossa acção . . . .
7.3. A consciência e a rectidão moral . . . . . . .
7.3.1. O serviço ao homem doente e
necessitado, «con-
ditio sine qua non» . . . . . . .
|
7.3.2. Os
graus de envolvimento pessoal na missão da Ordem . . . . . . . . . . . .
7.3.2.1. Os Irmãos . . . . . . . . . . .
7.3.2.2. Os
Colaboradores . . . . . . . . .
8. CRIAR O FUTURO COM ESPERANÇA . . . . .
8.1. Os desafios
do presente . . . . . . . . . . .
8.2. A força
profética da hospitalidade . . . . . . .
8.3. A vitalidade humano-divina do carisma da Hospitalidade